sábado, 26 de março de 2011

Diário da República nº 59 Série I de 24/03/2011

Ministérios das Finanças e da Administração Pública e do Trabalho e da Solidariedade Social
Portaria nº 115/2011 de 24-03-2011
Procede à actualização anual das pensões de acidentes de trabalho.


Ministério da Economia, da Inovação e do Desenvolvimento
Decreto-Lei nº 43/2011 de 24-03-2011
Estabelece a segurança dos brinquedos, transpondo a Directiva n.º 2009/48/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de Junho

Recrutamento e Formação de Magistrados - passado, presente e futuro

No Cóloquio sobre este tema, foi apresentada pelo Dr. Rui do Carmo, uma comunicação que nos parece da maior utilidade e interesse

COLÓQUIO

(Sindicato dos Magistrados do Ministério Público)

Lisboa, 18 de Março de 2011 – Hotel Real Palácio

I

O tema do recrutamento, selecção e formação dos magistrados regressou à agenda político -judiciária, três anos após a entrada em vigor da lei que actualmente os disciplina. Nenhum drama vem daí ! É bom que este tema sej a obj ecto de debate não só nas estruturas e pelos agentes do sistema de justiça mas também pela sociedade organizada e pelos cidadãos, onde é extremamente deficitária a reflexão sobre esta matéria.

É particularmente importante que todos nos apropriemos deste debate porque os sinais que transpiram dos potenciais centros de decisão e dos centros que aspiram a influenciar os decisores são, a meu ver, pouco claros, mesmo estranhamento contraditórios nalguns aspectos, e surgem num ambiente de pressentidas tensões ou acordos palacianas que sistematicamente o obscurecem. Há que exigir informação e direito à participação. Felicito, por isso, o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público pela organização deste encontro, mas a reflexão e o debate têm de ir mais longe, têm de nos confrontar com os destinatários da actividade judiciária, que são simultaneamente, nos termos constitucionais, os titulares originários do poder-dever de administrar a justiça. Reafirmo o que escrevi em 2004, quando se vivia a turbulência de mais um dos muitos e cíclicos anúncios

de revolução coperniciana nesta área, num ambiente com relevantes semelhanças com o actual: “o recrutamento, selecção e formação dos magistrados não é um problema interno deste grupo profissional”. É altura de o reafirmar.

E de deixar claro que, nesta como em qualquer outra matéria, não existe nenhum reduto onde esteja alojada a consciência moral do sistema de justiça, nem, felizmente, nenhum oráculo a que nos devamos dirigir para escutar a receita mágica para a melhoria da sua resposta às exigências da vida actual, da sociedade e dos cidadãos.

Tenho o dever, contudo, de esclarecer a que me refiro quando falo de sinais pouco claros, mesmo estranhamento contraditórios.

Refiro-me à prolongada indefinição sobre a existência ou não, neste ano, de concurso para recrutamento de novos magistrados judiciais, do Ministério Público e para os tribunais administrativos e fiscais, acompanhada por um argumentário que vem oscilando entre, por um lado, a necessidade de racionalizar os meios humanos existentes e a sua eventual suficiência e, por outro, a necessidade de esperar pelos resultados da contratada avaliação do actual modelo de recrutamento e formação.

Refiro-me à simultaneidade da reivindicação de mais meios humanos com o silêncio sancionador da inexistência de concurso para ingresso no CEJ, por parte de responsáveis institucionais das magistraturas.

Refiro-me, ainda, à conjugação de tudo isto com o anúncio de uma “proposta de lei de regime extraordinário de completamento da formação e colocação dos magistrados em

formação no Centro de Estudos Judiciários”, cujo conteúdo se desconhece, e com as diligências em curso para formação pelo CEJ dos substitutos de procurador-adjunto que actualmente se encontram ao serviço nas comarcas.

E as nuvens adensam-se se juntarmos a estes ingredientes a constatação da crescente fragilização do Centro de Estudos Judiciários, incapaz que está de ter um papel activo e esclarecido em todo este processo, não havendo j ogos de palavras, ou de sombras, que o consigam disfarçar.

Neste quadro, é, por outro lado, ainda mais importante que se conheçam publicamente, se é que existem, os termos de referência que orientam a avaliação que está actualmente a ser feita, pelo Observatório Permanente da Justiça, ao sistema de recrutamento e formação de magistrados e ao Centro de Estudos Judiciários, tomando ainda em consideração as palavras do Senhor Ministro da Justiça na tomada de posse dos novos directores-adjuntos do CEJ, circunstância em que falou em “acentuar a vocação do CEJ para a formação permanente e aumentar a intervenção de outras entidades, designadamente universidades, na formação inicial dos magistrados”.

Ou seja, a primeira mensagem que aqui quero trazer é a da necessidade de informação, de transparência e de alargamento do debate.

II

Quando se aborda o tema do recrutamento, selecção e formação de magistrados, trata-se, antes de mais, e necessariamente, de saber o que deles se espera.

Não se espera, decerto, que sejam magistrados funcionalizados, reprodutores de rotinas, sem espírito crítico e sem capacidade de iniciativa e de inovação, paralisados em face da novidade dos problemas e das respostas, insistindo em velhas ideias para responder aos novos desafios, impreparados para os compreender e para o debate interdisciplinar.

Espera-se, sim, que sejam magistrados capazes de assumir o seu estatuto de independência ou de autonomia, com uma boa compreensão do seu estatuto constitucional e profissional, preparados para apreender e compreender o facto e responder de forma esclarecida e pragmática aos desafios da actual complexidade social, conscientes da sua função e comprometidos com as consequências das decisões e com a sua efectiva execução.

Só estes estarão preparados para serem magistrados nos tempos de hoje, que exige, repito, competência técnica, capacidade de diálogo com os outros saberes cada vez mais presentes e essenciais à actividade judiciária, para interagir com os outros intervenientes no processo, de o conduzir de forma esclarecida e pragmática tendo sempre presente o seu objectivo, de concretizar o programa da lei em cada caso concreto e de fazer cumprir as decisões.

A formação, seja a formação inicial seja a formação contínua, que é um instrumento ao serviço da melhoria da qualidade e da capacidade de resposta do sistema de justiça, tem de ter sempre isso presente. Tendo por referência a prática judiciária, só cumprirá essa função se, na sua programação e execução, for capaz de a questionar, de transformar experiência em conhecimento e de introduzir inovação.

Ao longo destes mais de 30 anos, as tensões vividas reconduziram-se ao que j á fora enunciado na exposição do motivos do primeiro anteprojecto do diploma de criação de Centro de Estudos Judiciários, que passo a citar pela inutilidade de inventar novas palavras: ”a necessidade de evitar que [a formação de magistrados] se transforme em actividade de pós­graduação apenas dirigida ao desenvolvimento teórico de anterior aprendizagem; a necessidade de evitar esquemas utilitaristas em que se privilegie excessivamente o adestramento prático em prejuízo da investigação, da reflexão e da elaboração doutrinal; a necessidade, sobretudo, de evitar fórmulas que imponham ou insinuem modelos de comportamento impeditivos do enriquecimento da personalidade”.

A segunda mensagem que aqui quero trazer é, pois, a de oposição a um modelo de formação/reprodução assente na imitação e no “mito da experiência” e, consequentemente, a mensagem da necessidade de manutenção e fortalecimento do Centro de Estudos Judiciários enquanto centro de formação profissional das magistraturas, mas também enquanto centro de “investigação e estudo no âmbito judiciário”, faceta que, embora continue a constar expressamente da definição legal da sua missão, tem sido completamente abandonada.

III

Claro que há aspectos a repensar, claro que é importante monitorizar a actividade do CEJ, promover o estudo e o debate – a inquietação é um alimento essencial para a vitalidade de uma instituição com esta difícil missão, tão permeável à evolução científica, social, económica e política.

Um dos aspectos a repensar é o dos critérios de recrutamento e selecção de novos magistrados – que merece uma grande reflexão, centrada fundamentalmente na necessidade de conter a cíclica criação de regimes excepcionais, de clarificação sobre o que se deve pretender avaliar nos exames de acesso ao CEJ e na reponderação quanto ao actual regime de acesso pela via profissional. Esta, por exemplo, a via profissional, que constitui um positivo contributo para o enriquecimento do tecido sócio­profissional das magistraturas, pela maior diversidade de idades, trajectos e experiências profissionais que nelas incorpora, precisa urgentemente de ser clarificada quanto aos requisitos de admissão ao concurso e repensada quanto aos métodos de selecção.

Outro motivo de reflexão deve ser o acentuar da vertente interdisciplinar e de tratamento do facto na fase teórico-prática da formação inicial, cosendo-se os seus dois ciclos com a linha de um objectivo comum, e definindo de forma clara o contributo que se pede a cada um deles para o alcançar.

O 1º ciclo deve procurar alcançar quatro grandes objectivos – compreensão da inserção constitucional dos tribunais na organização do poder político e das suas funções; interiorização das regras estatutárias, éticas e deontológicas que terão de reger o exercício da magistratura; aquisição de conhecimentos que não resultam da formação de base dos auditores de justiça e que se mostram essenciais ao exercício da função para que se estão a preparar; aprendizagem do método judiciário de apreensão, compreensão e tratamento do facto. Para que os cumpra, o núcleo essencial das suas actividades não deverá ser organizada por “disciplinas”, antes deve consistir na abordagem de temas seleccionados pela sua relevância sócio -judiciária, de forma multifacetada e interdisciplinar, que inclua a vertente jurídica substantiva e processual, o tratamento do facto, a sua compreensão, os contributos de outras disciplinas imprescindíveis ao seu conhecimento e abordagem, a análise das expectativas e dos efeitos da intervenção judiciária.

O 2ºciclo, que decorre nos tribunais, esse sim, deverá ser o ciclo por excelência do aprender a “saber fazer”. A que se segue o estágio.

São duas fases de formação complementares, que terão de ser concebidas e executadas de forma articulada, mas a verdade é que a ligação entre elas nunca foi obj ecto de intervenção suficientemente clarificadora, o que em certa medida as autonomizou e potenciou a construção de uma praxis que, por vezes, se assemelha à da coexistência de dois modelos de formação rivais.

A formação contínua e especializada tem sido, do ponto de vista do que nela é investido, dos meios que estão disponíveis para nela investir, o parente pobre do CEJ. Situação que terá de ser urgentemente modificada. Porque não é compatível com as crescentes exigências de actualização profissional, com a importância que lhe é atribuída na mais recente legislação sobre a organização judiciária e os estatutos socioprofissionais. Porque o seu reforço é fundamental para promover a inovação e limitar as tendências pedagógico-reprodutivas nas inspecções. Para que a formação contínua e especializada sej a, efectivamente, um direito e um dever dos magistrados.

O modelo de governação do Centro de Estudos Judiciários é condição da capacidade de provocar aperfeiçoamentos, da vitalidade da sua afirmação e do cabal cumprimento da sua missão, tendo, para isso, de garantir uma ampla legitimação da definição do seu programa de trabalho, o efectivo acompanhamento da sua execução pelos órgãos da instituição e um funcionamento corrente colegial, democraticamente participado, motivador e criativo.

A terceira mensagem que vos quero trazer é, pois, que as questões respeitantes à formação não são, obviamente, questões fechadas, muito há a reflectir e a inovar, há aspectos que necessitam manifestamente de ser melhorados e reequacionados, e o funcionamento do Centro de Estudos Judiciários é um factor de grande relevância, e preocupação, nesse processo.

IV

É essencial que se crie um ambiente de confiança para a reflexão sobre o recrutamento, selecção e formação de magistrados. A não disponibilização da informação e o sentido contraditório dos sinais que têm marcado esta matéria nos últimos meses têm provocado e agravado o sentimento de incerteza, e são responsáveis pela circulação do boato e pela degradação das condições para um diálogo aberto e esclarecedor.

É preciso libertar a palavra. É decisivo que se exija informação e se provoque o debate.

Obrigado pela vossa atenção.

Rui do Carmo