1 – É jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça, a de que as conclusões ou ilações que as instâncias extraem da matéria de facto são elas mesmo matéria de facto que escapam à censura do tribunal de revista, mas as instâncias ao extrair aquelas conclusões ou ilações devem limitar-se a desenvolver a matéria de facto provada, não a podendo alterar.
2 – Tem decidido o Supremo Tribunal de Justiça pacificamente que para conhecer de recurso interposto de um acórdão final do tribunal colectivo relativo a matéria de facto, mesmo que se invoque qualquer dos vícios previstos no art. 410.º do CPP, é competente o tribunal de Relação. Nos recursos interpostos da 1.ª Instância ou da Relação, o Supremo Tribunal de Justiça só conhece dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, por sua própria iniciativa e, nunca, a pedido do recorrente, que, para tal, terá sempre de dirigir-se à Relação.
3 - A revista alargada prevista no art. 410.º, n.ºs 2, e 3 do PP, pressupunha (e era essa a filosofia original, quanto a recursos, do Código de Processo Penal de 1987) um único grau de recurso (do júri e do tribunal colectivo para o STJ e do tribunal singular para a Relação) e destinava-se a suavizar, quando a lei restringisse a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito (o recurso dos acórdãos finais do júri ou do colectivo; e o recurso, havendo renúncia ao recurso em matéria de facto, das sentenças do próprio tribunal singular), a não impugnabilidade (directa) da matéria de facto (ou dos aspectos de direito instrumentais desta, designadamente «a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não devesse considerar-se sanada»). E deixou de fazer sentido – em caso de prévio recurso para a Relação – quando, a partir da reforma processual de 1998 (Lei 59/98), os acórdãos finais do tribunal colectivo passaram a ser susceptíveis de impugnação, «de facto e de direito», perante a Relação (art.ºs 427.º e 428.º n.º 1).
4 – Se está provado, além do mais que as condenações anteriores não foram suficientes para impedir a arguida de praticar delito de tráfico de estupefacientes nos cinco anos subsequentes à sua saída dos Estabelecimentos Prisionais, não se pode falar em aplicação automática do instituto da reincidência.
4 - Não oferece dúvidas de que é susceptível de revista a correcção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação, mas a determinação do quantum exacto de pena só pode ser objecto de alteração perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada
Supremo Tribunal de Justiça
AcSTJ de 29.03.2007, Proc. n.º 1034/07-5, Relator: Cons. Simas Santos
Tráfico de estupefacientes - Tráfico de menor gravidade - Considerável diminuição da ilicitude - Manifesta improcedência - Rejeição do recurso
1 – O privilegiamento do crime de tráfico de estupefacientes dá-se, não em função da considerável diminuição da culpa, mas em homenagem à considerável diminuição da ilicitude da conduta, que se pode espelhar, designadamente:
(i) – nos meios utilizados;
(ii) – na modalidade ou nas circunstâncias da acção;
(iii) – na qualidade ou na quantidade das plantas, substâncias ou preparações.
2 – Não se verifica essa considerável diminuição de ilicitude, quando o arguido procedeu à venda de cocaína e heroína, pelo menos, desde Março de 2004 até fins de Agosto do mesmo ano, fazendo de tal actividade o seu modo de vida e levando-a a cabo quer na sua casa, quer utilizando uma outra casa onde guardava os estupefacientes e produto da venda, diariamente a dezenas de individuos não identificados, mediante contrapartida económica, como o atestam diversos autos de vigilância policial, passando a partir de meados de Abril de 2004, a utilizar, para os mesmos fins, uma outra casa. E utilizava essas casas, bem como a noite para potenciar a sua actividade e diminuir o risco de ser detectado pelas autoridades.
3 – São manifestamente improcedentes os recursos quando é clara a sua inviabilidade, quando no exame necessariamente perfunctório a que se procede no visto preliminar, se pode concluir, face à alegação do recorrente, à letra da lei e às posições da jurisprudenciais sobre as questões suscitadas, que os mesmos estão votados ao insucesso.
Supremo Tribunal de Justiça
AcSTJ de 29.03.2007, Proc. n.º 1020/07-5, Relator: Cons. Simas Santos
Medida da pena Recurso de revista - Poderes do STJ - Tráfico de estupefacientes - Suspensão da execução da pena - Regime de prova
1 – É susceptível de recurso de revista a correcção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação.
2 – Mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado, salvo perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada.
3 – A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quando possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização.
4 – A medida das penas determina-se em função da culpa do arguido e das exigências da prevenção, no caso concreto, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra ele.
5 – Atendendo ao:
– O grau de ilicitude do facto (o agente que vendeu droga a 4 menores de idade, o que também foi considerado na qualificação jurídica da conduta, tratando-se, no entanto, de haxixe);
– A intensidade do dolo ou negligência (dolo directo, como é usual neste crimes);
– Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram (obtenção de rendimentos económicos destinados à satisfação das necessidades do seu agregado familiar, mas que não eram de relevo, pois que vivia em casa arrendada e teve necessidade de contrair um empréstimo, ainda não pago, para a aquisição de um automóvel com muito uso por € 2.500; trabalho prestado em algumas horas no momento dos factos);
– As condições pessoais do agente e a sua situação económica (modesta condição social, cultura e económica, a inserção social e familiar, tendo um filho com 4 anos e sendo consumidor de haxixe)
– A conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime (ausência de antecedentes criminais e a colaboração com a investigação dos presentes autos, nomeadamente prestando informações relevantes às autoridades policiais), afigura-se adequada a pena de 3 anos de prisão no quadro do crime de tráfico agravado, especialmente atenuado.
6 – O tribunal, ao suspender a execução da pena, deve correr um risco prudente, uma vez que esperança não é seguramente certeza, mas se tem sérias dúvidas sobre a capacidade do réu para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa, considerando:
— A personalidade do réu;
— As suas condições de vida;
— A conduta anterior e posterior ao facto punível; e
— As circunstâncias do facto punível.
Isto é, todas as circunstâncias que tornam possível uma conclusão sobre a conduta futura do réu, atendendo somente às razões da prevenção especial.
7 – Atendendo ao pequeno número de menores atingidos, à natureza da droga (haxixe), à pequena expressão económica do “negócio”, o trabalhar em tempo parcial, a colaboração com as autoridades, a sua modesta condição social, cultura e económica, a inserção social e familiar, tendo um filho com 4 anos e sendo consumidor de haxixe, a ausência de antecedentes criminais, deve o Tribunal correr um risco prudente e suspender a execução da pena por 3 anos, com regime de prova, assente num plano de readaptação social, que contemple o afastamento do recorrente do meio dos estupefacientes e no reforço da sua integração laboral.
Supremo Tribunal de Justiça
AcSTJ de 29.03.2007, Proc. n.º 902/07-5, Relator: Cons. Simas Santos
Recurso de matéria de facto - Poderes do STJ - Insuficiência da matéria de facto para a decisão - Homicídio qualificado - Fria reflexão sobre os meios empregues - Medida da pena
1 – Tem entendido pacífica e constantemente o Supremo Tribunal de Justiça que para conhecer de recurso interposto de um acórdão final do tribunal colectivo relativo a matéria de facto, mesmo que se invoque qualquer dos vícios previstos no art. 410.º do CPP, é competente o tribunal de Relação. Nos recursos interpostos da 1.ª Instância ou da Relação, o Supremo Tribunal de Justiça só conhece dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, por sua própria iniciativa e, nunca, a pedido do recorrente, que, para tal, terá sempre de dirigir-se à Relação.
2 – A revista alargada prevista no art. 410.º, n.ºs 2, e 3 do CPP, pressupunha (e era essa a filosofia original, quanto a recursos, do CPP de 1987) um único grau de recurso (do júri e do tribunal colectivo para o STJ e do tribunal singular para a Relação) e destinava-se a suavizar, quando a lei restringisse a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito (o recurso dos acórdãos finais do júri ou do colectivo; e o recurso, havendo renúncia ao recurso em matéria de facto, das sentenças do próprio tribunal singular), a não impugnabilidade (directa) da matéria de facto (ou dos aspectos de direito instrumentais desta, designadamente «a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não devesse considerar-se sanada»).
3 – Essa revista alargada para o Supremo deixou, por isso, de fazer sentido - em caso de prévio recurso para a Relação - quando, a partir da reforma processual de 1998 (Lei 59/98), os acórdãos finais do tribunal colectivo passaram a ser susceptíveis de impugnação, «de facto e de direito», perante a Relação (art.ºs 427.º e 428.º n.º 1).
4 – A insuficiência da matéria de facto a que se refere o n.º 2 do art. 410.º do CPP é um vício da matéria de facto e não da matéria de direito. Se se entende que a matéria de facto assente é insuficiente para afirmar a verificação de um determinado tipo de crime, então o que se pretende é afirmar a existência de um erro típico de direito: o erro e subsunção dos factos ao direito.
5 – Se da matéria de facto resulta provado que:
– o arguido antigo companheiro da vítima, com quem viveu 11 anos e teve um filho, a procurou cerca das 17 horas para falar sobre a atribuição dos cuidados e guarda desse menor; e
– a voltou a encontrar cerca das 19.40 horas, solicitando-lhe que o acompanhasse para conversarem, ao que ela acedeu indo de automóvel para um lugar ermo;
– lugar onde houve uma discussão entre ambos, a vítima que saiu do veículo automóvel, no que foi seguida pelo arguido que, na sequência daquela discussão, e quando ambos se encontravam fora do automóvel, munido previamente de uma pistola, a menos de 2 metros, efectuou 2 disparos vindo-lhe a provocar a morte,
não está provado que o recorrente tivesse procurado a noite para vir a causar a morte à sua ex-companheira, como não está provado que a conversa fosse um pretexto, e a própria vítima ao aceitar o convite, seguramente alertada pelos antecedentes de pressão exercida pelo recorrente, não o entendeu assim, nem que a escolha do sítio visasse já e pré-ordenadamente a morte anteriormente pensada da vítima, pelo que não pode afirmar a fria reflexão sobre os meios empregues, que fundou a qualificação do homicídio.
6 – Mas é muito grave a sua conduta, tanto mais que a abandonou no local e se dirigiu algum tempo depois à PSP dando conta que a vítima se suicidara, pelo que se mostra adequada a pena de 14 anos de prisão no quadro de um crime de homicídio simples.
Supremo Tribunal de Justiça
AcSTJ de 29.03.2007, Proc. n.º 339/07-5, Relator: Cons. Simas Santos
I - Se é certo que o recurso à figura do homicídio qualificado atípico há-de ser levado a cabo com alguma parcimónia, não é menos verdade que a exigência de um grau especialmente elevado de ilicitude ou de culpa, para se poder afirmar um homicídio qualificado de natureza atípica, constitui um importante critério quanto à decisão a tomar relativamente a casos cuja pena concreta se venha a situar no âmbito de justaposição das molduras penais do tipo simples e do tipo qualificado e, que, com tais exigências, parece posta de parte qualquer possibilidade de multiplicação de casos de homicídio qualificado atípico.
II – Verificando-se in casu um homicídio invulgar ou incomum, por um lado, porque cometido contra a pessoa com quem o arguido vivia em comunhão de vida, em situação análoga à dos cônjuges, há cerca de 25 anos, depois, porque cometido no interior da casa de morada do casal, em terceiro lugar, levado a cabo com uso de arma, no caso arma de fogo, usada contra pessoa indefesa; consumado com a vítima adormecida no quarto de dormir, e, assim, inteiramente à mercê do arguido, tanto mais que os factos tiveram lugar pela calada da noite, a hora em que naturalmente as defesas e cuidados de vigilância da vítima se encontravam esmorecidos. Cometido «à queima-roupa», com a arma declaradamente dirigida à zona do corpo da vítima de onde era de esperar com a maior certeza o efeito pretendido e a eficácia do disparo: a zona do coração, então verifica-se um caso de qualificação por especial censurabilidade do agente, embora não enquadrado em qualquer dos exemplos-padrão do artigo 132.º do Código Penal.
III - Se é certo que não ficaram provados factos integrantes da premeditação ou que o arguido tenha propositadamente escolhido para matar a sua companheira uma altura em que esta dormia, para que desse modo não reagisse ou esboçasse qualquer defesa com vista a tornar mais fácil a obtenção dos seus intentos, daqui não pode descartar-se uma actuação especialmente traiçoeira. Desde logo, porque ele «agiu com o propósito, que logrou alcançar, de retirar a vida à ofendida e sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei, agindo de modo livre e consciente». E quem está consciente dos seus actos e age livremente, como o fez o arguido, sabe que um disparo «à queima-roupa» com uma arma de fogo, dirigida à zona do peito não tem hipótese de defesa. Para mais, tratava-se de um caçador, com conhecimento adequado dos efeitos do manejamento da arma de fogo, podendo surpreender-se no disparo de curta distância contra o peito da mulher adormecida na cama uma particular tensão na voluntariedade do acto, robustecida pela certeza da sua eficácia total. Sobretudo, se inesperado, porque acontecido a hora morta, dentro de casa, no quarto de dormir, enfim a hora e em local altamente improváveis.O arguido pode não ter escolhido propositadamente o momento em que a vítima estava adormecida para a matar. Mas forçosamente sabia que, estando ela adormecida como era também do seu conhecimento, não tinha qualquer hipótese de defesa. É uma actuação anormalmente inesperada e traiçoeira, conhecida e aproveitada pelo arguido, que não deixa de se manifestar in casu, por isso, especialmente censurável.
AcSTJ de 29.03.207, proc. n.º 647/07-5, Relator: Cons. Pereira Madeira
I - O recorrente não veio questionar o enquadramento jurídico dos factos, que o tribunal recorrido integrou num crime de abuso sexual de crianças, na forma continuada, p.p. pelos artigos 30.º e 172º, n.º 2 do Código Penal. Mas, mais correcto teria sido considerar os vários actos criminosos apurados como constituindo um único crime de trato sucessivo e não como um crime continuado.
II - No crime continuado há uma diminuição de culpa à medida que se reitera a conduta, mas não se vê que tal diminuição exista no caso do abuso sexual de criança por actos que se sucedem no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da culpa parece aumentar à medida que os actos se repetem.
III - Não podendo este Supremo corrigir “in pejus” a qualificação jurídica do colectivo relativo à existência de um crime continuado, pois o recurso é do arguido e em seu benefício, deve ficar, no entanto, o reparo.
AcSTJ de 29.03.2007, Proc. n.º 1031/07-5, Relator: Cons. Santos Carvalho