domingo, 3 de setembro de 2006

Novo CPP, suas definições e omissões: o problema do caso julgado

Como vimos, no comentário anterior feito ao artigo 1º, onde se albergam as definições, o legislador mantém nesta matéria omissões que já provinham da versão inicial do Código. Mas há neste Anteprojecto de CPP algo mais que gera perplexidade: porque motivo manteve o legislador a ausência de regulação jurídica quanto a um dos pontos nevrálgicos de um processo penal que se queira digno do espíteto de acusatório, o problema do caso julgado e da litispendência?. A propósito do artigo 219º, deixou o legislador no seu n.º 2 o seguinte enunciado: «Não existe relação de litispendência ou de caso julgado entre o recurso previsto no número anterior e a providência de habeas corpus, independentemente dos respectivos fundamentos.» Só é pena é que não defina nenhum destes conceitos.
Estranha-se que procedendo a lei processual civil à definição dos conceitos em causa, no CPP, onde a sua extensão é uma garantia fundamental da paz do arguido e da segurança da comunidade nem uma palavra haja a este repeito e tenha que ser a jurisprudência a titubear quanto ao caminho a seguir. Veja-se a expressão límpida da indefinição jurisprudencial onde o legislador deveria ter feito reinar o rigor: «I – O instituto do caso julgado não se encontra, hoje em dia, regulado quer no Código Penal, quer no Código de Processo Penal, mas a ele é feita referência no artigo 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa. Os princípios que regem o caso julgado penal não se articulam adequadamente com as regras do caso julgado cível, o que implica que estes últimos não possam ser aplicados nos termos do artigo 4º do Código de Processo Penal. III – Ao não incluir regras especificas do caso julgado no Código Processual Penal vigente, as quais se achavam consignadas no Código anterior, o legislador não quis que se aplicassem, nos pleitos penais, as regras próprias do processo civil, mas, apenas, reservar para a lei substantiva penal a respectiva definição. IV – Como a lei penal ainda não regulamentou os efeitos do caso julgado penal, impõe-se que se considerem ainda em vigor as disposições sobre a matéria que constavam no anterior Código de Processo Penal de 1929». É um acórdão do STJ a dizê-lo.
P. S. Obrigado ao comentador «Vasconcelos» por me ter avisado do lapso na formatação deste post, que estava, de facto, incompleto.

Novo CPP: comentário ao artigo 1º

Comentemos, pois, a alteração que a Unidade de Missão propõe para o artigo 1º do CPP. Não se diga que é logo embirrar com o primeiro artigo. É antes um gesto de boa-vontade cívica.
1. É discutível se um Código deve conter definições e se o CPP, ao contê-las, não deveria tê-las sistematizado todas neste preceito, em vez de ter deixado algumas, como por exemplo, a de indícios suficientes para uma previsão esparsa como a do artigo 283º.

2. Mais, é discutível se um CPP, uma vez que optou por conter definições e sistematizá-las, não deveria ter tido o cuidado de proceder ao enunciado de algumas, precisamente aquelas que mais dúvidas têm suscitado na prática e mais disparidades têm consentido. Veja-se o caso de «fortes indícios», que o Código não define, definindo embora, como vimos [em local atípico] proceda à definição do que sejam «indícios suficientes». Casos a carecer de definição abundam, pois o CPP em aspectos nevrálgicos deixou ao intérprete, para seu uso discricionário, conceitos inteiramente abertos: veja-se o que se passa com o «perigo de fuga» [artigo 204º do CPP] e tantas outras situações.
3. Na definição de terrorismo, para efeitos processuais penais consideram-se abrangidas as condutas que integrarem os crimes de organização terrorista, terrorismo e terrorismo internacional, critério que me parece inaceitável, pois significa a unificação sob um mesmo conceito de enunciado típicos completamente diversos, como se o legislador processual penal fosse arbitrariamente livre de chamar pelo mesmo nome o que a lei penal considera distinto e diferenciado.
4. Diferenciam-se os conceitos de criminalidade violenta e especialmente violenta, mas sempre sob a noção de que haverão de ser crimes que atentem contra os seguintes bens jurídicos referentes a pessoas singulares: a vida, a integridade física ou a liberdade das pessoas. Ora não se compreende que os crimes contra outros bens jurídicos trans-individuais não possam integrar o objecto de uma criminalidade violenta ou especialmente violenta, quando tudo mostra que actualmente são precisamente aqueles que atingem formas mais drásticas de violência, nomeadamente pondo em causa a segurança do Estado e a vida em sociedade.
5. Quanto à criminalidade altamente organizada (i) sabendo como se sabe em que medida vai surgir o problema consistente em saber se as associações crimininosas previstas no Direito Penal secundário podem integrar este conceito, não se compreende que o legislador não atalhe desde já o problema (ii) estranha-se que os crimes de terrorismo e de organização terrorista fiquem excluídos (iii) e note-se que este enunciado restritivo pode levar a conflitos de enunciados, bastando lembrar, por exemplo que a Lei de Segurança Interna [Lei n.º 20/87, de 12.06, no seu artigo 1º, n.º 3 define que «as medidas previstas na presente lei visam especialmente proteger a vida e a integridade das pessoas, a paz pública e a ordem democrática contra a criminalidade violenta ou altamente organizada, designadamente sabotagem, espionagem ou terrorismo», o que mostra que o conceito em causa encontra âmbitos materiais de incidência completamente diferenciados no nosso ordenamento.