Diário Económico - segunda-feira, 06 Agosto 2012 - Opinião
À ESQUERDA: QUE SE "LIXE" A CONSTITUIÇÃO
“O Tribunal Constitucional sabe fazer contas”. Ainda bem. Acaso fosse esse o propósito, teria contabilistas em vez de Conselheiros. Só que não é para fazer que aquele Tribunal serve. Serve, sim, para proteger os direitos fundamentais dos cidadãos.
É claro que o Tribunal Constitucional não deve decidir no vácuo, nem pode alhear-se da realidade. E não o tem feito. Quer na recente decisão, ao protelar os seus efeitos para 2013, quer antes, ao permitir o corte de vencimentos na função pública e o aumento retrospetivo de impostos, a justiça constitucional portuguesa tem demonstrado uma enorme tolerância, porventura até excessiva, às premências da crise económica. Apesar disso, bastou uma desfeita para que logo o Tribunal Constitucional se tornasse no saco de pancada da Direita.
Começou por se anunciar uma “catástrofe” caso o Tribunal tivesse a ousadia de interpretar a Constituição à luz de cânones jurídicos, e não da vontade dos mercados. Depois, alegou-se que o Tribunal foi irresponsável, que “criou um problema”, ignorando as implicações financeiras da sua decisão. O que, além de ser mentira, encerra uma gravíssima inversão de perspetiva. Não é a Constituição que tem de se moldar ao Orçamento do Estado (OE), é o OE que tem de se conformar com o quadro constitucional.
Outros afirmaram que o Tribunal se imiscuiu na definição da política económica, extravasando as suas funções. Como se delimitar as balizas constitucionais da ação governativa não fosse uma das funções de qualquer Tribunal Constitucional.
Curioso é que quem utilizou o argumento anterior tenha sido capaz, logo a seguir, de sustentar que o Tribunal tinha a obrigação de sugerir alternativas ao corte dos subsídios. Ora, isso sim, seria uma grosseira violação do princípio da separação de poderes.
Afirmou-se ainda que o Tribunal não passa de um órgão político, ignorando que a decisão foi tomada por uma maioria de nove votos, para lá das divisões ideológicas. E apelou-se mesmo a que a Constituição fosse revista, como se fosse possível expurgar dela o princípio da igualdade. Na verdade, o acórdão em causa está longe de ser perfeito e pode ser objeto de múltiplas críticas. Mas a ira contra o Tribunal Constitucional, sobretudo baseada em raciocínios de índole financeira, é reveladora de uma perigosa imaturidade democrática. O Tribunal Constitucional não é o Banco de Portugal. E, a benefício do Estado de Direito, ainda bem que não o é. O Tribunal Constitucional não é, sequer, o Tribunal de Contas, esse sim encarregue de velar pela saúde financeira do Estado. O Tribunal Constitucional existe para traçar limites ao poder. E só dentro desses limites pode haver austeridade.
Assim, o Governo pode até legitimamente discordar da decisão proferida pelo Tribunal Constitucional. Não pode é “lixar-se” para ela.
À DIREITA: CORPORAÇÕES
O mau funcionamento dos tribunais é uma das explicações para a fraca prestação da economia portuguesa. Evidencia as vantagens do não pagamento de uma factura, do incumprimento de um contrato e do desrespeito da lei. São milhares que não recebem quando devido, com o que isso implica de salários em atraso, no despedimento de trabalhadores e na falta de investimento estrangeiro. Como advogado, confesso-me surpreendido com o modo suave como os portugueses, directamente prejudicados com esta triste situação, lidam com ela.
Há anos que discutimos este problema e ele permanece sem solução à vista. Talvez porque a procuramos onde ela não está: na mera alteração de regras processuais, quando o drama vive na visão corporativista que ainda temos da sociedade e, neste caso concreto, do funcionamento da justiça. É esta visão que explica por que motivo, apesar de ouvirmos os representantes das diversas classes profissionais falarem no consenso como indispensável para que o sistema judicial funcione, as divergências se vão amontoando. Quem olha de fora vê um grupo de pessoas que, apesar de trabalharem na mesma área, não se entendem.
Os entraves ao início de uma carreira jurídica são imensos. O exercício da advocacia implica o ingresso, cada vez mais difícil, na Ordem dos Advogados. Quem quiser ser juiz, terá de sofrer a bem sofrer no Centro de Estudos Judiciários e um notário tirar um curso de formação em instituição universitária. O estágio para solicitadores transformou-se num somatório de aulas aborrecidas que repetem à exaustão o que foi dado na licenciatura. A experiência, a equidade, valores próprios e essenciais à Justiça, foram, aos poucos, postos de lado. As barreiras impostas no acesso a qualquer destas profissões é tal que, quem o consegue, dificilmente está disposto a repetir tudo para mudar de carreira. Estas ficaram de tal forma compartimentadas que estacaram. Daí à incompreensão e à desconfiança foi um passo. As fileiras foram cerradas e por muito boa vontade que até possa existir nos discursos da praxe, não é possível encontrar mais que clichés, pois pontes não as há. Nem sempre foi assim. Quem troque impressões com juristas mais velhos verá as diferentes experiências que tiveram: notários que outrora foram magistrados ou advogados; juizes que fizeram alegações e advogados que já foram juizes. Uma realidade rica e diversificada que a divisão do mundo em corporações matou. Uma dinâmica que não impedia apenas o pleitear desnecessário de inúmeras matérias em tribunal, como permitiria uma melhor adaptação da Justiça ao mundo de hoje. A desjudicialização implica entendimento, e este passa pela confiança que só nasce da partilha. Daí que, quanto mais barreiras pusermos no acesso ao mundo da justiça, pior.
JUSTIÇA
Que caminho?
À ESQUERDA: QUE SE "LIXE" A CONSTITUIÇÃO
“O Tribunal Constitucional sabe fazer contas”. Ainda bem. Acaso fosse esse o propósito, teria contabilistas em vez de Conselheiros. Só que não é para fazer que aquele Tribunal serve. Serve, sim, para proteger os direitos fundamentais dos cidadãos.
É claro que o Tribunal Constitucional não deve decidir no vácuo, nem pode alhear-se da realidade. E não o tem feito. Quer na recente decisão, ao protelar os seus efeitos para 2013, quer antes, ao permitir o corte de vencimentos na função pública e o aumento retrospetivo de impostos, a justiça constitucional portuguesa tem demonstrado uma enorme tolerância, porventura até excessiva, às premências da crise económica. Apesar disso, bastou uma desfeita para que logo o Tribunal Constitucional se tornasse no saco de pancada da Direita.
Começou por se anunciar uma “catástrofe” caso o Tribunal tivesse a ousadia de interpretar a Constituição à luz de cânones jurídicos, e não da vontade dos mercados. Depois, alegou-se que o Tribunal foi irresponsável, que “criou um problema”, ignorando as implicações financeiras da sua decisão. O que, além de ser mentira, encerra uma gravíssima inversão de perspetiva. Não é a Constituição que tem de se moldar ao Orçamento do Estado (OE), é o OE que tem de se conformar com o quadro constitucional.
Outros afirmaram que o Tribunal se imiscuiu na definição da política económica, extravasando as suas funções. Como se delimitar as balizas constitucionais da ação governativa não fosse uma das funções de qualquer Tribunal Constitucional.
Curioso é que quem utilizou o argumento anterior tenha sido capaz, logo a seguir, de sustentar que o Tribunal tinha a obrigação de sugerir alternativas ao corte dos subsídios. Ora, isso sim, seria uma grosseira violação do princípio da separação de poderes.
Afirmou-se ainda que o Tribunal não passa de um órgão político, ignorando que a decisão foi tomada por uma maioria de nove votos, para lá das divisões ideológicas. E apelou-se mesmo a que a Constituição fosse revista, como se fosse possível expurgar dela o princípio da igualdade. Na verdade, o acórdão em causa está longe de ser perfeito e pode ser objeto de múltiplas críticas. Mas a ira contra o Tribunal Constitucional, sobretudo baseada em raciocínios de índole financeira, é reveladora de uma perigosa imaturidade democrática. O Tribunal Constitucional não é o Banco de Portugal. E, a benefício do Estado de Direito, ainda bem que não o é. O Tribunal Constitucional não é, sequer, o Tribunal de Contas, esse sim encarregue de velar pela saúde financeira do Estado. O Tribunal Constitucional existe para traçar limites ao poder. E só dentro desses limites pode haver austeridade.
Assim, o Governo pode até legitimamente discordar da decisão proferida pelo Tribunal Constitucional. Não pode é “lixar-se” para ela.
Tiago Antunes - Jurista
À DIREITA: CORPORAÇÕES
O mau funcionamento dos tribunais é uma das explicações para a fraca prestação da economia portuguesa. Evidencia as vantagens do não pagamento de uma factura, do incumprimento de um contrato e do desrespeito da lei. São milhares que não recebem quando devido, com o que isso implica de salários em atraso, no despedimento de trabalhadores e na falta de investimento estrangeiro. Como advogado, confesso-me surpreendido com o modo suave como os portugueses, directamente prejudicados com esta triste situação, lidam com ela.
Há anos que discutimos este problema e ele permanece sem solução à vista. Talvez porque a procuramos onde ela não está: na mera alteração de regras processuais, quando o drama vive na visão corporativista que ainda temos da sociedade e, neste caso concreto, do funcionamento da justiça. É esta visão que explica por que motivo, apesar de ouvirmos os representantes das diversas classes profissionais falarem no consenso como indispensável para que o sistema judicial funcione, as divergências se vão amontoando. Quem olha de fora vê um grupo de pessoas que, apesar de trabalharem na mesma área, não se entendem.
Os entraves ao início de uma carreira jurídica são imensos. O exercício da advocacia implica o ingresso, cada vez mais difícil, na Ordem dos Advogados. Quem quiser ser juiz, terá de sofrer a bem sofrer no Centro de Estudos Judiciários e um notário tirar um curso de formação em instituição universitária. O estágio para solicitadores transformou-se num somatório de aulas aborrecidas que repetem à exaustão o que foi dado na licenciatura. A experiência, a equidade, valores próprios e essenciais à Justiça, foram, aos poucos, postos de lado. As barreiras impostas no acesso a qualquer destas profissões é tal que, quem o consegue, dificilmente está disposto a repetir tudo para mudar de carreira. Estas ficaram de tal forma compartimentadas que estacaram. Daí à incompreensão e à desconfiança foi um passo. As fileiras foram cerradas e por muito boa vontade que até possa existir nos discursos da praxe, não é possível encontrar mais que clichés, pois pontes não as há. Nem sempre foi assim. Quem troque impressões com juristas mais velhos verá as diferentes experiências que tiveram: notários que outrora foram magistrados ou advogados; juizes que fizeram alegações e advogados que já foram juizes. Uma realidade rica e diversificada que a divisão do mundo em corporações matou. Uma dinâmica que não impedia apenas o pleitear desnecessário de inúmeras matérias em tribunal, como permitiria uma melhor adaptação da Justiça ao mundo de hoje. A desjudicialização implica entendimento, e este passa pela confiança que só nasce da partilha. Daí que, quanto mais barreiras pusermos no acesso ao mundo da justiça, pior.
André Abrantes Amaral - Advogado