Francisco Teixeira da Mota
Escrever direito
Savannah Dietrich é uma jovem norte-americana de 17 anos de idade que, numa festa, bebeu de mais e perdeu a consciência.
Dois jovens seus conhecidos, igualmente menores, aproveitaram para abusar sexualmente de Savannah e fizeram circular fotografias da jovem nua pelos telemóveis de alguns colegas da escola.
O caso foi levado a tribunal e os jovens confessaram-se culpados de um crime de abuso sexual em primeiro grau e outro de voyeurismo, tendo chegado a um acordo com o tribunal que não foi divulgado publicamente mas que não incluiu pena de prisão. A juíza que presidiu à audiência proibiu a divulgação do conteúdo da mesma e que o nome dos jovens fosse divulgado sob pena de multa e prisão. Savannah, insatisfeita, passou ao ataque e, há dias, no Twitter, escreveu o nome dos dois rapazes, acrescentando: “Já está, agora prendam-me. Eu não protejo quem fez da minha vida um inferno vivo”.
Os advogados dos jovens atacantes apresentaram, então, uma queixa por desobediência à ordem judicial (contempt of court), pretendendo a punição de Savannah, já que a divulgação dos nomes dos seus jovens clientes poderia causar-lhes “problemas para toda a vida”. A mediatização do conflito alterou os dados do problema e a equação judicial: num só dia, foram recolhidas online 62.000 assinaturas em defesa de Savannah e do seu direito a dizer publicamente quem a tinha atacado. Os órgãos de comunicação social locais e nacionais divulgaram a situação, sublinhando o absurdo da mesma: Savannah corria o risco de ser julgada e condenada em pena de prisão enquanto os seus atacantes permaneciam em liberdade e surgiam na posição de vítimas!
Os advogados dos jovens, sensatamente, recuaram e retiraram a queixa. É certo que o próprio tribunal, tendo tomado conhecimento da desobediência, poderia iniciar um processo contra Savannah, mas, tendo em conta as circunstâncias do caso, tal não era provável. Pelo seu lado, os advogados de Savannah Dietrich esforçam-se agora pela revogação da ordem judicial que impede a jovem de se referir publicamente ao caso por a mesma ser demasiado genérica.
O caso é analisado no nunca por de mais recomendado site do professor de Direito Eugene Volokh, The Volokh Conspiracy, onde considera que a ordem do tribunal é inconstitucional por violadora da liberdade de expressão da Savannah, mesmo tendo em conta que os seus atacantes eram menores, já que os factos que a jovem revelara eram do seu conhecimento pessoal, não os tendo obtido no processo judicial.
No entanto, o facto de uma decisão judicial ser inconstitucional não permite que a mesma seja violada ou desobedecida, já que a forma de impugnar a sua inconstitucionalidade deve ser o recurso ou qualquer outra reacção dentro do processo. Mas mesmo essa regra tem uma excepção, sendo admissível a desobediência a uma ordem judicial quando a mesma é “transparentemente inválida”, o que seria o caso, segundo Eugene Volokh.
Savannah Dietrich já é nos EUA uma heroína dos direitos das vítimas contra os direitos dos arguidos.
No nosso país, surge regularmente na arena pública um discurso contra os direitos dos arguidos e a favor dos direitos das vítimas. Afirma-se que as vítimas são extremamente desprotegidas na sua involuntária travessia do sistema judicial, contrariamente aos arguidos, que gozam de inúmeros direitos. A polémica faz algum sentido, não porque os direitos das vítimas e dos arguidos devam ser vistos como mutuamente exclusivos ou sequer concorrenciais em muitos casos, mas porque é sempre possível melhorar o sistema e porque, tradicionalmente, a vítima é uma personagem menor no teatro judicial.
A recente defesa pública pela ministra da Justiça da criação de legislação que permita localizar os cidadãos que tenham sido condenados por abusos sexuais, depois do cumprimento das penas em nome da protecção das vítimas, nomeadamente das crianças, pode, assim, e em princípio, vir a configurar uma melhoria do nosso sistema. Mas, dado que estaremos dentro do âmbito da law in Portugal, que, como sabemos, reúne características imprevisíveis, nada é garantido. E, por isso mesmo, bem fez o presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, à cautela, e face ao carácter ainda vago das afirmações ministeriais, em lembrar que “não se pode importar soluções de sistemas penais que nada têm a ver com o sistema penal europeu, nomeadamente o norte-americano”.
Isto porque, nos EUA, a legislação existente sobre esta matéria obriga os condenados por crimes sexuais a, depois da sua libertação, comunicar às autoridades o local da sua residência, sendo tais dados divulgados publicamente, nomeadamente através da Internet.
Daremos, assim, notícia do projecto legislativo que vier a ser apresentado, procurando contribuir para a sua discussão pública.
Advogado. Escreve à sexta-feira.
Esta crónica não se publica durante o mês de Agosto, voltando a estas páginas em Setembro. ftmota@netcabo.pt
Público | sexta-feira, 27 Julho 2012