sábado, 16 de abril de 2011

Casa da Supplicação

Competência do STJ – admissibilidade de recurso – pedido de indemnização civil – aplicação subsidiária do código de processo civil – dupla conforme – lacuna – princípio da igualdade – rejeição de recurso

I - O tribunal de 1.ª instância condenou a recorrente seguradora, a pagar aos demandantes, ora recorridos, certas indemnizações a título de danos não patrimoniais e pela perda do direito à vida e, em recurso, o Tribunal da Relação, sem qualquer voto de vencido, confirmou aquela decisão.

II - Nos termos do art. 721.º, n.º 1, referido ao art. 691.º, n.º 1, do CPC (versão do DL 303/2007, de 24-08), cabe recurso de revista para o STJ do acórdão da Relação que tenha incidido sobre uma decisão de 1.ª instância que tenha posto termo ao processo. Mas, de acordo com o n.º 3 do primeiro destes preceitos, «não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a decisão proferida na 1ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte»: é o chamado sistema da “dupla conforme”.

III - Esta norma é subsidiariamente aplicável aos pedidos de indemnização civil julgados no processo penal, por força do disposto no art. 4.º do CPP.

IV - Com a norma do art. 400.º, n.º 3, do CPP, quis-se claramente afirmar solução oposta àquela a que chegou o Ac. de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2002, estabelecendo-se sem margem para dúvidas, ao que se julga, que as possibilidades de recurso relativamente ao pedido de indemnização são as mesmas, seja o pedido deduzido no processo penal ou em processo civil – cf. Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 109/X.

V - Se o legislador do CPP quis consagrar a solução de serem as mesmas as possibilidades de recurso, quanto à indemnização civil, no processo penal e em processo civil, há que daí tirar as devidas consequências, concluindo-se que uma norma processual civil, como a do n.º 3 do art. 721.º, que condiciona, nesta matéria, o recurso dos acórdãos da Relação, nada se dizendo sobre o assunto no CPP, é aplicável ao processo penal, havendo neste, em relação a ela, caso omisso.

VI - Até porque o legislador do CPP, na versão da Lei 48/2007, afirmou a igualdade de oportunidades de recurso em processo civil e em processo penal, no que se refere ao pedido de indemnização, numa altura em que já conhecia a norma do n.º 3 do art. 721.º do CPC (a publicação do DL 303/2007 é anterior à da Lei 48/2007).

VII - Por outro lado, a aplicação do n.º 3 deste art. 721.º ao pedido de indemnização civil deduzido no processo penal não cria qualquer desarmonia; não existe, efectivamente, qualquer razão para que em relação a duas acções civis idênticas haja diferentes graus de recurso apenas em função da natureza civil ou penal do processo usado, quando é certo que neste último caso a acção civil conserva a sua autonomia.

VIII - Pode mesmo dizer-se que outro entendimento que não o aqui defendido conduziria ao inquinamento da decisão a tomar pelo lesado nos casos em que a lei lhe permite deduzir em separado, perante os tribunais civis, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime.

IX - Este sistema da “dupla conforme” entrou em vigor em 01-01-2008, aplicando-se apenas aos processos iniciados após essa data, como se prevê nos arts. 11.º, n.º 1, e 12.º, n.º 1, do referido DL 303/2007. Como o presente pedido de indemnização civil foi apresentado em 18/04/2009, aplicando-se-lhe por isso a lei nova e, porque não está em causa a aplicação do regime excepcional do art. 721.º-A do CPC, o recurso não é admissível, e por isso não deveria ter sido admitido, em face do disposto no art. 414.º, n.º 2, do CPP.

X - Tendo sido admitido, e porque essa decisão não vincula este tribunal superior, nos termos do n.º 3 daquele art. 414.º, deve agora ser rejeitado, de acordo com o disposto no art. 420.º, n.º 1, al. b), deste último código. (AcSTJ de 07-04-2011, proc.º n.º 4068/07.0TDPRT.G1.S1, Relator: Conselheiro Manuel Braz)

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Homicídio – agravante – arma de fogo – caçadeira – detenção de arma proibida – qualificação jurídica – concurso de infracções – concurso aparente – medida concreta da pena – parentesco – pena acessória – interdição de detenção – uso e porte de arma

I - No presente recurso questiona-se a agravação prevista no n.º 3 do art. 86.º da Lei 5/2006, de 23-02, em relação à pena do crime de homicídio, sendo certo que a agravação ali estabelecida só não terá lugar quando «o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma».

II - O uso ou porte de arma não é elemento do crime de homicídio, cujo tipo legal fundamental é o previsto no art. 131.º do CP; pode ser um factor de agravação, mas só o será se, para além de preencher um dos exemplos-padrão «meio particularmente perigoso» ou «prática de um crime de perigo comum» da al. h) do n.º 2 do art. 132.º, revelar «especial censurabilidade ou perversidade». Enquanto que a agravação do n.º 3 do art. 86.º, encontrando fundamento num maior grau de ilicitude, tem sempre lugar se o crime for cometido com arma, a do art. 132.º só operará se o uso de arma ocorrer em circunstâncias reveladoras de uma especial maior culpa. Além, para haver agravação, basta o uso de arma no cometimento do crime, aqui não.

III - O n.º 3 do art. 86.º só afasta a agravação nele prevista nos casos em que o uso ou porte de arma seja elemento do respectivo tipo de crime ou dê lugar, por outra via, a uma agravação mais elevada. A agravação do art. 86.º, n.º 3, não é arredada ante a mera possibilidade de haver outra agravação, mas apenas se for de accionar efectivamente essa outra agravação. Ora, o uso de arma não é elemento do crime de homicídio, e, no caso, não levou ao preenchimento do tipo qualificado do art.132.º, pelo que não há fundamento para afastar a agravação do art. 86.º, n.º 3.

IV - Outra questão é a de saber se o arguido cometeu efectivamente o crime de detenção de arma proibida: por morte do pai do arguido e da vítima não se procedeu à partilha dos bens existentes, sendo um desses bens uma casa de habitação, com anexos, num dos quais residia o recorrente. A espingarda caçadeira em causa pertencera ao pai do arguido, estava registada em nome da mãe e na altura encontrava-se nesse anexo. Não se sabe a que título ali se encontrava, quem a colocara ali e desde quando ali se encontrava. Sabe-se apenas que a foi buscar para disparar sobre o irmão. Não se pode assim ter como assente que a arma era detida pelo arguido. Este acto, único conhecido do recorrente em relação à arma, configura simples uso: o arguido limitou-se a utilizar a arma para realizar o homicídio.

V - Essa conduta do recorrente, não possuindo ele a necessária licença de uso e porte, preenche o tipo objectivo do crime do art. 86.º, n.º 1, al. c), da Lei 5/2006: a espingarda em causa é uma «arma de fogo longa» (als. p), q) e s) do n.º 1 do art. 2.º); é uma arma de «tiro a tiro» [al. aj)]; é uma arma de cano de «alma lisa», sendo pois, uma arma da classe D: «São armas da classe D: As armas de fogo longas de tiro a tiro de cano de alma lisa» [art. 3.º, n.º 6, al. c)].

VI - E, não obstante o homicídio ser agravado em função da utilização da espingarda, ao abrigo do art. 86.º, n.º 3, não é valorada nessa agravação a situação de proibição em que o recorrente se encontrava em relação à arma, por falta da licença de uso e porte. Isso porque à agravação é indiferente que o agente esteja numa situação de legalidade ou de ilegalidade em relação à arma: a agravação teria lugar mesmo que o recorrente tivesse licença de uso e porte.

VII - Mas, apesar de o comportamento global do arguido ser subsumível a dois tipos legais – homicídio e uso de arma proibida –, não deve concluir-se por um concurso efectivo de crimes, mas antes aparente.

VIII - Com efeito, o arguido foi ao interior do anexo, pegou na espingarda, não possuindo a necessária licença de uso e porte, trouxe-a para o exterior, apontou-a à vítima e disparou sobre ela, matando-a. A conexão existente entre a conduta do arguido em relação à arma e o homicídio, esgotando-se aquela na prática deste, faz aparecer, no comportamento global, o sentido de ilícito do homicídio absolutamente dominante e subsidiário o sentido de ilícito da utilização da arma proibida, havendo desde logo «unidade de sentido social do acontecimento ilícito global», pois o que o recorrente pretendeu foi matar o irmão, não sendo o uso de arma proibida mais que o processo de que se serviu para atingir o resultado almejado – cf. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, págs. 989, 1015 e 1017.

IX - Não é, pois, correcta a decisão recorrida no ponto em que autonomizou como crime do art. 86.º, n.º 1, al. c), da Lei 5/2006, o uso da arma, devendo o arguido ser absolvido da acusação nessa parte. A utilização de arma proibida relevará apenas na determinação da pena concreta do crime de homicídio.

X - Para determinar a medida da pena do crime de homicídio (punível, em função daquela agravação, com pena de prisão de 10 anos e 8 meses a 21 anos e 4 meses), e tendo em conta:

- o dolo, que não se afasta muito do que é normal neste tipo de crime quando cometido com dolo directo; é certo que a circunstância de o arguido ter que ir buscar a arma ao anexo onde ela se encontrava, por implicar a possibilidade de reflectir sobre o acto que se propunha levar a cabo, durante os momentos que esse movimento levou a ser executado, e o facto de ter feito um segundo disparo, depois de com o primeiro haver atingido a vítima em termos de lhe provocar a morte, são reveladores de uma vontade bem vincada de levar a cabo a conduta projectada, mas esse efeito de expansão do dolo é em alguma medida contrabalançado com o menor discernimento implicado, por um lado, no estado de revolta em que se encontrava, motivado pelas dificuldades que o ofendido estava a colocar à manutenção da sua residência no anexo, e, por outro, em alguma instabilidade emocional derivada da doença de que sofre que, conhecida há pouco tempo, impunha então baixa médica e tratamento de quimioterapia;

- o grau considerável de ilicitude, visto que, para além de se encontrar numa situação de ilegalidade em relação à espingarda, esta, sendo embora um instrumento normal para matar, dentro dos meios normais, é dos mais perigosos, pela sua elevada capacidade letal e por tornar muito difícil a defesa;

- a censura acrescida que deve ser dirigida à conduta do arguido, na parte do homicídio, por não se ter deixado sensibilizar pelos contra-motivos éticos relacionados com os laços de parentesco próximo com a vítima, de quem era irmão;

- que as necessidades de prevenção geral são assinaláveis;

- que, em sede de prevenção especial, relevam positivamente a ausência de antecedentes criminais e o facto de o recorrente estar socialmente inserido e, negativamente, a facilidade com que tomou a decisão de matar e a executou, deixando-se penetrar por uma revolta injustificada, relativa à herança,

entende-se adequada a pena de 14 anos de prisão [em vez da de 17 anos imposta em 1.ª instância].

XI -A decisão recorrida fixou a sanção acessória de detenção, uso e porte de armas em paralelismo com a pena do homicídio, fazendo coincidir a medida de ambas. Assim, a redução da medida da pena aplicada em 1.ª instância pelo crime de homicídio para 14 anos de prisão deve ser acompanhada de igual redução da medida da pena acessória. (AcSTJ de 31-03-2011 , proc. n.º 361/10.3GBLLE, R, Rel: Conselheiro Manuel Braz)

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Conflito negativo de competência – competência por conexão



I – A competência por conexão importa uma opção legislativa na base da qual se surpreende sempre a conveniência da Justiça. Ou porque há entre os crimes uma tal ligação que se presume que o esclarecimento de todos será mais fácil ou mais completo quando processados conjuntamente, evitando-se possíveis contradições de julgados e realizando-se consequentemente melhor justiça, ou porque o mesmo agente responde por vários crimes e é conveniente julgá-los a todos no mesmo processo até para mais fácil e melhor aplicação da punição do concurso de crimes (art.º 77.º do Código Penal).

II - A prevalência que deve ser dada àqueles interesses superiores da administração da Justiça, postula que, em processo penal, a decisão sobre a existência de conexão processual relevante pode e deve ser suscitada indistintamente em qualquer dos processos em conexão.

III - Existindo conexão, o tribunal competente para o julgamento conjunto é o competente, nos termos do art.º 28.º, a), do CPP, para julgar o crime a que corresponda pena mais grave. (Despacho de 24-03-2011, proc. n.º 3882/06.9TAVNG-E.S1, do Conselheiro Presidente da Secção Criminal do STJ, Pereira Madeira)