Não me calo
Desconfiado de uma abordagem criminosa, fui, mas gravei a conversa, para me poder defender, se o sujeito pretendesse “virar” a conversa contra mim e tentasse passar de criminoso a vítima. O que veio a acontecer e é um “clássico” nas máfias da corrupção.
A conversa era para tentar corromper o meu irmão, vereador em Lisboa. No dia seguinte, depositei a única cópia da gravação no Ministério Público (MP). E denunciei a corrupção.
O MP pediu-me para ir a novo encontro e obter nova gravação, agora com autorização judicial. E assim foi. Tive mais duas conversas que foram prova decisiva na acusação e condenação do corruptor, a qual, finalmente, foi garantida em Janeiro passado, por um acórdão do Supremo Tribunal.
3. Esta história devia ter tido um desfecho rápido e útil — exemplar — para a prevenção da corrupção.
Todavia, a condenação do corruptor percorreu um sinuoso caminho e eu acabei a enfrentar vários processos, de natureza criminal, civil e disciplinar, contra um exército de juristas por ele contratados para proteger o seu objectivo ilícito de ficar dono do maior e mais bem situado terreno disponível para construção, em Lisboa (na ex-feira Popular).
4. Depois de absolvido na 1.ª instância e de o MP ter sustentado a justeza da decisão, fui agora condenado por dois juízes da Relação num acórdão com assinaturas ilegíveis (mas um deles já veio a público gabar-se da sua autoria), pelo crime de gravação ilícita: a que eu próprio fiz, para evitar que o corruptor pudesse convencer alguém, como tentou, de que eu é que o teria aliciado — e que imediatamente entreguei ao Ministério Público.
5. O acórdão utiliza dois argumentos. Diz que, tendo eu optado por ir ao encontro, fui eu que criei o perigo! Por outro lado, numa extraordinária ponderação de valores, não vislumbra qualquer supremacia do meu direito à honra e à defesa da verdade sobre o direito à palavra do corruptor.
Duvidam que um tribunal superior do vosso país sustente tais propósitos insultuosos para qualquer consciência cívica? Leiam o acórdão e julguem por vós.
6. Mas o mais grave é que o tribunal, para legitimar a condenação, sem pedido de ninguém e sem consultar nenhuma das provas do julgamento, decidiu alterar a matéria de facto dada como assente, invertendo o seu sentido.
Onde se lia que não fora provado que eu actuara sabendo da natureza criminosa da minha conduta — como de facto não sabia, com uma convicção partilhada por juízes, procuradores, advogados e jurisconsultos de todo o mundo (também em Portugal) —, passou a constar que eu bem sabia que estava a cometer um crime, numa decisão eivada da mais repulsiva arbitrariedade.
Nem pediram à 1.ª instância a fundamentação que alegaram que faltava, nem determinaram novo julgamento, nem sequer aplicaram uma pena (remetendo tal escolha para a 1.ª instância, numa singular originalidade). Parece que aquilo que importava era assegurar que o denunciante da corrupção não se ia “safar”.
7. Este acórdão alcança objectivamente dois fins fundamentais: a) intimidar quem quiser denunciar a corrupção; b) humilhar o denunciante concreto deste caso, voz demasiado incómoda.
8. Mas eu não me rendo. Poderão os juízes ameaçar-me com novos processos, como um deles já fez. Poderão prender-me. Mas não me calarão.
A justiça é o mais precioso dos valores da vida em comunidade. Não pode estar nas mãos de gente desta. Por isso, continuarei este combate. Pela minha dignidade e por quem confia em mim. Pela justiça portuguesa, incluindo pela grande maioria dos juízes portugueses. Pela decência na sociedade portuguesa.