Pedido de indemnização civil - responsabilidade civil emergente de crime - violação - consultório médico - indemnização - danos não patrimoniais - equidade
I - O arguido foi condenado na 1ª instância como autor material de um crime de violação p. p. no art.º 164.º n.º 1 do C. Penal, e ainda a pagar à assistente/demandante a quantia de € 30 000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais.
II - O Tribunal da Relação do Porto, porém, modificou parcialmente os factos provados e concluiu que os atos praticados pelo arguido não se enquadravam nos conceitos de violência, ameaça grave, inconsciência ou impossibilidade da vítima em resistir para a constranger à prática do coito oral e da cópula, pelo que o absolveu do crime e também do pedido cível, por não haver qualquer ilícito civil.
III - Dado o desenvolvimento processual descrito no relatório, o STJ não pode exercer qualquer crítica quanto à absolvição penal, entretanto já transitada em julgado, mas deve apreciar se ficou ou não provado um ilícito gerador de responsabilidade civil, pois é neste sentido que se dirige o único recurso ainda subsistente.
IV - Efetivamente, a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respetivo vier a revelar-se fundado (cf. art.º 377.º, n.º 1, do CPP), pois que determinado ato pode não ser punível criminalmente, por não estarem reunidos os factos típicos ou os elementos subjetivos do crime, mas ainda assim pode constituir um ilícito de outra natureza, gerador de responsabilidade civil (art.º 483.º, n.º 1, do CC).
V - Ora, no caso em análise, certo é que em momento algum a vítima deu o seu consentimento aos atos sexuais, nem de modo expresso nem de forma implícita. Todos os gestos e atitudes da vítima só poderiam ter conduzido o demandado a concluir que a mesma não queria ter relações sexuais consigo, pois tudo o que esta fez foi tentar afastar-se ostensivamente dele e retirar-se do local e toda a atuação do demandado foi no sentido de contrariar essa vontade da vítima, para usá-la como objeto de prazer próprio.
VI - Ora, se a ocasião em que o demandado e a demandante se encontravam fosse meramente social, a de um homem que está sozinho com uma mulher em determinado lugar, sem nenhum vínculo profissional a os ligar, ainda se poderia discutir se a prática pelo homem de relações sexuais de coito oral e de cópula com essa mulher, sem o consentimento expresso ou implícito desta, seria ou não um ato violador do direito à personalidade, protegido pelo art.º 70.º, n.º 1 do CC («A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral»). Embora se adiante que a resposta teria de ser afirmativa, pois a todos deve ser garantida a liberdade de disporem do seu corpo sem a intrusão, não consentida e portanto abusiva, de terceiros.
VII - Todavia, no caso em apreço, o demandante estava no seu consultório de médico, no exercício da sua profissão e a demandada era uma doente que tinha recorrido aos seus serviços, para obter a cura de uma doença de que padecia.
VIII - Ora, nos termos do art.º 39º do Código Deontológico dos Médicos, que entrou em vigor em 26 de outubro de 2008, estabelece-se que o médico deve sempre respeitar a pessoa do doente e que a situação de vulnerabilidade que caracteriza a pessoa doente, bem como a dependência física e emocional que se pode estabelecer entre esta e o seu médico, torna o assédio sexual uma falta particularmente grave quando praticada pelo médico.
IX - “Assédio sexual é um tipo de coerção de caráter sexual praticada geralmente por uma pessoa em posição hierárquica superior em relação a um subordinado (mas nem sempre o assédio é empregador - empregado, o contrário também pode acontecer), normalmente em local de trabalho ou ambiente académico. O assédio sexual caracteriza-se por alguma ameaça, insinuação de ameaça ou hostilidade contra o subordinado”.
X - É evidente que os factos provados constituem um ostensivo assédio sexual de um médico à doente, isto é, à pessoa que então se lhe tinha dirigido para se socorrer dos seus serviços profissionais, já que na relação “médico - paciente” se estabelece uma hierarquia de valores, na qual este último reconhece naquele outro uma supremacia de conhecimentos científicos em medicina que podem ajudar a resolver uma situação de saúde física ou mental.
XI - No caso em apreço, a coerção nem foi apenas verbal, pois o médico passou de imediato aos atos sexuais, sem obter prévio acordo da visada. Trata-se de um ato que, segundo o Código Deontológico, constitui uma falta particularmente grave dos deveres do médico, ora demandado. Ainda que houvesse “consentimento” da vítima, o que nem foi o caso.
XII - Tal falta deontológica tem de ser imputada ao demandado a título doloso. A doente que se entregara aos seus serviços clínicos era ostensivamente frágil, física e psicologicamente, já que sofria de doença depressiva e estava quase em final de tempo de gestação, pois então se encontrava na 34ª semana de gravidez. Mesmo assim, conseguiu manifestar pelos gestos e pela atitude que não desejava o contacto sexual imposto pelo médico, o que este bem percebeu, pois segurou a cabeça da doente para lhe introduzir o pénis na boca, agarrou-a, virou-a de costas, empurrou-a, baixou-lhe as calças (de grávida) e introduziu o pénis ereto na vagina até ejacular.
XIII - Constitui-se o demandado, assim, no dever de indemnizar a demandante pelos prejuízos não patrimoniais que o seu ato ilícito provocou, nos termos dos art.ºs 39.º, n.º 3, do Código Deontológico dos Médicos, 483.º e 487.º do CC.
XIV - O montante da indemnização por danos não patrimoniais «será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art. 494.º» (art.º 496.º, n.º 3 do CC)
XV - A demandante calculou o valor do seu prejuízo não patrimonial em € 100 000,00, mas a 1ª instância, baseada em critérios de equidade, fixou esse montante em € 30 000,00.
XVI - «O montante da indemnização por danos não patrimoniais, de harmonia com o preceituado no art. 496.º, n.º 1, do CC, deve ser fixado equitativamente, isto é, «tendo em conta todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida» (Antunes Varela - Henrique Mesquita, Código Civil Anotado, vol. 1.º, anotação 6.ª ao art. 496.º).
XVII - Em caso de julgamento segundo a equidade, «devem os tribunais de recurso limitar a sua intervenção às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, “as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida”».
XVIII - Ora, aquele montante fixado na 1ª instância é manifestamente insuficiente e afronta a justa medida das coisas. Na verdade, o avanço sexual de um médico psiquiatra (e também psicanalista), no seu consultório, sobre a paciente que está a ser por ele observada, seguido de coito oral e cópula, sem o consentimento da mesma, estando ela com doença depressiva e gravidez quase de termo, é um ato de enorme gravidade, que não pode deixar de provocar um fortíssimo trauma na vítima, dificilmente esquecível.
XIX - Ora, os critérios de equidade e a circunstância da lei mandar atender à “culpa do lesante”, têm conduzido a jurisprudência a atribuir à indemnização por danos não patrimoniais também um caráter sancionatório.
XX - Para dar cabal resposta aos concretos juízos de equidade que o caso convoca – gravidade da ilicitude, dolo intenso, particular fragilidade da vítima, danos não patrimoniais que irão perdurar, caráter sancionatório da indemnização, boa situação económica e social do agente e efetiva possibilidade compensatória para a vítima – só o total do montante da indemnização pedida (cem mil euros) se mostra ajustado.
Ac. do STJ de 15-02-2012, Proc. n.º 476/09.0PBBGC.P1.S1, Relator: Conselheiro Santos Carvalho