Na
abertura oficial de mais um ano Parlamentar, a crise política e económica
dominará as atenções dos deputados, que têm resistido a olhar a fundo para o
seu próprio estatuto e regime de incompatibilidades. Mais de metade dos
deputados trabalhará também no privado. Podem fazê-lo. Mas será que devem?
Os 230 deputados voltam hoje a arregaçar as mangas,
num País que continua agrilhoado ao programa de assistência financeira e
mergulhado numa crise política e social. O momento de emergência nacional tem
afastado do debate político a questão das incompatibilidade dos deputados, mas
é também em alturas de crise que as provas de transparência mais se impõem por
parte dos órgãos de soberania, em quem a população confere legitimidade
democrática.
Mendes Bota, deputado socialdemocrata que preside à
Comissão de Ética, está entre os que assumem a urgência de se aumentar o grau
de exigência nas incompatibilidades e impedimentos dos deputados mas duvida
"que haja força política para o fazer. Argumenta-se que nunca é oportuno
este debate. A crise dá boa desculpa. Há outras prioridades. Discordo". O
tema está lançado.
Exclusividade, sim ou não?
Em Portugal os deputados podem acumular funções de
soberania com trabalho no sector privado, havendo mesmo quem consiga ser
deputado e trabalhador a tempo inteiro noutros sectores. Mendes Bota precisa
que são 117 os deputados nesta situação, o que significa que sensivelmente mais
de metade tem pelo menos duas profissões. Na contagem feita pelo Negócios, a
maioria está envolvida na advocacia e ligada ao meio empresarial. Metade dos 66
deputados com formação jurídica exerce advocacia, um grupo ao qual se vêm
juntar 84 deputados com interesses patrimoniais ou laborais em empresas
privadas, quer seja através de participações financeiras, quer seja no
exercício de funções de administradores ou de quadros.
Trata-se de um retrato muito diferente do que
vigora em Espanha, onde a incompatibilidade é total. Segundo os estatutos do
Senado espanhol consultados pelo Negócios, os deputados e senadores exercem em
"regime de dedicação absoluta", sendo a função "incompatível com
o desempenho de qualquer outro posto, profissão ou actividade, públicos ou
privados, por conta própria ou por conta de outrem, retribuídos (...) de
qualquer forma". É também um retrato muito diferente do que vigora no
Parlamento Europeu onde, segundo garante o eurodeputado Correia de Campos,
"há regras muito restritivas sobre exclusividade" e onde as
incompatibilidades são muito escrutinadas.
Para José Luís Ferreira, do PEV (Os Verdes), um dos
deputados que optou por sê-lo a tempo inteiro, não é possível conceber a função
de outra forma "Um mandato parlamentar deve ser a actividade principal dos
que são eleitos", até pela disponibilidade de tempo que exige.
Também Eduardo Teixeira, do PSD, suspendeu as
funções de director bancário para ser deputado a tempo inteiro. Dizendo não se
tratar de qualquer incompatibilidade - aliás também José Luís Ferreira diz que
a função de advocacia não é incompatível -, Eduardo Teixeira pediu exclusividade
"pelo facto de desempenhar funções públicas intensas". Ao Negócios, o
deputado, residente em Viana do Castelo, assume que não seria possível
coordenar as duas actividades, ainda para mais estando a tantos quilómetros da
residência.
Há vários casos de deputados que suspenderam as
suas actividades privadas quando foram eleitos. Na análise que o Negócios fez a
todos os registos de interesse encontram-se casos desses em áreas de actividade
tão diversas como a gestão bancária, a advocacia ou o ensino. A actividade de
deputado determina a existência de trabalhos parlamentares entre terça e
quinta-feiras, deixando-se para as segundas e sextas o contacto com o
eleitorado.
Incompatibilidade até onde?
Os deputados têm acumulações proibidas. Não podem,
por exemplo, juntar com a Presidência da República, com a governação (nacional
ou regional), nem com o Parlamento Europeu. Também não podem acumular com a
magistratura ou com o cargo de embaixador. Outras tantas incompatibilidades,
como não pertencerem à Comissão Nacional de Eleições ou com a Entidade
Reguladora para a Comunicação Social, estão definidas. No poder local, não
podem ser presidente, vice-presidente vereador a tempo inteiro ou a meio tempo
nas câmaras. No entanto, verifica-se que muitos deputados exercem funções nas
assembleias municipais ou nas Juntas de Freguesia, o que já é legal. Quanto às
incompatibilidades na carreira de gestão inclui-se o de ser membro do conselho
de gestão de empresa pública, de empresa de capitais públicos ou
maioritariamente participada pelo Estado e de instituto público autónomo.
Para José Luís Ferreira, as incompatibilidades
deviam ser alargadas às empresas onde o Estado detenha capital, qualquer que
seja a percentagem. "Ganharia a transparência e haveria um reforço de
separação do poder político".
Mendes Bota é um dos apologistas da extensão das
incompatibilidades, "no mínimo" abrangendo a consultoria, assessoria
e patrocínio ao Estado, Regiões Autónomas, autarquias e demais pessoas
colectivas, sociedades com capitais públicos, concessionários de serviços
públicos, empresas concorrentes a concursos públicos. Se esta extensão fosse
feita, muitos deputados teriam de abdicar. Há deputados que trabalham, por
exemplo, no Banco Espírito Santos, assessor do Estado em alguns privatizações. Ou
em sociedades de advogados, como a Morais Leitão, Galvão Teles e Associados.
O caso dos advogados suscita uma discussão
particular. Marinho e Pinto, bastonário da Ordem dos Advogados, não tem
dúvidas: "Quem exerce funções de soberania na área legislativa não pode
estar a exercer uma actividade privada e remunerada por pessoas com interesses
nessas leis. Além de imoral, é uma subversão completa das leis da concorrência
entre escritórios de advogados".
Também Paulo Morais, da plataforma Transparência,
que fala em incompatibilidades reais, aparentes ou potenciais, aponta o dedo às
sociedades de advogados que diz ser "dos instrumentos mais perniciosos na
actividade parlamentar", e por isso põe o carimbo: "Absolutamente
incompatível". Paulo Morais tem denunciado vários casos, como o exemplo de
sociedades de advogados que trabalham em escritórios que assessoram o Estado
português na EDP.
Paulo Morais defende, por isso, que qualquer
actividade com interconexão entre o Estado e interesses privados deveria ser
proibida. E não está só. Marinho e Pinto, da Ordem dos Advogados, acompanha-o,
considerando que "é preciso dignificar as funções de soberania".
Correia de Campos também admite que preferia que "o erário público fosse
sacrificado" para que a independência dos deputados ficasse garantida,
porque uma coisa é certa: embora por cá a lei o permita, "é completamente
impossível ser-se economista ou advogado de um grupo e deputado".
O regime de incompatibilidades no momento em que
abandonam o Parlamento precisa também de ser afinado. Paulo Morais defende que
o chamado "período de nojo" que os titulares de cargos públicos devem
cumprir depois de deixarem essas funções deveria ser alargado dos actuais três
anos para cinco, uma proposta em que é acompanhado por José Luís Ferreira.
Registo pouco pormenorizado
O registo de interesse dos deputados é público e
está disponível no "site" do Parlamento. Contudo, para se avaliar os
verdadeiros interesses dos deputados há que confrontar o registo no Parlamento
com as declarações apresentadas no Tribunal Constitucional, obrigatória para
todos os titulares de cargos públicos. Mas aqui o acesso formal não é de fácil
acesso ao comum dos cidadãos.
Paulo Morais fala, pois, de informação
"aparentemente pública". A falta de transparência é ainda reforçada
pelo facto de muitos deputados referirem apenas ser gestores de empresas ou
advogados, sem especificar onde. É por isso que Paulo Morais defende maior
informação por parte dos deputados e, até, audições na Comissão de Ética, que
deveria ter mais poderes, para confrontar com os eventuais conflitos de
interesse. Ainda assim, este responsável deixa a reflexão. "O problema
está na origem. Por que se nomeia quem tem conflitos nessa área?"
REGISTO DE INTERESSE
Os deputados são obrigados a entregar no início do mandato a declaração de
interesses. Deve ser actualizada sempre que ocorram alterações. Mas da consulta
aos registos, que são públicos e estão disponíveis na página da Internet do
Parlamento, percebe-se que a informação prestada pode ser mais ou menos
pormenorizada. Por isso, nem sempre é fácil perceber em que actividades estão
os deputados envolvidos fora do Parlamento. O Estatuto dos Deputados obriga à
inscrição num documento de todos os activos e actividades "susceptíveis de
gerar impedimentos". Veja o que tem de constar do registo:
Últimos três anos
Cargos, funções e actividades, públicas e privadas, exercidas nos últimos três
anos;
Função actuais
Cargos, funções e actividades, públicas e privadas, a exercer cumulativamente
com o mandato parlamentar;
Interesses financeiros
Identificação dos actos que geram pagamentos de
a) Pessoas colectivas públicas ou privadas a quem foram prestados os serviços;
b) Participação em conselhos consultivos, comissões de fiscalização ou outros
organismos colegiais ou no exercício de fiscalização ou controlo de dinheiros
públicos;
c) Sociedades em cujo capital participe por si ou pelo cônjuge e bens;
d) Subsídios ou apoios financeiros, por si, pelo cônjuge e bens ou por
sociedade em cujo capital participem;
e) Realização de conferências, palestras, acções de formação de curta duração e
outras actividades de idêntica natureza.
f) Participação remunerada em comissões ou grupos de trabalho; Participação em
associações cívicas beneficiárias de recursos públicos; Participação em
associações profissionais ou representativas de interesses.
Deputados limitam mandatos, mas não os seus
Os presidentes das Câmaras Municipais e das Juntas
de Freguesia não se podem recandidatar após três mandatos consecutivos. Uma
regra imposta pelo poder legislativo, ou seja, pelos deputados, mas apenas para
o poder local. Deveriam os deputados ter, também, esse limite? Correia de
Campos, eurodeputado, considera que "a especialização parlamentar é muito
importante".
Olhando para a sua experiência, acrescenta ter
andado "aos papéis" no primeiro ano no Parlamento Europeu. "Sou
favorável à continuidade parlamentar", de pelo menos 10 anos. Também
Mendes Bota, presidente da Comissão de Ética, diz que a limitação não se deve
aplicar a mandatos deliberativos, mas sim a cargos executivos que "mexem
com muita gente, com muitos interesses e gerem a tesouraria por onde circula
muito dinheiro". Paulo Morais, da plataforma Transparência, concorda com a
limitação de mandatos para que haja substituição da classe política. Os Verdes,
que votaram contra a limitação no poder local, consideram a medida uma
ingerência na direcção partidária.
Em média, os actuais deputados estão a exercer o
seu terceiro mandato, e este número só não é maior devido à grande mudança de
rostos na bancada do PSD, onde a direcção do partido mudou também de
orientação, com a entrada de Passos Coelho. Também no CDS/PP há alguns
deputados estreantes.
Entre os históricos, Mota Amaral, ex-presidente do
governo regional açoriano, ex-presidente do Parlamento, concorreu e foi eleito
em todas as eleições legislativas: são 12 mandatos. Outro histórico são Miranda
Calha do PS, e Arménio Santos, do PSD, no Parlamento desde 1976.
Alexandra Machado e Elisabete Miranda
Jornal
de Negócios de 19-09-2012