Daumier, La Veuve en Consultation
Les Gens de Justice N° 40, Oct. 1846
segunda-feira, 25 de outubro de 2004
A BOA-HORA CÓMICA
2 de Janeiro
Subo a Rua Nova do Almada um tanto aborrecido - acabo de pagar uma enorme conta no livreiro, e de ser apresentado ao orador que eu mais detesto, depois do cornetim. O dia é pardo, nuvens no alto, o vento a erguer da rua redemoinhos dum pó corrosivo à pele; e com um milhão de diabos!, não tenho hoje visto senão raparigas barbudas nos asfaltos!
Estas picuinhas todas irritam-me: e como o Ferin não tem novidades, enfio pela espécie de saguão estreito, que a Câmara Municipal convencionou chamar o Largo da Boa-Hora. À esquerda há uma rampa bordada de vadios e mulheres públicas, nos dias de audiência: um sumidouro público no centro: carros das obras públicas a um canto: do lado direito, uma sentina pública com letreiro por cima - e enfim, como pano de fundo a todo este cenário público de caserna e de alcouce, aí temos o maravilhoso Palácio da Justiça de Lisboa! Ao subir as escadas, acho-me numa espécie de átrio com bancos de pedra em circuito, um rodapé de azulejos gastos, o pavimento de lajes, e um cheiro inquietador de ralé que me faz náuseas. Ao fundo há um portal que dá acesso a uma pequena escada de pedra, até ao claustro; no meio do átrio, duas ou três miseráveis mobílias de mansarda, que os esbirros da lei vão penhorar, e que duas outras pobres mulheres estão velando, enrodilhadas em xales, despenteadas, com sapatos de ourelo, e tendo no ar esmagado alguma coisa de horrível que leva ao Tejo, ao Casal dos Ossos ou à cadeia.
Felizmente que a polícia está de guarda ao desespero que elas esgatanham em si próprias, rasgando os xales mais, dizendo baixo a sua vida lúgubre de ménage, com maridos bêbedos, pancadas, filhos, a casa de prego, o senhorio, e quatro ou cinco libras de cão nos armazéns de provisões.
Sobre um dos bancos, um cego ouve-as chorar as suas grandes dores, e sorri-se, aconselhando meio decilitro de marufo, àquelas três princesas... o marufo ali da Tendinha, que alarga a coragem, e espairece.
Tipos esquálidos que atravessam o átrio, detêm-se olhando as cadeiras coxas, os bancos de cozinha imundos, e os baús pelados como consciências de juízes.
Num dos montões há um retrato a óleo, primitivo, representando um figurão de farda a ouro, colarinhos estrangulados por uma gravata de coleira, manto de Cristo, meia justa - o qual, todo risonho numa barba em passa-piolho, cheira uma flor com dengosidades de fruste, segundo a tradição galante dos estoiradinhos lisboetas do século passado. Mais longe, um espelho de cómoda assenta sobre um lavatório de ferro enferrujado.
Alguns fadistas entram, zangarreando a aravia rútila dos arrabaldes: e por pândega, caricaturando os casacas, vão fazer toilette diante daquele espelhinho de casebre operário, que se envergonha e treme de pudor, por ser trazido assim brutalmente à hasta pública, em meio das chufas cínicas de quem passa. Mas nesse momento uma mulher desce do claustro, ruidosa de gomas e penduricalhos escarlates. Outras a seguem, gesticulando, espaventosas, numa gralhada de codornizes fugidas da gaiola.
Um dos fadistas chega-se:
- Então? - diz ele.
A moça alumia na cara um destes júbilos bestiais de bacante esparvoada, bate as palmas, atira-lhe ao pescoço os braços esticados.
- Aqui estou livre! O juiz estava com telha. Saíram-me só três meses de multa, a tostão.
Há uma alegria que atravessa o âmbito e salpica de nódoas os três grossos montões de mobília - chalaças, risadas, berros: enquanto as outras choram silenciosamente as suas cadeiras empenhadas.
- Saíram-lhe só três meses de multa. Que dito mais flagrante! Como se na Boa-Hora a justiça não passasse duma lotaria!
Subidos oito ou dez degraus da pequena escada de pedra, aparece um pátio quadrado, com toscos arcos que restam do antigo claustro do convento. Nos dias de audiência, uma tropa de polícias, mulheritas do povo, vagabundos, simples flâneurs e informadores de jornal, acumula-se ali numa gralhada de feira; e saltam das palestras revelações de arrepiar os cabelos ou fazer rebentar às gargalhadas. O dia em que por lá passei, fora destinado ao julgamento das parteiras.
Com muito custo, atropelando massas de gente lacrimosa, que se aglomerava pelo corredor que leva à sala de audiência, lá conseguimos captar as atenções dum cavalheiro, o qual, untuoso, trocando o b pelo v e vice-versa, condescende a ouvir os nossos títulos de jornalista interessado na questão... oh!, pelo lado pitoresco simplesmente!
O cego do átrio viera subindo também, pela mão duma rapariguita esguedelhada.
- O senhor escrivão Carvalho, meu senhor?
- Não conheço, meu amigo. E vossemecê que vem fazer aqui?
- Saiba Vossa Senhoria que sou testemunha.
- Testemunha... testemunha ocular?
- Assim, assim...
Lá conseguimos entrar na sala de audiência: é uma casa oblonga, baixa de tectos, e com o pavimento imundo de escarros secos, palitos quebrados e poeira em crostas de meia polegada de espessura. Vai-lhe ao redor um rodapé de azulejos pálidos, recortando vasos de flores sobre a caliça parda das paredes. Uma grade de rampa separa o banco dos réus, do espaço reservado aos curiosos. Entre duas janelas, ao fundo, fica o púlpito do senhor juiz, um pesadão, de cabeça em pêra, sangue nos olhos, a palavra difícil, a elocução atarantada. À direita, os senhores jurados amesendam, num velho banco, a sua sagacidade bronca de hipopótamos. Um deles, grosso, obeso, glabro, com lunetas de tartaruga e olheiras papudas - cinquenta anos de honra em panos crus - é um austero mercador da Rua Augusta, cuja mulher, muito mais nova, há seis anos começa a preferir a esse marido apático de sessenta anos dois rapagões de trinta que há em casa, sob o pseudónimo adorável de caixeiros. À esquerda deste, um outro verde, a suíça dura, a mão peluda, um prognatismo feroz de australiano, parece ir criticando na sala os temperamentos através da factura do calçado, sobre que ele esparge um olho torto, minaz, desorientado, de sapateiro cúpido e facínora. E mais longe quatro têm cara de cretinos e riem vagamente um riso em navalha, escorrido dos beiços lívidos, sem comissuras, imóveis, como o das caraças de pataco.
Ainda um quinto jurado é digno de croquis. Traz um bigodão colado no beiço, o qual se despenha em catarata, até lhe ocultar o queixo e o colarinho. Sob uma tinta lúgubre, ressaem-lhe em pirâmide as maçãs do rosto, acidentadas; duas rochas-tarpeias por onde os globos dos olhos parece que vão precipitar-se: e inquieto, como um malandro feroz que a polícia espicaça, ei-lo corre com a vista a sala inteira, saca do bolso papelinhos sebentos, raspadeiras, canivetes, boquilhas, que fica a mirar, e depois embrulha, e depois guarda, para logo em seguida os tornar a exibir sobre os joelhos, esbugalhando os olhos contra as acusadas, como se aquela camaradagem de infâmia o fascinasse, e o banco onde elas se acurvam estivesse reclamando a intimidade dos fundilhos das suas calças pretas.
E este é o sinédrio de inteligências claras e consciências aplicadas, que decidirá se acaso as tecedeiras de anjos incorreram no crime, picando com estiletes de meio metro os ventres inflados das criadas ladinas, e das chics esposas que sob a aquiescência dos maridos fizeram da fecundidade uma vergonha.
Ficam da esquerda, perto do púlpito do senhor juiz, as carteirinhas destinadas ao ministério público e advogados. A sala é tão estreita, que todos estes funcionários se acotovelam uns aos outros, as rés, advogados, juiz e mais comparsaria da sala, incluindo os jornalistas, que escrevem sobre tiras de almaço as suas impressões. Toda esta família sua, e se permite exalar patchoulis de fábrica própria, a ponto de parecer que a comédia da audiência transmutou de cenário, e que o segundo acto já não decorre no templo da Justiça, senão nuns irmãos unidos que há no largo, com o seu letreiro municipal por cima da porta.
Os Russos dizem: é necessário que a cabana cheire ao dono. E na Boa-Hora assim sucede; a Justiça cheira efectivamente ao tribunal.
Depois do juiz, a fisionomia que mais fere é o delegado, os crocs do bigode recurvos em proa de saveiro, os seus anéis de oiro fosco, a sua falta de vista e a sua beca. Nunca vejo estes togados elegantes, com mãos de bispo, o ar vitorioso, e rescendendo a perfumes de White-rose e Peau-d'Espagne, que a mim mesmo não pergunte se eles irão cantar alguma ária na audiência, tão familiarmente se abraçam, no meu espírito, a noção da justiça oficial contemporânea, com o teatro, que já hoje nos dá da magistratura uma ilusão bem mais emocional.
Entre os advogado, um gordo, baixote, apesunhado, com pequeninas feições perdidas a um canto da sua enormíssima cara macilenta, tem dois olhitos que luzem no fundo duns buracos, sob uns sobrolhos hirsutos, como pedaços de hulha ao pé de dois molhos secos de carqueja. Oh, não tenham medo que haja fogo! Este advogado é de acender na caixa, e nem mesmo a dizer banalidades produz chama.
Um outro é rabulista, ele azougado, com saracoteios maganos de compadre: e os olhos gotejando resina, como duas ameixas engelhadas.
Este defende a esmo os criminosos, mostrando um álbum pelos corredores, à clientela, com as amostrinhas dos discursos, os argumentozinhos, os preços - e levando a garrafa faz-se abatimento. O seu truc é já hoje quase corriqueiro. Começa recordando ao júri as tremendas responsabilidades que impendem dum veredictum leviana ou malevolamente formulado.
Durante os interrogatórios põe-se a estudar as caras dos jurados. Júri em que haja, pelo menos, dois tolos, pertence-lhe - porque este domínio boquiabre um asno, pelo mesmo sistema por que um sapo fascina e estarrece uma doninha!
Ora, num curro de nove jurados, mesmo escolhidos a capricho, a contribuição de dois tolos é duma tal benignidade!... Lombroso disse uma vez que num grupo de seis cidadãos assembleiados para a discussão de coisa pública, quase era certo poder-se arrebanhar aí a sua dúzia e meia de patetas, sem menoscabo à toleima que cada um deles pudesse desenvolver pessoalmente.
O certo é que o meu sacripanta triunfa. Os assassinos passam-lhe todos por bêbedos, os larápios por famintos; e quanto ao adultério... histerismo!
Da sua boca loquaz, amachucada, granizam, jactitando, as frases da defesa, feitas de tudo, sentimentalidades da Biblioteca das Damas, trucs forenses, partidas, trapalhadas. E aquilo admite-se, os juízes sabem, o ministério público sorri-se, todos lhe acham graça -o alma do diabo!, o rabulista!- e indulgente, o tribunal encolhe os ombros e deixa-lhe passar a cambada de clientes, porque se não conseguiu afinal provar o roubo, ou porque não parece ter havido premeditação no assassinato.
A justiça antiga, de gládio e balança, as grandes mamelas turgentes sob o peplum, amachucou-a a Boa-Hora numa caricatura soez de alcoviteira, cúpida e manhosa, que pede cinco tostões por conta das fianças, e vai de porta em porta, e influência em influência, entregar a carta de empenho que faz vergar a consciência dos juízes, e que ao mesmo tempo espapaça a lei, como uma cataplasma de peros, no sentido cobarde do perdão.
A piedade que hoje move a simpatia do homem diante de todas as espécies de crimes, em vez de dirigir exclusivamente sobre as vítimas os seus focos de sensibilidade lírica, nevrótica, excessiva por vezes, teima em abraçar no mesmo jorro também os criminosos, que ela desculpa chamando-lhes revoltados, heróis talvez, larvados, doidos, e procurando enfim explicar, pelo bom lado, os seus impulsos cruéis de bestas-feras.
No nosso tempo, a honra é conforme. Revolta-se a gente aos vinte anos contra coisas que aos sessenta legitima sem a mais leve hesitação de consciência. Um processo caminha até deparar com o dinheiro que o asfixia na. poeira dum arquivo. Tem-se razão, conforme a argúcia do advogado que nos serve. Desmandos imperdoáveis na classe baixa são leviandades apenas na classe média, e daí para cima, qualidades!
Lassa de tudo, sob um democrático e igualitário regime que lhe tirou o carácter, a sociedade de hoje é chata e medíocre, fora dos seus acessos de febre convulsiva, e quase não tem lucidez para demarcar fronteiras entre a desonra e a probidade.
Pranzini e D. Bosco nos parecem igualmente interessantes. No fundo da nossa alma, nenhuma solidez de convicções, nenhuma crença, respeito algum. Por exemplo, a religião serve de escárnio à populaça. A lei é letra morta. Não há aristocracias de classe, impondo-se às rebeliões, como grandes portas brônzeas de fortaleza. E por outro lado, nenuma ilustração, nenhuma cultura a escorar a consciência histerizada por todos estes desmoronamentos!
Ora, desde que a ilusão daquelas sagradas coisas se perde, nós não podemos deixar de pôr a blague ao serviço dos nossos desalentos.
E é singularíssima a impressão que o Tribunal da Boa-Hora já começa a produzir em toda a gente. A princípio, ainda se percebe a distância que medeia entre os magistrados, os réus, e os oficiais de diligências. Porém, pouco a pouco, o ar enturva-se, os olhos vão perdendo a percepção contornada das imagens, baralham-se as figuras, cabriolam -e aparecem depois os réus com as togas dos juízes, os advogados sobre o banco dos réus, os juízes de oficiais de diligências... E enquanto o cego aconselha marufo à sociedade, ouve-se no átrio a voz dos contratadores oferecendo senhas de absolvição para todas as espécies de crimes, mais baratas que na casa, e a gralhada das moças que esbracejam, regougando:
- O juiz estava com telha, ó Daniel! Saíram-me só três meses de multa. Saíram-me, entenderam? Como se na Boa-Hora a justiça fosse uma questão de lotaria!
Fialho de Almeida, Pasquinadas (Jornal dum Vagabundo), 1890
Utilizou-se a edição do Círculo de Leitores, Obras Completas, IV Volume, 1992
Subo a Rua Nova do Almada um tanto aborrecido - acabo de pagar uma enorme conta no livreiro, e de ser apresentado ao orador que eu mais detesto, depois do cornetim. O dia é pardo, nuvens no alto, o vento a erguer da rua redemoinhos dum pó corrosivo à pele; e com um milhão de diabos!, não tenho hoje visto senão raparigas barbudas nos asfaltos!
Estas picuinhas todas irritam-me: e como o Ferin não tem novidades, enfio pela espécie de saguão estreito, que a Câmara Municipal convencionou chamar o Largo da Boa-Hora. À esquerda há uma rampa bordada de vadios e mulheres públicas, nos dias de audiência: um sumidouro público no centro: carros das obras públicas a um canto: do lado direito, uma sentina pública com letreiro por cima - e enfim, como pano de fundo a todo este cenário público de caserna e de alcouce, aí temos o maravilhoso Palácio da Justiça de Lisboa! Ao subir as escadas, acho-me numa espécie de átrio com bancos de pedra em circuito, um rodapé de azulejos gastos, o pavimento de lajes, e um cheiro inquietador de ralé que me faz náuseas. Ao fundo há um portal que dá acesso a uma pequena escada de pedra, até ao claustro; no meio do átrio, duas ou três miseráveis mobílias de mansarda, que os esbirros da lei vão penhorar, e que duas outras pobres mulheres estão velando, enrodilhadas em xales, despenteadas, com sapatos de ourelo, e tendo no ar esmagado alguma coisa de horrível que leva ao Tejo, ao Casal dos Ossos ou à cadeia.
Felizmente que a polícia está de guarda ao desespero que elas esgatanham em si próprias, rasgando os xales mais, dizendo baixo a sua vida lúgubre de ménage, com maridos bêbedos, pancadas, filhos, a casa de prego, o senhorio, e quatro ou cinco libras de cão nos armazéns de provisões.
Sobre um dos bancos, um cego ouve-as chorar as suas grandes dores, e sorri-se, aconselhando meio decilitro de marufo, àquelas três princesas... o marufo ali da Tendinha, que alarga a coragem, e espairece.
Tipos esquálidos que atravessam o átrio, detêm-se olhando as cadeiras coxas, os bancos de cozinha imundos, e os baús pelados como consciências de juízes.
Num dos montões há um retrato a óleo, primitivo, representando um figurão de farda a ouro, colarinhos estrangulados por uma gravata de coleira, manto de Cristo, meia justa - o qual, todo risonho numa barba em passa-piolho, cheira uma flor com dengosidades de fruste, segundo a tradição galante dos estoiradinhos lisboetas do século passado. Mais longe, um espelho de cómoda assenta sobre um lavatório de ferro enferrujado.
Alguns fadistas entram, zangarreando a aravia rútila dos arrabaldes: e por pândega, caricaturando os casacas, vão fazer toilette diante daquele espelhinho de casebre operário, que se envergonha e treme de pudor, por ser trazido assim brutalmente à hasta pública, em meio das chufas cínicas de quem passa. Mas nesse momento uma mulher desce do claustro, ruidosa de gomas e penduricalhos escarlates. Outras a seguem, gesticulando, espaventosas, numa gralhada de codornizes fugidas da gaiola.
Um dos fadistas chega-se:
- Então? - diz ele.
A moça alumia na cara um destes júbilos bestiais de bacante esparvoada, bate as palmas, atira-lhe ao pescoço os braços esticados.
- Aqui estou livre! O juiz estava com telha. Saíram-me só três meses de multa, a tostão.
Há uma alegria que atravessa o âmbito e salpica de nódoas os três grossos montões de mobília - chalaças, risadas, berros: enquanto as outras choram silenciosamente as suas cadeiras empenhadas.
- Saíram-lhe só três meses de multa. Que dito mais flagrante! Como se na Boa-Hora a justiça não passasse duma lotaria!
Subidos oito ou dez degraus da pequena escada de pedra, aparece um pátio quadrado, com toscos arcos que restam do antigo claustro do convento. Nos dias de audiência, uma tropa de polícias, mulheritas do povo, vagabundos, simples flâneurs e informadores de jornal, acumula-se ali numa gralhada de feira; e saltam das palestras revelações de arrepiar os cabelos ou fazer rebentar às gargalhadas. O dia em que por lá passei, fora destinado ao julgamento das parteiras.
Com muito custo, atropelando massas de gente lacrimosa, que se aglomerava pelo corredor que leva à sala de audiência, lá conseguimos captar as atenções dum cavalheiro, o qual, untuoso, trocando o b pelo v e vice-versa, condescende a ouvir os nossos títulos de jornalista interessado na questão... oh!, pelo lado pitoresco simplesmente!
O cego do átrio viera subindo também, pela mão duma rapariguita esguedelhada.
- O senhor escrivão Carvalho, meu senhor?
- Não conheço, meu amigo. E vossemecê que vem fazer aqui?
- Saiba Vossa Senhoria que sou testemunha.
- Testemunha... testemunha ocular?
- Assim, assim...
Lá conseguimos entrar na sala de audiência: é uma casa oblonga, baixa de tectos, e com o pavimento imundo de escarros secos, palitos quebrados e poeira em crostas de meia polegada de espessura. Vai-lhe ao redor um rodapé de azulejos pálidos, recortando vasos de flores sobre a caliça parda das paredes. Uma grade de rampa separa o banco dos réus, do espaço reservado aos curiosos. Entre duas janelas, ao fundo, fica o púlpito do senhor juiz, um pesadão, de cabeça em pêra, sangue nos olhos, a palavra difícil, a elocução atarantada. À direita, os senhores jurados amesendam, num velho banco, a sua sagacidade bronca de hipopótamos. Um deles, grosso, obeso, glabro, com lunetas de tartaruga e olheiras papudas - cinquenta anos de honra em panos crus - é um austero mercador da Rua Augusta, cuja mulher, muito mais nova, há seis anos começa a preferir a esse marido apático de sessenta anos dois rapagões de trinta que há em casa, sob o pseudónimo adorável de caixeiros. À esquerda deste, um outro verde, a suíça dura, a mão peluda, um prognatismo feroz de australiano, parece ir criticando na sala os temperamentos através da factura do calçado, sobre que ele esparge um olho torto, minaz, desorientado, de sapateiro cúpido e facínora. E mais longe quatro têm cara de cretinos e riem vagamente um riso em navalha, escorrido dos beiços lívidos, sem comissuras, imóveis, como o das caraças de pataco.
Ainda um quinto jurado é digno de croquis. Traz um bigodão colado no beiço, o qual se despenha em catarata, até lhe ocultar o queixo e o colarinho. Sob uma tinta lúgubre, ressaem-lhe em pirâmide as maçãs do rosto, acidentadas; duas rochas-tarpeias por onde os globos dos olhos parece que vão precipitar-se: e inquieto, como um malandro feroz que a polícia espicaça, ei-lo corre com a vista a sala inteira, saca do bolso papelinhos sebentos, raspadeiras, canivetes, boquilhas, que fica a mirar, e depois embrulha, e depois guarda, para logo em seguida os tornar a exibir sobre os joelhos, esbugalhando os olhos contra as acusadas, como se aquela camaradagem de infâmia o fascinasse, e o banco onde elas se acurvam estivesse reclamando a intimidade dos fundilhos das suas calças pretas.
E este é o sinédrio de inteligências claras e consciências aplicadas, que decidirá se acaso as tecedeiras de anjos incorreram no crime, picando com estiletes de meio metro os ventres inflados das criadas ladinas, e das chics esposas que sob a aquiescência dos maridos fizeram da fecundidade uma vergonha.
Ficam da esquerda, perto do púlpito do senhor juiz, as carteirinhas destinadas ao ministério público e advogados. A sala é tão estreita, que todos estes funcionários se acotovelam uns aos outros, as rés, advogados, juiz e mais comparsaria da sala, incluindo os jornalistas, que escrevem sobre tiras de almaço as suas impressões. Toda esta família sua, e se permite exalar patchoulis de fábrica própria, a ponto de parecer que a comédia da audiência transmutou de cenário, e que o segundo acto já não decorre no templo da Justiça, senão nuns irmãos unidos que há no largo, com o seu letreiro municipal por cima da porta.
Os Russos dizem: é necessário que a cabana cheire ao dono. E na Boa-Hora assim sucede; a Justiça cheira efectivamente ao tribunal.
Depois do juiz, a fisionomia que mais fere é o delegado, os crocs do bigode recurvos em proa de saveiro, os seus anéis de oiro fosco, a sua falta de vista e a sua beca. Nunca vejo estes togados elegantes, com mãos de bispo, o ar vitorioso, e rescendendo a perfumes de White-rose e Peau-d'Espagne, que a mim mesmo não pergunte se eles irão cantar alguma ária na audiência, tão familiarmente se abraçam, no meu espírito, a noção da justiça oficial contemporânea, com o teatro, que já hoje nos dá da magistratura uma ilusão bem mais emocional.
Entre os advogado, um gordo, baixote, apesunhado, com pequeninas feições perdidas a um canto da sua enormíssima cara macilenta, tem dois olhitos que luzem no fundo duns buracos, sob uns sobrolhos hirsutos, como pedaços de hulha ao pé de dois molhos secos de carqueja. Oh, não tenham medo que haja fogo! Este advogado é de acender na caixa, e nem mesmo a dizer banalidades produz chama.
Um outro é rabulista, ele azougado, com saracoteios maganos de compadre: e os olhos gotejando resina, como duas ameixas engelhadas.
Este defende a esmo os criminosos, mostrando um álbum pelos corredores, à clientela, com as amostrinhas dos discursos, os argumentozinhos, os preços - e levando a garrafa faz-se abatimento. O seu truc é já hoje quase corriqueiro. Começa recordando ao júri as tremendas responsabilidades que impendem dum veredictum leviana ou malevolamente formulado.
Durante os interrogatórios põe-se a estudar as caras dos jurados. Júri em que haja, pelo menos, dois tolos, pertence-lhe - porque este domínio boquiabre um asno, pelo mesmo sistema por que um sapo fascina e estarrece uma doninha!
Ora, num curro de nove jurados, mesmo escolhidos a capricho, a contribuição de dois tolos é duma tal benignidade!... Lombroso disse uma vez que num grupo de seis cidadãos assembleiados para a discussão de coisa pública, quase era certo poder-se arrebanhar aí a sua dúzia e meia de patetas, sem menoscabo à toleima que cada um deles pudesse desenvolver pessoalmente.
O certo é que o meu sacripanta triunfa. Os assassinos passam-lhe todos por bêbedos, os larápios por famintos; e quanto ao adultério... histerismo!
Da sua boca loquaz, amachucada, granizam, jactitando, as frases da defesa, feitas de tudo, sentimentalidades da Biblioteca das Damas, trucs forenses, partidas, trapalhadas. E aquilo admite-se, os juízes sabem, o ministério público sorri-se, todos lhe acham graça -o alma do diabo!, o rabulista!- e indulgente, o tribunal encolhe os ombros e deixa-lhe passar a cambada de clientes, porque se não conseguiu afinal provar o roubo, ou porque não parece ter havido premeditação no assassinato.
A justiça antiga, de gládio e balança, as grandes mamelas turgentes sob o peplum, amachucou-a a Boa-Hora numa caricatura soez de alcoviteira, cúpida e manhosa, que pede cinco tostões por conta das fianças, e vai de porta em porta, e influência em influência, entregar a carta de empenho que faz vergar a consciência dos juízes, e que ao mesmo tempo espapaça a lei, como uma cataplasma de peros, no sentido cobarde do perdão.
A piedade que hoje move a simpatia do homem diante de todas as espécies de crimes, em vez de dirigir exclusivamente sobre as vítimas os seus focos de sensibilidade lírica, nevrótica, excessiva por vezes, teima em abraçar no mesmo jorro também os criminosos, que ela desculpa chamando-lhes revoltados, heróis talvez, larvados, doidos, e procurando enfim explicar, pelo bom lado, os seus impulsos cruéis de bestas-feras.
No nosso tempo, a honra é conforme. Revolta-se a gente aos vinte anos contra coisas que aos sessenta legitima sem a mais leve hesitação de consciência. Um processo caminha até deparar com o dinheiro que o asfixia na. poeira dum arquivo. Tem-se razão, conforme a argúcia do advogado que nos serve. Desmandos imperdoáveis na classe baixa são leviandades apenas na classe média, e daí para cima, qualidades!
Lassa de tudo, sob um democrático e igualitário regime que lhe tirou o carácter, a sociedade de hoje é chata e medíocre, fora dos seus acessos de febre convulsiva, e quase não tem lucidez para demarcar fronteiras entre a desonra e a probidade.
Pranzini e D. Bosco nos parecem igualmente interessantes. No fundo da nossa alma, nenhuma solidez de convicções, nenhuma crença, respeito algum. Por exemplo, a religião serve de escárnio à populaça. A lei é letra morta. Não há aristocracias de classe, impondo-se às rebeliões, como grandes portas brônzeas de fortaleza. E por outro lado, nenuma ilustração, nenhuma cultura a escorar a consciência histerizada por todos estes desmoronamentos!
Ora, desde que a ilusão daquelas sagradas coisas se perde, nós não podemos deixar de pôr a blague ao serviço dos nossos desalentos.
E é singularíssima a impressão que o Tribunal da Boa-Hora já começa a produzir em toda a gente. A princípio, ainda se percebe a distância que medeia entre os magistrados, os réus, e os oficiais de diligências. Porém, pouco a pouco, o ar enturva-se, os olhos vão perdendo a percepção contornada das imagens, baralham-se as figuras, cabriolam -e aparecem depois os réus com as togas dos juízes, os advogados sobre o banco dos réus, os juízes de oficiais de diligências... E enquanto o cego aconselha marufo à sociedade, ouve-se no átrio a voz dos contratadores oferecendo senhas de absolvição para todas as espécies de crimes, mais baratas que na casa, e a gralhada das moças que esbracejam, regougando:
- O juiz estava com telha, ó Daniel! Saíram-me só três meses de multa. Saíram-me, entenderam? Como se na Boa-Hora a justiça fosse uma questão de lotaria!
Fialho de Almeida, Pasquinadas (Jornal dum Vagabundo), 1890
Utilizou-se a edição do Círculo de Leitores, Obras Completas, IV Volume, 1992
A JUSTIÇA DE MENORES NO BRASIL
O Dr. Siro Darlan, Juiz Titular da 1ª Vara da Infância e Juventude do Rio de Janeiro, que veio a Portugal para participar na II Bienal de Jurisprudência de Direito da Família e dos Menores, vai realizar duas Conferências, uma no Porto e outra em Lisboa.
PORTO
Dia 26 de Outubro, às 18h30m, na Sala de Audiência dos Tribunal da Relação
O tema é:
"A EFECTIVAÇÃO DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. POLÍTICAS PÚBLICAS E CARÊNCIAS. CRIANÇAS NAS RUAS E VIOLÊNCIA CONTRA AS CRIANÇAS NO BRASIL"
LISBOA
Dia 28 de Outubro, às 18h30m, na Auditório do Centro de Estudos Judiciários
O tema é:
"JUSTIÇA DE MENORES NO BRASIL. COMPETÊNCIAS, PROGRAMAS SOCIAIS E MODUS OPERANDI"
Recomendo vivamente.
PORTO
Dia 26 de Outubro, às 18h30m, na Sala de Audiência dos Tribunal da Relação
O tema é:
"A EFECTIVAÇÃO DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. POLÍTICAS PÚBLICAS E CARÊNCIAS. CRIANÇAS NAS RUAS E VIOLÊNCIA CONTRA AS CRIANÇAS NO BRASIL"
LISBOA
Dia 28 de Outubro, às 18h30m, na Auditório do Centro de Estudos Judiciários
O tema é:
"JUSTIÇA DE MENORES NO BRASIL. COMPETÊNCIAS, PROGRAMAS SOCIAIS E MODUS OPERANDI"
Recomendo vivamente.
Legislação do dia
Portaria n.º 1350/2004. DR 250 SÉRIE I-B de 2004-10-23 – Ministério da Justiça: Fixa os termos a que obedece o registo das entidades certificadoras que emitem certificados qualificados
Portaria n.º 1351/2004. DR 250 SÉRIE I-B de 2004-10-23 – Ministério da Agricultura, Pescas e Florestas: Altera a Portaria n.º 677/2004, de 19 de Junho, que estabelece as regras nacionais complementares relativas aos fundos operacionais, aos programas operacionais e à ajuda financeira do Regulamento (CE) n.º 1433/2003, da Comissão, de 11 de Agosto
Portaria n.º 1352/2004. DR 250 SÉRIE I-B de 2004-10-23 – Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações: Cria sobrescritos pré-franquiados de cor branca com a representação da franquia pré-impressa, identificada pela designação «Pré-pago» ou «Postage Paid» e por um logótipo de Correio Azul
Portaria n.º 1353/2004. DR 250 SÉRIE I-B de 2004-10-23 – Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações: Aprova os novos modelos de cartão de identificação para o pessoal dos gabinetes dos membros do Governo do Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, bem como para o pessoal dos serviços e organismos na sua dependência que não disponham de cartões de identificação próprios
Portaria n.º 1354/2004. DR 251 SÉRIE I-B de 2004-10-25 – Presidência do Conselho de Ministros: Cria a linha de financiamento Inclusão Digital - Linha de apoio financeiro ao Programa Nacional para a Participação dos Cidadãos com Necessidades Especiais na Sociedade da Informação
Despacho Normativo n.º 41/2004. DR 251 SÉRIE I-B de 2004-10-25 – Ministério da Segurança Social, da Família e da Criança: Aprova as normas que estabelecem os critérios de atribuição do subsídio de sobrevivência, do subsídio mensal complementar e dos apoios sociais de natureza eventual
Decreto-Lei n.º 218-A/2004. DR 251 SÉRIE I-A 1º SUPLEMENTO de 2004-10-25 – Ministério das Finanças e da Administração Pública: Aprova a 5.ª fase do processo de reprivatização do capital social da EDP - Electricidade de Portugal, S. A.
Portaria n.º 1130/2004 (2.ª série). DR 250 SÉRIE II de 2004-10-23 – Ministérios da Defesa Nacional, da Administração Interna e da Justiça: Define o trajo profissional dos juízes militares ao abrigo do disposto no artigo 11.º da Lei n.º 101/2003, de 15 de Novembro
Portaria n.º 1351/2004. DR 250 SÉRIE I-B de 2004-10-23 – Ministério da Agricultura, Pescas e Florestas: Altera a Portaria n.º 677/2004, de 19 de Junho, que estabelece as regras nacionais complementares relativas aos fundos operacionais, aos programas operacionais e à ajuda financeira do Regulamento (CE) n.º 1433/2003, da Comissão, de 11 de Agosto
Portaria n.º 1352/2004. DR 250 SÉRIE I-B de 2004-10-23 – Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações: Cria sobrescritos pré-franquiados de cor branca com a representação da franquia pré-impressa, identificada pela designação «Pré-pago» ou «Postage Paid» e por um logótipo de Correio Azul
Portaria n.º 1353/2004. DR 250 SÉRIE I-B de 2004-10-23 – Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações: Aprova os novos modelos de cartão de identificação para o pessoal dos gabinetes dos membros do Governo do Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, bem como para o pessoal dos serviços e organismos na sua dependência que não disponham de cartões de identificação próprios
Portaria n.º 1354/2004. DR 251 SÉRIE I-B de 2004-10-25 – Presidência do Conselho de Ministros: Cria a linha de financiamento Inclusão Digital - Linha de apoio financeiro ao Programa Nacional para a Participação dos Cidadãos com Necessidades Especiais na Sociedade da Informação
Despacho Normativo n.º 41/2004. DR 251 SÉRIE I-B de 2004-10-25 – Ministério da Segurança Social, da Família e da Criança: Aprova as normas que estabelecem os critérios de atribuição do subsídio de sobrevivência, do subsídio mensal complementar e dos apoios sociais de natureza eventual
Decreto-Lei n.º 218-A/2004. DR 251 SÉRIE I-A 1º SUPLEMENTO de 2004-10-25 – Ministério das Finanças e da Administração Pública: Aprova a 5.ª fase do processo de reprivatização do capital social da EDP - Electricidade de Portugal, S. A.
Portaria n.º 1130/2004 (2.ª série). DR 250 SÉRIE II de 2004-10-23 – Ministérios da Defesa Nacional, da Administração Interna e da Justiça: Define o trajo profissional dos juízes militares ao abrigo do disposto no artigo 11.º da Lei n.º 101/2003, de 15 de Novembro
Casa da Suplicação (IV)
Abuso de confiança fiscal — Aplicação da lei no tempo — Apropriação — Suspensão da pena — Constitucionalidade
1 – Se a lei do tempo da prática dos factos (RJFNA) exigia, para a verificação do crime de abuso fiscal, a apropriação em proveito próprio, pelo agente, das contribuições devidas, diversamente do que sucede com a lei actual (RGIT) é convocado o n.º 1 do art. 2.º do C. Penal e não o n.º 4, pois é à luz da lei no momento da prática dos factos que se dever determinar se a conduta é punível; se o não for, já não há lugar à ponderação da aplicabilidade de lei posterior que seria então sempre “desfavorável”.
2 – A apropriação a que se reporta o abuso de confiança fiscal previsto no RJFNA, satisfaz-se com a não entrega de contribuições ao Estado, dando-lhes outro destino, como tem entendido o Supremo Tribunal de Justiça: se o agente não entrega à administração tributária as prestações que deduziu e era obrigado a entregar, é porque se apropriou delas, dando-lhes assim um destino diferente daquele que lhe era imposto por lei.
3 – O art. 24.º, do RJIFNA (DL n.º 20-A/90, de 15-01, na redacção do DL n.º 294/93, de 24-11), ao falar em apropriação de prestação tributária que se estava obrigado a entregar ao credor fiscal, não conflitua com o disposto no art. 105.º, do RGIT (Lei n.º 15/01, de 05-06), que lhe sucedeu, uma vez que este último, embora não fale expressamente de apropriação, a ideia permanece no espírito do novo texto, ao acentuar a recusa ilegal de entrega à administração tributária da prestação. Na verdade, se o agente não faz entrega ao fisco das prestações que deduziu e era obrigado a entregar, é porque se apropriou delas, no sentido de que lhes deu destino diferente daquele que era imposto por lei, já que a ideia fulcral do crime de abuso de confiança, seja ele fiscal ou não, é sempre a de que se dá a valores licitamente recebidos um rumo diferente daquele a que se está obrigado (Ac. de 23/04/2003, CJ XXVIII, 1, 234)
4 – As normas dos artigos 11.º n.º 7 do RJIFNA e 14.º n.º 1 do RGIT não são inconstitucionais.
Ac. de 14.10.2004 do STJ, Proc. n.º 3274/04-5, Relator: Cons. Simas Santos
Crime de tráfico de estupefacientes — medida da pena — perda de veículo
1 – Sendo elevados os graus da ilicitude e da culpa, ressaltando no primeiro aspecto a insistência do arguido na prática criminosa, mesmo depois de uma primeira detenção, o longo período de tempo já provado em que se vem dedicando ao tráfico, e as quantidades já relevantes de droga que lhe foram encontradas, assim como a sua natureza, já que envolvendo as chamadas «drogas duras», portanto de efeitos mais perniciosos para a saúde dos consumidores, sem esquecer que o móbil provado foi o de obter lucros sem trabalhar, numa moldura penal de 4 a 12 anos de prisão, em que o ponto médio se situa nos 8 anos, e para onde, razoavelmente, ante os factos provados, se podia apontar a fixação da pena concreta, a de 6 anos que lhe foi aplicada já valoriza acima do atendível, a falta de antecedentes criminais conhecidos e a «jovem idade» do arguido, ambas de pouco relevo no caso.
2 - Declarado perdido a favor do Estado, um motociclo «por ter sido adquirido com proventos obtidos no tráfico de drogas», tal declaração é legal por respeito pelo disposto no artigo 35.º do DL n.º 15/93, de 22/1, na sua actual redacção, que estatui que «são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados para a prática de uma infracção prevista no presente diploma ou que por esta tivessem sido produzidos», o que acontece, segundo o n.º 3 daquele dispositivo, ainda que «nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto», logo, independentemente da propriedade do veículo ser ou não do arguido.
Ac. De 14.10.2004 do STJ, proc. N.º 3204/04-5, Relator: Cons. Pereira Madeira
Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça — irrecorribilidade — demissão
1 – Não é admissível recurso «de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de primeira instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infracções».
2 – Tal doutrina tem aplicação no caso de o acórdão proferido pela Relação, confirmativo de decisão da primeira instância, quando a medida abstracta da pena correspondente aos crimes, objecto da condenação, não seja superior a oito anos, mesmo que o tribunal da relação tenha reduzido a pena imposta aos recorrentes da decisão da primeira instância, ou aligeirado a pena, nomeadamente substituindo a pena de prisão por pena suspensa.
Ac. de 14.10.2004 do STJ, proc. n.º 2829/04-5, Relator: Cons. Pereira Madeira
Tráfico de estupefacientes — matéria de facto — competência do Supremo Tribunal de Justiça — estrangeiro não residente — pena acessória de expulsão
1 – No actual regime processual penal está fora do âmbito legal do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a reedição dos vícios apontados à decisão de facto da 1.ª instância, em tudo o que foi objecto de conhecimento pela Relação, mormente quando, para além do objecto do recurso já apreciado pelo tribunal recorrido, não se vislumbram outros vícios a que fosse mister dar resposta oficiosamente.
2 – Se não é de subestimar a gravidade do crime que o arguido decidiu cometer – tráfico de droga – importa ter em conta, contudo, que, dentro da relatividade das coisas, não atingindo o caso os limites quantitativos do «grande tráfico», embora a ele indelevelmente ligado, quanto mais não seja, como adjuvante na difusão pretendida, e não se tendo apurado outros factos desfavoráveis sobre a personalidade do arguido – a situação de ignorância que as instâncias deixaram pendente sobre o tema de facto não o pode desfavorecer – não desvalorizando ainda a circunstância de o recorrente não ter antecedentes criminais conhecidos, apesar dos seus actuais 38 anos de idade, enfim, usando de algum optimismo em que a pena de prisão cumpra um dos os seus objectivos primários – essencialmente, a ressocialização – deitando ainda um olhar de comiseração pela criança de 1 ano em quem o pai devia ter pensado antes e não pensou, enfim, tendo em conta que a situação de ilegalidade em que o arguido se encontra em Portugal tem outras vias para além da judicial para ser controlada, concorda-se em que possa ter existido algum excesso no decretamento da pena acessória de expulsão, que não é automático.
Ac. de 14.10.2004 do STJ, proc. n.º 3018/04-5, Relator: Cons. Pereira Madeira
In dubio pro reo — Questão de facto — Presunções naturais
1 – O Supremo Tribunal de Justiça só pode sindicar a aplicação do princípio in dubio pro reo quando da decisão recorrida resulta que o Tribunal a quo ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido. Não se verificando esta hipótese, resta a aplicação do mesmo princípio enquanto regra de apreciação da prova no âmbito do dispositivo do art. 127.º do CPP que escapa ao poder de censura do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista.
2 – Saber se o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida, é uma questão de facto que exorbita o poder de cognição do Supremo Tribunal de Justiça enquanto tribunal de revista.
3 – As conclusões ou ilações que as instâncias extraem da matéria de facto são elas mesmo matéria de facto que escapam à censura do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista.
4 – O sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto desconhecido para um facto conhecido; toda a prova indirecta se faz valer através desta espécie de presunções
5 – O recurso às presunções naturais não viola o princípio in dubio pro reo. Elas cedem perante a simples dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto, pelo que aquele princípio constitui o limite àquele recurso.
Ac. de 21.10.2004 do STJ, proc. n.º 3274/04-5, Relator: Conselheiro Simas Santos
Tráfico de estupefacientes— co-autor — cúmplice — tráfico de menor gravidade — Atenuação especial da pena — perda de veículo automóvel — medida da pena — crime cometido na prisão
1 – Se um agente monta, a partir do estabelecimento prisional onde se encontrava detido, uma operação de tráfico de estupefacientes, na qual contou com a colaboração de outras pessoas, a actuação do co-arguido que no exterior (fora da cadeia), recebeu, guardou e posteriormente transportou num percurso de mais de 100 Km, mais de meio quilo de heroína, não se traduz em mera cumplicidade, mas sim em co-autoria.
2 – Com efeito, verifica-se a co-autoria quando cada comparticipante quer o resultado como próprio com base numa decisão conjunta e com forças conjugadas, bastando um acordo tácito assente na existência da consciência e vontade de colaboração, aferidas aquelas à luz das regras de experiência comum.
3 – E esse co-arguido «por qualquer título recebeu», «proporcionou a outrem», «transportou», e «ilicitamente detive» a droga, assim incorrendo com a sua actuação directa em 4 das situações prevista no n.º 1 do art. 21.º do DL n.º 15/93.
4 – Estando ainda provado agiu livre, consciente e voluntariamente, de acordo com plano prévio acordado com o co-arguido que estava na prisão – ao qual aderiu – de tráfico de estupefacientes, o que significa que aderiu ao projecto global e dele comparticipou numa actuação essencial à sua concretização: recebeu, transportou, deteve ilegalmente e ia entregar a heroína.
5 – Não se trata no caso de tráfico de menor gravidade, atendendo aos meios utilizados, à modalidade ou nas circunstâncias da acção (implicando a organização de esquema já sofisticado, com o dirigente na cadeia, dois ou mais indivíduos para obter a droga e entregá-la em Coimbra ao co-arguido, transporte para 100 Km, um encontro entre desconhecidos para a entrega da mesma droga) e à qualidade ou na quantidade das plantas ou substâncias (mais de 500 grs de heroína).
6 – Nem se trata de um correio de droga que, recrutado pela sua condição económica precária, recebe uma determinada quantia pré-fixada para efectuar o transporte de determinada quantidade de droga de um sítio para outro, normalmente envolvendo uma situação de importação, pois está assente a adesão ao um plano prévio acordado visando obter lucros que sabia serem ilegítimos.
7 – Não sendo no caso as circunstâncias atinentes à situação pessoal, económica e familiar do arguido, bem como a confissão parcial, com alguma relevância para a descoberta da verdade, o arrependimento e a vontade de reconstruir a sua vida e de adoptar comportamento em conformidade com as regras vigentes, suficientes para diminuir consideravelmente a culpa com que agiu, nem a necessidade da pena, atendendo aos fins de prevenção geral de integração que visa prosseguir, uma vez que o tipo de substância, a sua qualidade e as circunstâncias da acção, postulam acrescidas necessidades nesse domínio, não é de atenuar especialmente a pena.
8 – Mas já justificará esse condicionalismo a fixação da pena concreta em 4 anos e 6 meses de prisão.
9 - Face à redacção do n.º 1 do art. 35.º do DL 15/93 dada pela Lei n.º 45/96, de 3 de Setembro vem entendendo o STJ que, na criminalidade punida nesse diploma, a perda de objectos a favor do Estado, tratando-se de instrumentos do crime, depende apenas de um requisito em alternativa - que tenham servido, ou que estivessem destinados a servir, para a prática de uma infracção prevista naquele diploma; tratando-se de produtos, a declaração de perda depende tão só da sua natureza de ser um resultado da infracção e que, com a eliminação da 2.ª parte do art. 35.º, se pretendeu ampliar as situações em que a declaração de perda de objectos deverá ocorrer.
10 – Mas tem introduzido elementos moderadores a uma interpretação que conduza a uma aplicação automática do perdimento dos veículos automóveis, aferindo o nexo de instrumentalidade entre a utilização do objecto e a prática do crime com recurso à causalidade adequada, sendo exigível que a sua relação com a prática do crime se revista de um carácter significativo, numa relação de causalidade adequada, para que a infracção se verifique em si mesma ou na forma, com significação penal relevante, verificada.
11 – E tem convocado o princípio da proporcionalidade, no sentido que a perda do instrumentum sceleris terá de ser equacionada com esse princípio relativamente à importância do facto, de forma a não se ultrapassar a "justa medida".
12 – O veículo mostrou-se essencial em outros domínios que não o mero transporte se serviu para, parado e com os 4 piscas ligados no local combinado, assinalar a sua presença aos dois indivíduos que iam fazer a entrega da droga e, com a janela aberta como combinado, para recolher a droga que foi por aquela lançada e ainda para guardar a droga, levá-la para um depósito temporário, face à impossibilidade de se fazer a entrega no mesmo dia como esteve combinado. Pode, pois, afirmar-se que a utilização do veículo teve um papel importante no esquema de tráfico em que foi envolvido, não ofendendo o seu perdimento o princípio da proporcionalidade.
13 – Se o agente comandou a operação de tráfico a partir da sua cela, mas não está provado que a droga se destinasse à prisão, então não se verifica a agravante qualificativa da al. h) do art. 24.º do DL n.º 15/93, com a qual se quis também proteger aquela comunidade prisional.
14 – Mas essa circunstância deve ser atendida no quadro do art. 71.º do C. Penal, na medida concreta da pena, pois é patente o desprezo a que o agente votou os objectivos da condenação que está a cumprir, como potencia, pelo (mau) exemplo, que os outros presos enveredem pelo mesmo caminho, não só frustrando os objectivos de prevenção, como levando a deixar de lado a sua reinserção, enfim, pondo em causa todo o fim das penas que o sistema prisional é suposto acautelar.
Ac. de 21.10.2004 do STJ, proc. n.º 3205/04-5, Relator: Cons. Simas Santos
Homicídio voluntário — Tentativa — regime especial para jovens adultos — medida da pena — atenuação especial da pena — fins das penas
1 - Como está dito e redito, a atenuação especial prevista no Dec.Lei n.º 481/82, de 23/9 não é automática e tem de emergir de um julgamento do caso concreto que incuta na convicção do juiz a crença séria “sérias razões” de que para o arguido resultam vantagens para a sua reinserção. Porém, mesmo que verificadas aquelas condições, há sempre um limite que não pode ser ultrapassado – a defesa do ordenamento jurídico.
2 - O silêncio, sendo um direito do arguido, não pode prejudicá-lo, mas também dele não pode colher benefícios, nomeadamente a alegação de ter confessado os factos ou a demonstração de um qualquer laivo de arrependimento.
3 - A atenuação especial prevista no artigo 72.º do Código Penal, só cabe aplicar em casos especiais em que a imagem global do facto cria situações de tal forma específicas que o caso sai fora das molduras penais normais, já de si pensadas para abrangerem casos de ilicitude e culpa muito diversificados.
4 - A ressocialização é sempre um dos fins associados ao cumprimento de qualquer pena. Mas só funciona, «se possível», isto é, depois da necessária protecção de bens jurídicos, tal como emerge do disposto no artigo 40.º
Ac. de 21.10.2004 do STJ, proc. n.º 3242/04-5, Relator: Cons. Pereira Madeira
Tráfico de estupefacientes — correio da droga — medida da pena
A actividade do arguido, sendo de mero correio, não o situa na linha da frente da actividade traficante, antes, o remetendo para um papel importante na estratégia do tráfico, mas, apesar de tudo, de segundo plano.
Ac. de 21.10.2004 do STJ , proc. n.º3273/04-5, Relator: Cons. Pereira Madeira
1 – Se a lei do tempo da prática dos factos (RJFNA) exigia, para a verificação do crime de abuso fiscal, a apropriação em proveito próprio, pelo agente, das contribuições devidas, diversamente do que sucede com a lei actual (RGIT) é convocado o n.º 1 do art. 2.º do C. Penal e não o n.º 4, pois é à luz da lei no momento da prática dos factos que se dever determinar se a conduta é punível; se o não for, já não há lugar à ponderação da aplicabilidade de lei posterior que seria então sempre “desfavorável”.
2 – A apropriação a que se reporta o abuso de confiança fiscal previsto no RJFNA, satisfaz-se com a não entrega de contribuições ao Estado, dando-lhes outro destino, como tem entendido o Supremo Tribunal de Justiça: se o agente não entrega à administração tributária as prestações que deduziu e era obrigado a entregar, é porque se apropriou delas, dando-lhes assim um destino diferente daquele que lhe era imposto por lei.
3 – O art. 24.º, do RJIFNA (DL n.º 20-A/90, de 15-01, na redacção do DL n.º 294/93, de 24-11), ao falar em apropriação de prestação tributária que se estava obrigado a entregar ao credor fiscal, não conflitua com o disposto no art. 105.º, do RGIT (Lei n.º 15/01, de 05-06), que lhe sucedeu, uma vez que este último, embora não fale expressamente de apropriação, a ideia permanece no espírito do novo texto, ao acentuar a recusa ilegal de entrega à administração tributária da prestação. Na verdade, se o agente não faz entrega ao fisco das prestações que deduziu e era obrigado a entregar, é porque se apropriou delas, no sentido de que lhes deu destino diferente daquele que era imposto por lei, já que a ideia fulcral do crime de abuso de confiança, seja ele fiscal ou não, é sempre a de que se dá a valores licitamente recebidos um rumo diferente daquele a que se está obrigado (Ac. de 23/04/2003, CJ XXVIII, 1, 234)
4 – As normas dos artigos 11.º n.º 7 do RJIFNA e 14.º n.º 1 do RGIT não são inconstitucionais.
Ac. de 14.10.2004 do STJ, Proc. n.º 3274/04-5, Relator: Cons. Simas Santos
Crime de tráfico de estupefacientes — medida da pena — perda de veículo
1 – Sendo elevados os graus da ilicitude e da culpa, ressaltando no primeiro aspecto a insistência do arguido na prática criminosa, mesmo depois de uma primeira detenção, o longo período de tempo já provado em que se vem dedicando ao tráfico, e as quantidades já relevantes de droga que lhe foram encontradas, assim como a sua natureza, já que envolvendo as chamadas «drogas duras», portanto de efeitos mais perniciosos para a saúde dos consumidores, sem esquecer que o móbil provado foi o de obter lucros sem trabalhar, numa moldura penal de 4 a 12 anos de prisão, em que o ponto médio se situa nos 8 anos, e para onde, razoavelmente, ante os factos provados, se podia apontar a fixação da pena concreta, a de 6 anos que lhe foi aplicada já valoriza acima do atendível, a falta de antecedentes criminais conhecidos e a «jovem idade» do arguido, ambas de pouco relevo no caso.
2 - Declarado perdido a favor do Estado, um motociclo «por ter sido adquirido com proventos obtidos no tráfico de drogas», tal declaração é legal por respeito pelo disposto no artigo 35.º do DL n.º 15/93, de 22/1, na sua actual redacção, que estatui que «são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados para a prática de uma infracção prevista no presente diploma ou que por esta tivessem sido produzidos», o que acontece, segundo o n.º 3 daquele dispositivo, ainda que «nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto», logo, independentemente da propriedade do veículo ser ou não do arguido.
Ac. De 14.10.2004 do STJ, proc. N.º 3204/04-5, Relator: Cons. Pereira Madeira
Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça — irrecorribilidade — demissão
1 – Não é admissível recurso «de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de primeira instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infracções».
2 – Tal doutrina tem aplicação no caso de o acórdão proferido pela Relação, confirmativo de decisão da primeira instância, quando a medida abstracta da pena correspondente aos crimes, objecto da condenação, não seja superior a oito anos, mesmo que o tribunal da relação tenha reduzido a pena imposta aos recorrentes da decisão da primeira instância, ou aligeirado a pena, nomeadamente substituindo a pena de prisão por pena suspensa.
Ac. de 14.10.2004 do STJ, proc. n.º 2829/04-5, Relator: Cons. Pereira Madeira
Tráfico de estupefacientes — matéria de facto — competência do Supremo Tribunal de Justiça — estrangeiro não residente — pena acessória de expulsão
1 – No actual regime processual penal está fora do âmbito legal do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a reedição dos vícios apontados à decisão de facto da 1.ª instância, em tudo o que foi objecto de conhecimento pela Relação, mormente quando, para além do objecto do recurso já apreciado pelo tribunal recorrido, não se vislumbram outros vícios a que fosse mister dar resposta oficiosamente.
2 – Se não é de subestimar a gravidade do crime que o arguido decidiu cometer – tráfico de droga – importa ter em conta, contudo, que, dentro da relatividade das coisas, não atingindo o caso os limites quantitativos do «grande tráfico», embora a ele indelevelmente ligado, quanto mais não seja, como adjuvante na difusão pretendida, e não se tendo apurado outros factos desfavoráveis sobre a personalidade do arguido – a situação de ignorância que as instâncias deixaram pendente sobre o tema de facto não o pode desfavorecer – não desvalorizando ainda a circunstância de o recorrente não ter antecedentes criminais conhecidos, apesar dos seus actuais 38 anos de idade, enfim, usando de algum optimismo em que a pena de prisão cumpra um dos os seus objectivos primários – essencialmente, a ressocialização – deitando ainda um olhar de comiseração pela criança de 1 ano em quem o pai devia ter pensado antes e não pensou, enfim, tendo em conta que a situação de ilegalidade em que o arguido se encontra em Portugal tem outras vias para além da judicial para ser controlada, concorda-se em que possa ter existido algum excesso no decretamento da pena acessória de expulsão, que não é automático.
Ac. de 14.10.2004 do STJ, proc. n.º 3018/04-5, Relator: Cons. Pereira Madeira
In dubio pro reo — Questão de facto — Presunções naturais
1 – O Supremo Tribunal de Justiça só pode sindicar a aplicação do princípio in dubio pro reo quando da decisão recorrida resulta que o Tribunal a quo ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido. Não se verificando esta hipótese, resta a aplicação do mesmo princípio enquanto regra de apreciação da prova no âmbito do dispositivo do art. 127.º do CPP que escapa ao poder de censura do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista.
2 – Saber se o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida, é uma questão de facto que exorbita o poder de cognição do Supremo Tribunal de Justiça enquanto tribunal de revista.
3 – As conclusões ou ilações que as instâncias extraem da matéria de facto são elas mesmo matéria de facto que escapam à censura do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista.
4 – O sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto desconhecido para um facto conhecido; toda a prova indirecta se faz valer através desta espécie de presunções
5 – O recurso às presunções naturais não viola o princípio in dubio pro reo. Elas cedem perante a simples dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto, pelo que aquele princípio constitui o limite àquele recurso.
Ac. de 21.10.2004 do STJ, proc. n.º 3274/04-5, Relator: Conselheiro Simas Santos
Tráfico de estupefacientes— co-autor — cúmplice — tráfico de menor gravidade — Atenuação especial da pena — perda de veículo automóvel — medida da pena — crime cometido na prisão
1 – Se um agente monta, a partir do estabelecimento prisional onde se encontrava detido, uma operação de tráfico de estupefacientes, na qual contou com a colaboração de outras pessoas, a actuação do co-arguido que no exterior (fora da cadeia), recebeu, guardou e posteriormente transportou num percurso de mais de 100 Km, mais de meio quilo de heroína, não se traduz em mera cumplicidade, mas sim em co-autoria.
2 – Com efeito, verifica-se a co-autoria quando cada comparticipante quer o resultado como próprio com base numa decisão conjunta e com forças conjugadas, bastando um acordo tácito assente na existência da consciência e vontade de colaboração, aferidas aquelas à luz das regras de experiência comum.
3 – E esse co-arguido «por qualquer título recebeu», «proporcionou a outrem», «transportou», e «ilicitamente detive» a droga, assim incorrendo com a sua actuação directa em 4 das situações prevista no n.º 1 do art. 21.º do DL n.º 15/93.
4 – Estando ainda provado agiu livre, consciente e voluntariamente, de acordo com plano prévio acordado com o co-arguido que estava na prisão – ao qual aderiu – de tráfico de estupefacientes, o que significa que aderiu ao projecto global e dele comparticipou numa actuação essencial à sua concretização: recebeu, transportou, deteve ilegalmente e ia entregar a heroína.
5 – Não se trata no caso de tráfico de menor gravidade, atendendo aos meios utilizados, à modalidade ou nas circunstâncias da acção (implicando a organização de esquema já sofisticado, com o dirigente na cadeia, dois ou mais indivíduos para obter a droga e entregá-la em Coimbra ao co-arguido, transporte para 100 Km, um encontro entre desconhecidos para a entrega da mesma droga) e à qualidade ou na quantidade das plantas ou substâncias (mais de 500 grs de heroína).
6 – Nem se trata de um correio de droga que, recrutado pela sua condição económica precária, recebe uma determinada quantia pré-fixada para efectuar o transporte de determinada quantidade de droga de um sítio para outro, normalmente envolvendo uma situação de importação, pois está assente a adesão ao um plano prévio acordado visando obter lucros que sabia serem ilegítimos.
7 – Não sendo no caso as circunstâncias atinentes à situação pessoal, económica e familiar do arguido, bem como a confissão parcial, com alguma relevância para a descoberta da verdade, o arrependimento e a vontade de reconstruir a sua vida e de adoptar comportamento em conformidade com as regras vigentes, suficientes para diminuir consideravelmente a culpa com que agiu, nem a necessidade da pena, atendendo aos fins de prevenção geral de integração que visa prosseguir, uma vez que o tipo de substância, a sua qualidade e as circunstâncias da acção, postulam acrescidas necessidades nesse domínio, não é de atenuar especialmente a pena.
8 – Mas já justificará esse condicionalismo a fixação da pena concreta em 4 anos e 6 meses de prisão.
9 - Face à redacção do n.º 1 do art. 35.º do DL 15/93 dada pela Lei n.º 45/96, de 3 de Setembro vem entendendo o STJ que, na criminalidade punida nesse diploma, a perda de objectos a favor do Estado, tratando-se de instrumentos do crime, depende apenas de um requisito em alternativa - que tenham servido, ou que estivessem destinados a servir, para a prática de uma infracção prevista naquele diploma; tratando-se de produtos, a declaração de perda depende tão só da sua natureza de ser um resultado da infracção e que, com a eliminação da 2.ª parte do art. 35.º, se pretendeu ampliar as situações em que a declaração de perda de objectos deverá ocorrer.
10 – Mas tem introduzido elementos moderadores a uma interpretação que conduza a uma aplicação automática do perdimento dos veículos automóveis, aferindo o nexo de instrumentalidade entre a utilização do objecto e a prática do crime com recurso à causalidade adequada, sendo exigível que a sua relação com a prática do crime se revista de um carácter significativo, numa relação de causalidade adequada, para que a infracção se verifique em si mesma ou na forma, com significação penal relevante, verificada.
11 – E tem convocado o princípio da proporcionalidade, no sentido que a perda do instrumentum sceleris terá de ser equacionada com esse princípio relativamente à importância do facto, de forma a não se ultrapassar a "justa medida".
12 – O veículo mostrou-se essencial em outros domínios que não o mero transporte se serviu para, parado e com os 4 piscas ligados no local combinado, assinalar a sua presença aos dois indivíduos que iam fazer a entrega da droga e, com a janela aberta como combinado, para recolher a droga que foi por aquela lançada e ainda para guardar a droga, levá-la para um depósito temporário, face à impossibilidade de se fazer a entrega no mesmo dia como esteve combinado. Pode, pois, afirmar-se que a utilização do veículo teve um papel importante no esquema de tráfico em que foi envolvido, não ofendendo o seu perdimento o princípio da proporcionalidade.
13 – Se o agente comandou a operação de tráfico a partir da sua cela, mas não está provado que a droga se destinasse à prisão, então não se verifica a agravante qualificativa da al. h) do art. 24.º do DL n.º 15/93, com a qual se quis também proteger aquela comunidade prisional.
14 – Mas essa circunstância deve ser atendida no quadro do art. 71.º do C. Penal, na medida concreta da pena, pois é patente o desprezo a que o agente votou os objectivos da condenação que está a cumprir, como potencia, pelo (mau) exemplo, que os outros presos enveredem pelo mesmo caminho, não só frustrando os objectivos de prevenção, como levando a deixar de lado a sua reinserção, enfim, pondo em causa todo o fim das penas que o sistema prisional é suposto acautelar.
Ac. de 21.10.2004 do STJ, proc. n.º 3205/04-5, Relator: Cons. Simas Santos
Homicídio voluntário — Tentativa — regime especial para jovens adultos — medida da pena — atenuação especial da pena — fins das penas
1 - Como está dito e redito, a atenuação especial prevista no Dec.Lei n.º 481/82, de 23/9 não é automática e tem de emergir de um julgamento do caso concreto que incuta na convicção do juiz a crença séria “sérias razões” de que para o arguido resultam vantagens para a sua reinserção. Porém, mesmo que verificadas aquelas condições, há sempre um limite que não pode ser ultrapassado – a defesa do ordenamento jurídico.
2 - O silêncio, sendo um direito do arguido, não pode prejudicá-lo, mas também dele não pode colher benefícios, nomeadamente a alegação de ter confessado os factos ou a demonstração de um qualquer laivo de arrependimento.
3 - A atenuação especial prevista no artigo 72.º do Código Penal, só cabe aplicar em casos especiais em que a imagem global do facto cria situações de tal forma específicas que o caso sai fora das molduras penais normais, já de si pensadas para abrangerem casos de ilicitude e culpa muito diversificados.
4 - A ressocialização é sempre um dos fins associados ao cumprimento de qualquer pena. Mas só funciona, «se possível», isto é, depois da necessária protecção de bens jurídicos, tal como emerge do disposto no artigo 40.º
Ac. de 21.10.2004 do STJ, proc. n.º 3242/04-5, Relator: Cons. Pereira Madeira
Tráfico de estupefacientes — correio da droga — medida da pena
A actividade do arguido, sendo de mero correio, não o situa na linha da frente da actividade traficante, antes, o remetendo para um papel importante na estratégia do tráfico, mas, apesar de tudo, de segundo plano.
Ac. de 21.10.2004 do STJ , proc. n.º3273/04-5, Relator: Cons. Pereira Madeira
Recurso extraordinário de revisão — assistência obrigatória de advogado — falta de pedido — rejeição
Deve ser rejeitado por falta de pedido o recurso extraordinário de revisão de sentença em que o recorrente formulou ele próprio o pedido e, tendo-lhe sido nomeado defensor, este veio dizer que não havia fundamento para a revisão, mas antes para a descriminalização da conduta em relação a um dos crimes por que foi condenado.
Ac. de 21.10.04 do STJ, proc. n.º 1262/04 – 5, Relator: Cons. Rodrigues da Costa
Tráfico de estupefacientes — correio — medida da pena — rejeição — manifesta improcedência
É manifestamente improcedente e, por isso, deve ser rejeitado, o recurso em que o arguido pede a atenuação especial da pena ou, em alternativa, a sua fixação em 4 anos, quando foi condenado em 4 anos e 6 meses de prisão por ter transportado 3.149,600 grs. de cocaína num voo procedente de Santiago do Chile, via S. Paulo – Brasil e com destino a Espanha, estando provadas apenas, como atenuantes, a confissão (tendo sido apanhado em flagrante delito), o ter-se mostrado arrependido, viver em casa dos progenitores com a mulher e a filha de 9 meses, ser operador de máquinas numa fábrica metalúrgica e ter frequentado o ensino secundário.
Ac de 21.10.04 do STJ, proc. n.º 2940/04 – 5, Relator: Cons. Rodrigues da Costa
Deve ser rejeitado por falta de pedido o recurso extraordinário de revisão de sentença em que o recorrente formulou ele próprio o pedido e, tendo-lhe sido nomeado defensor, este veio dizer que não havia fundamento para a revisão, mas antes para a descriminalização da conduta em relação a um dos crimes por que foi condenado.
Ac. de 21.10.04 do STJ, proc. n.º 1262/04 – 5, Relator: Cons. Rodrigues da Costa
Tráfico de estupefacientes — correio — medida da pena — rejeição — manifesta improcedência
É manifestamente improcedente e, por isso, deve ser rejeitado, o recurso em que o arguido pede a atenuação especial da pena ou, em alternativa, a sua fixação em 4 anos, quando foi condenado em 4 anos e 6 meses de prisão por ter transportado 3.149,600 grs. de cocaína num voo procedente de Santiago do Chile, via S. Paulo – Brasil e com destino a Espanha, estando provadas apenas, como atenuantes, a confissão (tendo sido apanhado em flagrante delito), o ter-se mostrado arrependido, viver em casa dos progenitores com a mulher e a filha de 9 meses, ser operador de máquinas numa fábrica metalúrgica e ter frequentado o ensino secundário.
Ac de 21.10.04 do STJ, proc. n.º 2940/04 – 5, Relator: Cons. Rodrigues da Costa
Nascimento de Georges Bizet (25-10-1838)
Nascido em Paris, rapidamente é incentivado pelos pais, também músicos, a entrar no conservatório de música de Paris antes mesmo de ter 10 anos.
Torna-se mestre de canto na ópera cómica em 1871.
É conhecido sobretudo pela sua obra, a célebre ópera "Carmen", composta em 1874, que ainda hoje é a mais tocada em todo o mundo.
Morreu subitamente, em 1875, quando tinha 37 anos.
Fragmentos da ópera "Carmen":
P.S. - Neste dia, também nasceram Johann Strauss, compositor austríaco (1825), e Pablo Picasso, pintor e escultor espanhol (1881).
Torna-se mestre de canto na ópera cómica em 1871.
É conhecido sobretudo pela sua obra, a célebre ópera "Carmen", composta em 1874, que ainda hoje é a mais tocada em todo o mundo.
Morreu subitamente, em 1875, quando tinha 37 anos.
Fragmentos da ópera "Carmen":
Obertura
Habanera
Entreacto II
Aragonesa
Seguidilla (canta María Callas)
La fleur que tu m'avais jetée (canta Plácido Domingo)
Toreador en garde (canta Ruggero Raimondi)
P.S. - Neste dia, também nasceram Johann Strauss, compositor austríaco (1825), e Pablo Picasso, pintor e escultor espanhol (1881).
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