Crime continuado — bens eminentemente pessoais — roubo — regime penal especial para jovens — fins das penas — medida da pena — prevenção geral — prevenção especial
I - A doutrina e a jurisprudência têm sempre entendido que o crime continuado não existe quando são violados bens jurídicos inerentes à pessoa, salvo tratando-se da mesma vítima: na 1.ª Comissão Revisora do Código de 1982 foi proposto e aprovado um acrescento ao art. 30.º com uma redacção expressa nesse sentido, mas o Prof. Eduardo Correia referiu que esse acrescentamento era dispensável, uma vez que a conclusão que ele contém já se retiraria da expressão «o mesmo bem jurídico» (BMJ, 144.º, p. 58).
II - Estando em causa vários crimes de roubo praticados contra pessoas diversas e outros crimes instrumentais em relação àqueles, não existe um único crime continuado.
III - No crime continuado existe uma unificação da pluralidade de resoluções criminosas baseada numa diminuição considerável da culpa; ao contrário, a execução de vários crimes de roubo só aumenta o grau de culpa, já que a reiteração de condutas violentas contra as pessoas indica uma firmeza de intenção e um destemor perante o perigo, de todo incompatível com qualquer diminuição de culpa.
IV - Este STJ tem vindo a entender que a aplicação do regime penal relativo a jovens é um «regime-regra de sancionamento penal aplicável a esta categoria etária - não constitui uma faculdade do juiz, mas antes um poder-dever vinculado que o juiz deve (tem de) usar sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos» (Ac. de 11-06-03, Proc. n.º 1657/03 - 3.ª).
V - Numa concepção moderna, a finalidade essencial e primordial da aplicação da pena reside na prevenção geral, o que significa “que a pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto … alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada …” - Anabela Miranda Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade, Coimbra Editora, p. 570.
VI - “É, pois, o próprio conceito de prevenção geral de que se parte que justifica que se fale aqui de uma «moldura» de pena. Esta terá certamente um limite definido pela medida de pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade. Mas, abaixo desta medida de pena, outras haverá que a comunidade entende que ainda são suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral; definido, pois, em concreto, pelo absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral e que pode entender-se sob a forma de defesa da ordem jurídica” (a. e ob. cit., p. 571).
AcSTJ de 17/07/2006, Proc. n.º 3109/06-5, Relator: Cons. Carvalho
Princípio da dupla valoração — agravante — tráfico de estupefacientes agravado — ilicitude — prevenção geral — medida da pena — medida concreta da pena — direito ao silêncio — direitos de defesa — perda de bens a favor do estado — criminalidade organizada — criminalidade económica-financeira — ónus da prova
I - O princípio da proibição de dupla valoração impede que a mesma circunstância agravativa seja valorada por duas vezes, num primeiro momento fazendo-a funcionar como agravante modificativa do tipo de crime, com alteração da moldura da pena abstracta, num segundo momento fazendo-a operar como agravante de natureza geral, para justificar que a pena concreta seja mais elevada do que seria sem ela.
II - O crime de tráfico agravado, previsto no art. 24.º do DL 15/93, de 22-01, verifica-se quando o agente pratica os factos que integram o crime simples de tráfico de estupefacientes e, ao fazê-lo, concorrem uma ou mais das circunstâncias ali enumeradas taxativamente, como sejam, as substâncias ou preparações serem entregues ou destinarem-se a menores ou diminuídos psíquicos, ou serem distribuídas por grande número de pessoas, ou o agente ter obtido ou procurado obter avultada compensação remuneratória, etc.
III - Tratam-se, efectivamente, de circunstâncias que agravam em especial a ilicitude e cuja consideração faz aumentar as exigências de prevenção geral do crime. Com efeito, nesses casos, a moldura penal modifica-se, com a agravação do mínimo e do máximo da pena em um quarto, pois, como se lê no preâmbulo do diploma legal em causa, “os crimes mais graves de tráfico de droga devem merecer equiparação ao tratamento previsto… para a criminalidade violenta ou altamente organizada e para o terrorismo”.
IV - Contudo, verificada que esteja uma dessas circunstâncias que determina a agravação da moldura penal abstracta, há que ponderar o seu grau de intensidade quando se procede à determinação do quantum da pena, pois pode ser maior ou menor dentro desse quadro - pense-se que é mais reduzido o grau de ilicitude pela venda de estupefacientes a um só menor do que a uma centena de menores, como também tal grau é mais reduzido se o agente obtém na venda desses produtos cem mil euros de remuneração em vez de um milhão de euros.
V - Assim, não se está a fazer uma dupla valoração da circunstância agravativa, mas a proceder a análises diferentes, a primeira de ordem qualitativa para saber se a circunstância é uma das que estão enumeradas na lei, a segunda de ordem quantitativa para apurar a sua ordem de grandeza no quadro já definido.
VI - A violação da proibição de dupla valoração só existe se a apreciação da circunstância modificativa for feita mais do que uma vez sob a mesma perspectiva, qualitativa ou quantitativa, em prejuízo do arguido - seria o caso de admitir-se que a venda de estupefacientes a um só menor já é tráfico agravado - apreciação qualitativa - e na fixação da pena considerar-se tal circunstância como agravante de natureza geral, já que do ponto de vista quantitativo representa a mais reduzida licitude dentro desse quadro agravativo.
VII - O uso do silêncio a perguntas feitas por qualquer entidade, designadamente no decurso do julgamento, não pode prejudicar o arguido, pois é um direito consagrado na lei (arts. 61.°, n.º l, al. c), e 343.º, do CPP).
VIII - Todavia, ao não falar, o arguido prescinde de poder gozar de circunstâncias atenuantes de relevo, como sejam a confissão e o arrependimento.
IX - Por outro lado, embora a mentira do arguido não seja sancionada penalmente, também não é um direito que lhe assiste, pelo que a tentativa de enganar a investigação e de prejudicar gravemente outra pessoa cuja responsabilidade é menor representa uma conduta processual censurável.
X - A Lei 5/2002, de 11-01, veio estabelecer medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira, configurando um regime especial de recolha de prova, de quebra do segredo profissional e de perda de bens a favor do Estado relativa aos crimes de tráfico de estupefacientes, nos termos dos arts. 21.º a 23.º e 28.º do DL 15/93, para além de outros crimes aí discriminados.
XI - A não referência ao art. 24.º do DL 15/93 não nos deve iludir, pois tal preceito legal não define um outro tipo de crime, não é um crime «qualificado» com outros elementos típicos, antes representa o crime tipo do art. 21.°, agravado.
XII - A Lei 5/2002 alterou, não só as regras processuais, como também algumas regras substantivas, relativas à perda de bens a favor do Estado.
XIII - Na realidade, o legislador, tendo considerado que nem sempre se afigura fácil a prova de que os bens patrimoniais dos arguidos em certos crimes organizados ou económico-financeiros são vantagens provenientes da actividade ilícita e, portanto, sujeitos a perda a favor do Estado, nos termos dos arts. 109.º a 111.° do CP, veio estabelecer algumas regras que impedem os agentes criminosos de se refugiarem, quanto a esse aspecto, numa mera aparência de legalidade, ou de pretenderem prevalecer-se da dúvida.
XIV - Por isso, nesses crimes são declarados perdidos para o Estado os bens ou vantagens económicas que não se provarem serem de origem lícita, o que é uma regra substantiva diferente da estabelecida no CP (e na lei da droga) para a generalidade dos crimes, onde só a prova positiva da origem ilícita permite a perda para o Estado.
XV - E, assim, para crimes de tráfico de estupefacientes e outros mencionados, presume-se constituir vantagem da actividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito (art. 7.° da Lei 5/2002), remetendo-se para o arguido o ónus de provar a licitude do seu património.
XVI - Para tal, o MP na acusação ou até 30 dias antes do julgamento liquida o montante que deve ser perdido para o Estado (art. 8.º). Depois, o Tribunal pode oficiosamente, na sua livre convicção, considerar que tal montante é de origem lícita ou o arguido tem a possibilidade de ilidir a presunção através de todos os meios de prova permitidos na lei (art. 9.º).
XVII - O facto de contas e valores apreendidos remontarem a datas anteriores à dos factos versados no processo e de alguns desses valores serem de contas que não eram (supostamente) de propriedade exclusiva do arguido, mas de sociedades de que o mesmo não seria o único nem principal sócio, não os fazem deixar de pertencer ao “património do arguido”, para o efeito do art. 7.°, n.º 1, da Lei 5/2002, pois são situações que se integram nas hipóteses definidas no n.º 2 dessa disposição.
AcSTJ de 14/07/2006, Proc. n.º 3163/06-5, Relator: Santos Carvalho
Burla — prevenção geral — cúmulo jurídico — pena única — perdão
I - A pena não detentiva não satisfaz as fortes exigências de prevenção geral do crime, num caso em que o arguido se apropriou de € 62 349,74 por meios astuciosos para com os empregados da companhia seguradora e dos bancos, utilizando as falsificações como instrumento do engano, causando aos herdeiros de E prejuízo patrimonial de igual valor e, até ao presente, o arguido não restitui tal montante ou qualquer quantia aos ofendidos apesar de já terem decorrido mais de 7 anos, sendo que, em consequência dessa conduta reprovável, os ofendidos sofreram grandes dificuldades económicas e forte abalo psicológico - aqui o decurso do tempo acentua a necessidade da pena, pois o recorrente já podia ter ressarcido ao menos em parte os ofendidos, tanto mais que se encontra em liberdade e, portanto, com possibilidade de angariar outros meios para além do seu parco salário.
II - Para proceder ao cúmulo jurídico de penas em concurso de infracções quando só algumas beneficiam de perdão, há que seguir estes passos:
- 1.° efectua-se o cúmulo jurídico de todas as penas em concurso, independentemente de alguma delas beneficiarem de perdão e, assim, obtém-se a pena única;
- 2.° calcula-se o perdão, após se ficcionar um cúmulo jurídico parcelar das penas que por ele estão abrangidas;
- 3.° faz-se incidir o perdão assim calculado sobre a pena única inicial, mas o perdão tem como limite máximo a soma das parcelas das penas “perdoáveis”, tal como encontradas na operação de cálculo dessa pena única inicial.
III - Rejeita-se, assim, a fórmula que há anos era a jurisprudencialmente consagrada: na situação apontada, havendo que cumular penas abrangidas por perdão com penas por ele não abrangidas, entendia-se que haveria que efectuar um cúmulo jurídico provisório das penas abrangidas pelo perdão, aplicar o perdão à pena única parcelar provisória e, depois, efectuar o cúmulo final entre o remanescente desta e as restantes penas não abrangidas pelo perdão.
IV - Ora, esta fórmula é passível, pelo menos, de duas críticas pertinentes:
- por um lado, dela resulta uma dupla compressão injustificada de certas penas. Como se sabe, para a formação de um cúmulo jurídico, todas as penas, com excepção da mais grave, sofrem uma determinada compressão, maior ou menor consoante a ponderação que é feita dos factos e da personalidade do agente, visto que, em regra, não é aplicada a pena máxima do concurso (a soma material de todas as penas). Daí decorre que na fórmula em apreço há uma primeira compressão na formação do cúmulo jurídico provisório para calcular o perdão e uma segunda no cúmulo jurídico definitivo. E, como facilmente se percebe, é uma dupla compressão injustificada, pois há só um cúmulo jurídico real, já que o outro é meramente ficcionado tendo em vista o cálculo do perdão;
- a outra crítica é a de que, com este método, o perdão fica diluído e não transparece na pena única definitiva, pelo que, por um lado, o arguido mal se apercebe de que beneficiou de um perdão no meio das contas do cúmulo, por outro, não se sabe ao certo que desconto efectivo foi feito na pena única final, por fim, perde-se o efeito dissuasor da condição resolutiva a que está sujeito o perdão (art. 4.º da Lei 29/99).
AcSTJ de 09/03/2006, Proc. n.º 2941/06-5, Relator: Cons. Santos Carvalho