quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Jornal Oficial da União Europeia

Data: 08.12.2011
Legislação: L325 L326
Comunicações e Informações: C358

Casa da Supplicação


Acidente de viação – culpa – concorrência de culpas – responsabilidade civil – direito à vida – danos não patrimoniais – danos patrimoniais – danos futuros
I - Pela via por onde circulava o motociclo conduzido pela vítima, o trânsito de veículos automóveis seguia numa única fila, com muitos carros seguidos até aos semáforos, antes de um entroncamento e depois dele, ora parados, ora em marcha muito lenta, no fenómeno, tipicamente urbano, que se designa comummente por “pára – arranca”.
II - O motociclo conduzido pela vítima foi ultrapassando, de uma só vez, todos esses veículos e fê-lo apesar de existir o entroncamento com outra via.
III - Não se diga, como faz a Relação, que o condutor do motociclo estava a observar o disposto no n.º 3 do art.º 41.º do C. da Estrada, onde se diz que não é aplicável o disposto nas alíneas a) a c) e e) do n.º 1 [designadamente, a proibição de ultrapassagem imediatamente antes e nos cruzamentos e entroncamentos] sempre que na faixa de rodagem sejam possíveis duas ou mais filas de trânsito no mesmo sentido, desde que a ultrapassagem se não faça pela parte da faixa de rodagem destinada ao trânsito em sentido oposto.
IV - Com efeito, por onde seguia o motociclo não existiam duas faixas de rodagem no mesmo sentido, mas apenas uma e, portanto, não é pelo facto do motociclo “caber” fisicamente no mesmo espaço da faixa de rodagem por onde circula um automóvel que se “criam” artificialmente duas ou mais faixas de rodagem.
V - A vantagem comparativa das motorizadas em relação aos automóveis no trânsito dentro das cidades, de poderem «furar» por entre o trânsito, não está ao abrigo de qualquer disposição legal, pois o facto de circularem pela direita ou pela esquerda por entre os automóveis que estão a aguardar em fila ou que estão no pára – arranca é proibido pelo C. da Estrada, já que a demarcação da faixa de rodagem (“via de trânsito”, na terminologia legal) existe para que cada veículo circule em segurança na sua via e não para que dois veículos circulem a par dentro desses limites (cf. art.º 1º-t, do CE).
VI - Atribuiu-se, em face de todas as circunstâncias do acidente que vitimou mortalmente o condutor do motociclo, uma percentagem de 20% de culpa para a condutora do automóvel e de 80% para a vítima.
VII - O art.º 570.º, n.º 1, do C. Civil dispõe que “quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída”.
VIII - Desta norma resulta, portanto, que quando há uma concorrência de culpas entre o lesado e uma outra pessoa na produção dos danos, o tribunal não é obrigado a indemnizar de acordo com uma determinada percentagem que atribuiu à culpa de cada um, pois pode conceder o total da indemnização, ou excluir a indemnização, ou reduzi-la.
 IX - Ora, a seguradora, para quem foi transferida a responsabilidade civil pelos danos causados pelo veículo automóvel, aceitou no presente recurso que havia uma percentagem de culpa da respectiva condutora, que contabilizou em metade.
X - Perante esta aceitação da Ré e tendo em conta que o risco da circulação de um automóvel é superior ao dos motociclos, o que, de certo modo, «contrabalança» o grau inverso na proporção das culpas, entende-se ser de fixar em metade a responsabilidade civil daquela.
XII – Quanto à perda do direito à vida e aos danos não patrimoniais da mulher e da filha menor da vítima, contabilizados pela Relação em € 65 000,00 para a primeira e € 25 000,00 para cada uma das demandantes quanto aos segundos, «a consideração conjunta de todos os factores consideráveis não consentiria – nem consente - que, segundo critérios de equidade, a indemnização devesse ou pudesse ter sido fixada em menor montante. Além de que não só «escapam à admissibilidade de recurso “as decisões dependentes da livre resolução do tribunal”» como, em caso de julgamento segundo a equidade, «devem os tribunais de recurso limitar a sua intervenção às hipóteses [que não é a dos autos] em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, “as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida”».
XIII – Quanto aos danos patrimoniais futuros, por perda de salários que a vítima iria receber na sua vida profissional, dos quais dois terços seriam destinados aos gastos domésticos, dada a incerteza económica conjuntural que atravessamos, é especulativo estar a fazer outras contas que não as que constam da “proposta razoável de indemnização”, vertidas na Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, cujas tabelas foram actualizadas pela Portaria n.º 679/2009, de 25 de Junho, onde, para se evitar o litígio, se definem critérios e valores orientadores, entre seguradora e vítima em acidente de viação.   
XIV - No que respeita a este tipo de dano, o cálculo que aí vem feito é puramente matemático e estabelece uma taxa de juro de crescimento anual de 2%, o que, no presente momento político e económico parece até exagerado, mas que serve para cobrir os eventuais desenvolvimentos positivos para a economia no futuro.
XV - Pela tabela III, anexa a esse diploma, a importância total é, para o período de 41 anos, de € 340 006,20, que se obtém multiplicando o rendimento anual, na parte destinada aos gastos domésticos, pelo factor 24,336155.
XVI – A seguradora pagará às demandantes metade dos valores calculados, depois de subtraída a importância que as mesmas receberam do Centro Nacional de Pensões, relativas às prestações por morte da vítima.

AcSTJ de 7/12/2011, Proc. 461/06.4GBVLG.P1.S1,    Relator: Conselheiro Santos Carvalho


Prazo – prazo de interposição de recurso – prática de acto após o termo do prazo – telecópia – homicídio – homicídio qualificado – motivo torpe – arma – arma branca – reflexão sobre os meios empregados – pena – medida da pena

I - O assistente interpôs o recurso, via "fax", por ligação telefónica estabelecida com o Tribunal recorrido no dia 1 de Setembro de 2011, às 23 h 59 m (hora oficial do fax do tribunal, certificada pela Secretaria), embora apenas no dia 2 de Setembro de 2011 tenha sido recebida a totalidade do recurso, aliás, logo de seguida completada com novo envio da totalidade das folhas, pois no primeiro envio faltava uma delas.
II - O artigo 150.º, nº 2, al. c), do CPC estabelece que os actos processuais podem ser praticados pelas partes por envio através de telecópia, valendo como data da prática do acto processual a da expedição.
III - A razão de ser deste preceito, a nosso ver, é a de definir como relevante o momento em que começa a ser expedido o documento que a parte deseja entregar no tribunal, pois é o único que de algum modo pode controlar, já que o envio por telecópia de um documento com várias páginas torna incerto o momento em que vai terminar a transmissão, dada a falibilidade técnica do meio usado. Enquanto no envio por correio o documento segue de uma só vez, o envio por telecópia é sincopado no tempo e pode falhar por razões estranhas ao remetente.
IV - Deste modo, o acto em causa – recurso do assistente - foi praticado ainda no último dia do prazo, com pagamento da multa respectiva (que foi cobrada) e, portanto, é tempestivo.
V -Todo o homicídio é reprovável, como reprováveis ou muito reprováveis são a esmagadora maioria dos motivos que levam a tal acto. Por isso há que encontrar uma especial censurabilidade ou perversidade no acto para o crime ser legalmente considerado como homicídio qualificado, algo que seja particularmente reprovável no domínio da culpa do agente, que o faça distinguir dos homicídios mais comuns.  
VI - A relação afectiva entre o arguido e a ofendida ainda era próxima no tempo e terminara por vontade desta, o que era um direito, sem dúvida, que lhe assistia por inteiro e que não poderia ser contestado por quem quer que fosse, muito menos com violência.
VII - Mas, o arguido descobrira, abusivamente, que o motivo (aparente) do fim do namoro fora a existência na vida da ofendida de uma outra pessoa por quem se enamorara. Também aqui o arguido teria de respeitar a vontade da sua ex-namorada, pois seria o que qualquer pessoa civilizada teria feito.
VIII - Não há, pois, que conceder que o motivo do crime foi de algum modo compreensível, pois não o foi. Foi mesmo um motivo muito reprovável, até porque não se provou que o relacionamento entre o arguido e a vítima tivesse passado para além da fronteira do «namoro», isto é, de uma fase do relacionamento em que ainda não há compromisso de vida em comum. Não eram casados, nem sequer viveram numa situação análoga, pelo menos pelo que consta dos factos provados.

IX - Mas, embora o motivo tenha sido muito reprovável, não se deve qualificá-lo como «fútil», isto é, irrelevante ou insignificante, ou como «torpe», ou seja, vil e abjecto.

X - Como a lâmina da faca utilizada pelo arguido para matar tem o comprimento de 9,5 cm, isto é, inferior a 10 cm, não é tal instrumento uma “arma branca” para os efeitos do art. 86.º, n.º 1, alínea d), da Lei 17/2009, de 6 de Maio, vigente na altura dos factos. A questão será a de saber se pode integrar-se no conceito de “outras armas brancas” [ou de um dos “instrumentos] sem aplicação definida que possam ser usados com arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse”.
XI - As “outras armas brancas sem aplicação definida”, referidas na alínea d), serão todas as que, tendo uma lâmina com aquele comprimento mínimo de 10 cm, não sirvam, por exemplo, para a cozinha, ou para o talho ou para o corte de material numa oficina (por exemplo, um punhal com 10 cm ou mais de lâmina).
XII - Já os “engenhos” ou “instrumentos” que não têm aplicação definida e podem ser usados como arma letal de agressão serão, logicamente, outros que não objectos ou instrumentos portáteis dotados de uma lâmina ou outra superfície cortante ou perfurante (navalhas, facas, etc.), pois estes só se integram nas armas da classe “E” se estiverem nas condições apontadas. Tais “engenhos” ou “instrumentos” serão, por exemplo, luvas ou bolas de aço, bastões, mocas, etc.
XIII - Consequentemente, a detenção desse instrumento pelo arguido não configura um crime de perigo comum.
XIV - O facto de ter pesquisado na internet o tipo de faca que acabou por comprar, três semanas antes de o crime ocorrer e precisamente na altura em que a relação com a ex-namorada tinha acabado, demonstra, a nosso ver, que o arguido reflectiu sobre qual o instrumento da sua vingança. Como essa faca não é de defesa, nem utilitária, o arguido comprou-a determinado a executar um acto de agressão sobre a vítima e terá ficado convencido da boa eficácia da faca pelos slogans publicitários que constavam do respectivo “site” da internet.
XV - Daqui não se pode inferir que logo aí deliberou matar a vítima e que persistiu nessa intenção até à execução do crime, pois tal não está provado. Mas pode concluir-se, pois isso está provado, que comprou uma certa e determinada faca, de agressão letal, no momento em que se começou a concretizar o ciúme, isto é, quando no seu espírito terá ficado mais consistente o motivo central que o levou ao crime.
XVI - O arguido, portanto, não tinha em sua casa uma faca que, depois, no dia do crime, levado pelo arrebatamento da ocasião, levou para o local onde o executou. Pelo contrário, o arguido adquiriu com antecedência uma faca, que cuidadosamente escolheu por pesquisa prévia na internet, tendo em vista uma futura e possível agressão sobre a vítima. E, consequentemente, no dia do homicídio, o arguido foi ao encontro da vítima com essa faca, que sabia ser a adequada para concretizar a intenção criminosa, que então se terá definitivamente formado no seu espírito.
XVII - Por outro lado, o arguido também reflectiu sobre a maneira de desvendar o que se passava com a sua namorada, que o estava a «abandonar», ao introduzir-se abusivamente na sua intimidade, por invasão dos seus meios informáticos. E, desse modo, fez-se passar por uma amiga da vítima, para que esta, enganada pelo expediente, contasse o que na verdade se estava a passar e dissesse o que ia fazer no dia do crime, o que proporcionou ao arguido, por um lado, confirmar as suas suspeitas de que havia um outro rapaz na vida da vítima, por outro lado, o local e hora onde poderia exercer a sua vingança.
XVIII - Estamos aqui perante uma reflexão sobre os meios empregados (arma do crime, motivo, local e hora) que é especialmente censurável e que deve ser determinante para considerar o homicídio como qualificado.
XIX - Ponderados todos os factores atendíveis, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade situar-se-ia nos 17/18 anos de prisão. Contudo, como dissemos, «abaixo desta medida de pena, outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas».
XX - No caso, atendendo ao quadro depressivo do arguido, sua instabilidade psíquica, mas também a um prognóstico favorável, de boa reintegração social logo que cumpra a pena, esse limite mínimo da pena situa-se nos 16 (dezasseis) anos de prisão.

AcSTJ de 7/12/2011, Proc. n.º 830/09.8PBCTB.C1.S1, Relator: Conselheiro Santos Carvalho