Paula Teixeira da Cruz defende que há demasiadas entidades a fazer escutas e quer restringir este poder à Polícia Judiciária
Em entrevista ao Expresso, dada quando recebeu o telefonema a informá-la do pedido de demissão de Paulo Portas, a ministra pede para não “contaminarem” as reformas que fez na Justiça com processos eleitorais. Paula Teixeira da Cruz diz que as saídas de Gaspar e Portas não a surpreenderam: “Viu-me mexer um músculo?”.
Paula Teixeira da Cruz Ministra da Justiça
“Eu e eu damo-nos imito bem”
Texto RUI GUSTAVO
Foto ALBERTO FRIAS
A meio da entrevista, na terça-feira à tarde e pouco antes da tomada de posse de uma nova colega para o Conselho de Ministros, os telefones começam a tocar. O telemóvel de Paula Teixeira da Cruz é especialmente insistente. Paulo Portas acabava de se demitir. “Se me surpreende? Viu-me mexer um músculo?”, pergunta a ministra que garante ter feito uma revolução incontestada na Justiça. O discurso é de fim de ciclo. A secretária está impecavelmente arrumada, sem um único objeto pessoal. “Só tenho um copo e um prato, disso não abdico.”
- Vai sair do Governo?
- Não costumo abandonar barcos. Mesmo que acabasse agora, ficaria muito tranquila. Eu e eu damo-nos muito bem. Mesmo que tudo ruísse, sei que deixo uma justiça diferente.
- Não ficou surpreendida com a demissão de Paulo Portas?
- Estou habituada a que na vida nada me surpreenda. Há coisas mais ou menos expectáveis.
- E com a saída de Vítor Gaspar?
- Honestamente, não. Não vou dizer que sabia, mas não fiquei surpreendida. Há que saber ler nas entrelinhas. Para mim a notícia é a carta que o ex-ministro escreveu, não tanto a saída.
- Porquê?
- Julgo ser inédito que um ministro se demita com uma carta aberta. E com o que essa carta potenciou. Por isso não me surpreende o que se seguiu.
- Defendia a saída de Vítor Gaspar?
- Não. Muitas vezes não estive de acordo com ele, mas isso faz parte. Se não para que é que haveria Conselho de Ministros? Mas as discordâncias foram sempre de uma enorme elegância.
- A saída destes dois ministros não afeta a credibilidade do Governo?
- Não. O que pode haver é uma incapacidade para resolver uma situação no momento. Por absurdo que pareça, acho que os resultados que apresentamos, face ao que encontrámos, mostram que devemos continuar. Foi um momento difícil, mas será ultrapassado. O primeiro-ministro e o líder do partido da coligação hão de encontrar a solução. Não a ideal, mas a possível.
- A escolha de Maria Luís Albuquerque para a pasta das Finanças é a ideal?
- Eu escolho os meus colaboradores, o primeiro-ministro escolhe os dele.
- Portas deve continuar no Governo?
- Esse é um exercício de liberdade que só a Paulo Portas compete.
- Os últimos dados da Pordata revelam que só 29 por cento dos portugueses confiam na Justiça. Inclui-se nesta minoria?
- Não posso fazer essa avaliação, que compete aos portugueses. Percebo o que esse número quer dizer mas, quando chegámos, o que é que tinha sido transformado na Justiça? Nada. Nós revimos a Justiça Penal, a Económica, a Cível, fizemos a reorganização judiciária e estamos a rever a Justiça Administrativa. Estas reformas levam tempo e só em setembro entrará em vigor a principal delas, do Código Civil. Por isso é natural que as pessoas ainda não se apercebam de tudo o que fizemos.
- Tanta reforma para quê?
- Para simplificar, para acabar com os expedientes dilatórios e a falta de responsabilidade. Esta reforma não teria sido possível se andasse a pensar nisto há dois anos, mas a verdade é que comecei a pensar nela há mais de vinte anos.
- Há mais de vinte anos que planeava chegar ao poder?
- Não, mas já dei a volta toda ao sistema judiciário: estive na Ordem dos Advogados, no Conselho Superior da Magistratura e no do Ministério Público. E como advogada tinha um pensamento claro sobre como é que as coisas deviam funcionar. E nada me irritava mais do que ir a julgamento com as testemunhas e a sessão ser adiada não sei quantos meses. Isso vai acabar. Quem for responsável por algum adiamento será responsabilizado e os magistrados passam a ter prazos para tomar decisões.
- O que é que acontece a um magistrado que se atrase a tomar uma decisão?
- Há uma participação ao Conselho Superior de Magistratura. Tal como acontecerá com um advogado que atrase uma diligência: participação à Ordem.
- Quer o sindicato dos juizes quer o dos magistrados do MP já contestaram o facto de o novo Código Civil ser aplicado já em setembro.
- Este código civil é aplicável independentemente da organização que tivermos. Tal como o código de 1939 durou até hoje. Seria desejável que todas as reformas se iniciassem ao mesmo tempo, mas não sendo possível, não há nenhuma razão para não avançar com uma reforma que está a ser debatida há mais de um ano.
- Começar a instalar o mapa judiciário na altura das autárquicas é razoável?
- O Parlamento demorou sete meses a aprovar o mapa e só concluiu o processo há uma semana. No meu calendário, a aprovação devia ter sido em abril. A lei ainda tem de ser promulgada pelo Presidente e publicada. Só depois podemos começar a pensar na instalação. Agora não me venham infetar reformas da Justiça com processos eleitorais. Respeito muito os calendários eleitorais, mas respeito mais o cidadão. As eleições não podem ter qualquer influência no mapa judiciário. Não vou antecipar nem atrasar nada.
- O intervalo de tempo entre a aprovação do código e a entrada em vigor não é demasiado curto?
- Não. Porque o novo código é tão simples, tão simples, que nunca mais ninguém irá ganhar um processo apenas por razões formais, sem ter razão.
- Não pode garantir isso a 100 por cento.
- Não. Mas posso garantir que a lei prevê que mais ninguém irá ganhar um processo por razões formais.
- O seu colega Paulo Macedo disse ao Expresso que não há nada mais equitativo em Portugal do que o acesso à saúde. Pode dizer-se o mesmo da Justiça?
- O acesso, sim. O Ministério garante a consulta judiciária, o patrocínio judiciário, está tudo na Constituição. E não é só aos cidadãos portugueses. Qualquer estrangeiro, mesmo que esteja ilegal, tem os mesmos direitos de acesso à Justiça. Em termos de acesso à Justiça, ainda vamos mais longe do que a Saúde. Felizmente. Lutei por isso durante muitos anos- e nesse campo sinto-me realizada. Como me sinto realizada quando olho e digo que mudámos disfunções na Justiça. E agora estamos a discutir o Código do Processo Administrativo e pela primeira vez, se se atrasar, a administração pública tem de indemnizar o cidadão. É uma alteração de cultura. Dirão que é uma utopia, mas como dizia Thomas More, a utopia é utopia até alguém querer fazer. E não é assim tão difícil fazer.
rgustavo @ expresso.impresa.pt
AS REFORMAS DA MINISTRA
Primeiras declarações dos arguidos valem em tribunal
As declarações dos arguidos na fase de inquérito, desde que prestadas perante um magistrado, passam a valer em tribunal. “O princípio é positivo, mas o efeito prático é mau, porque os arguidos vão deixar de falar”, crítica o advogado Saragoça da Matta. “Ainda bem”, rebate Paula Teixeira da Cruz. “Assim a investigação não baixa os braços só porque o arguido confessa. O que se estava a passar é que o suspeito confessava e depois em tribunal calava-se e o processo ruía”, acrescenta a ministra.
Mais julgamentos sumários
O julgamento sumário passou a ser regra para qualquer caso de flagrante delito, mesmo que se trate de um crime grave, como homicídio qualificado.
“Discordo”, diz o advogado Pinto de Abreu. “Para crimes até cinco anos, não acho mal, mas em casos de crimes graves, a precipitação de um julgamento sumário não é boa conselheira. A Justiça não é um vestido que se compre feito.” Teixeira da Cruz argumenta que o sumário “é direcionado para os casos em que não há dúvidas sobre quem praticou o crime” e “se o caso não for assim tão flagrante o juiz pode pedir prova adicional”.
Estado paga atrasos
A reforma do código civil e da ação administrativa é a grande obra da ministra, que salienta o facto de o Estado ter de pagar ao cidadão sempre que ocorrerem atrasos, de as audiências passarem a ser “inadiáveis” e de os magistrados serem penalizados caso não tomem as decisões nos prazos previstos. Os advogados que atrasarem os processos podem mesmo ser multados. Mouraz Lopes, da associação sindical dos juizes, reconhece que é “uma mudança de paradigma como não acontecia há uns cem anos”. Para o magistrado, “o controlo do processo passa a ser do juiz, cujo único interesse é chegar ao fim no prazo mais curto possível. É uma reforma muito positiva”.
Mapa judiciário
Vai arrancar no início de 2014 e prevê a constituição de 23 comarcas e o fecho de dezenas de tribunais, alguns estreados há poucos anos. “Vão ser afetados a outros serviços do Ministério, Não vamos desperdiçar meios”, garante a ministra. Rui Cardoso, do sindicato dos magistrados do MP, considera a reforma “importante” e admite que vai no “bom sentido”, mas devia ter sido “aperfeiçoado o modelo de gestão das comarcas” e definido “o número de tribunais que vão fechar”.
Prescrições
A partir da condenação no julgamento, a prescrição dos crimes suspende-se. É uma reforma para evitar que os sucessivos recursos impeçam o cumprimento da pena, caso a condenação se mantenha. “A brincadeira das prescrições acabou”, sentencia a ministra..
A juíza-desembargadora Adelina Oliveira considera que é uma lei “positiva e protege mais as vítimas”.
“Escutas não podem ser feitas por tantas entidades”
Além das reformas, Paula Teixeira da Cruz apoiou ou promoveu leis polémicas como a coadoção ou o registo de pedófilos. Agora quer que só a PJ possa fazer escutas telefónicas.
- Porque é que quer que seja só a PJ a fazer escutas?
- Entendo que as escutas não podem ser feitas por um conjunto tão amplo de entidades. Devem ser restringidas, para maior responsabilização. Hoje, só crimes puníveis com mais de três anos de prisão é que podem ser alvo de escutas – portanto, não vejo razão para que entidades que não investigam este tipo de crimes possam fazer escutas.
- Mas a PSP e a GNR podem investigar crimes puníveis com penas superiores a três anos.
- Pois. Essa é uma discussão que tem de ser feita de uma forma muito clara. Quero acabar com as escutas desreguladas.
- Mas as escutas são controladas por um juiz e pelo MP.
- Supostamente. Se todas as polícias puderem fazer escutas, onde é que vamos parar?
- Como é que a PJ vai ter meios para fazer todas as escutas?
-Uma escuta não implica uma afetação de meios como está a sugerir. Temos de clarificar a lei e saber quem é que investiga o quê e quem escuta quem.
- Vai aumentar os meios da PJ?
- Espero que sim.
- O que aconteceu ao projeto de criação de registo de pessoas condenadas por pedofilia?
- Está em curso. Estamos a trabalhar no leque da publicidade que vamos dar. Onde, a quem e quando. Quando estão em causa dois direitos, o interesse da criança e a ressocialização do pedófilo, qual é que deve prevalecer? Eu não hesito um segundo: é o da criança. Não quero publicar na internet o nome dos pedófilos, como nos EUA, mas com uma taxa de reincidência nestes crimes que pode ir aos 98%, acho que as autoridades têm de saber e ser avisadas.
- Uma pessoa condenada por abusos sexuais de criança não pode trabalhar numa escola?
- Não, nem pensar nisso.
- Mesmo com pena cumprida?
- Mesmo que tenha cumprido a pena, porque a taxa de reincidência é muito grande.
- Mas isso não é uma condenação perpétua?
- Não. E uma prevenção. Se um professor for condenado não digo que seja despedido mas deve ser colocado num serviço longe de crianças. O que me custa é ver que um administrador que danifique uma empresa fica durante não sei quantos anos impedido de voltar às empresas e uma pessoa viola uma criança e não lhe acontece nada porque é infamante ou é o regresso da idade média. Não percebo a lógica.
- Ao contrário da maioria do seu partido, manifestou-se a favor da coadoção por casais homossexuais. Teme que a lei seja chumbada na especialidade?
- Espero que as pessoas consigam distinguir duas coisas: a coadoção é a adoção por duas pessoas, independentemente do que quer que seja. Se quiser adotar uma criança com a minha irmã por que é que não o posso fazer? Mas vou ao cerne da questão: se um casal homossexual tiver as mesmas condições que um casal heterossexual não vejo por que razão não possa adotar.
- Uma criança não deve ter direito a um pai e uma mãe?
- Quantas famílias monoparentais existem? E quantos abusos ocorrem no seio de famílias heterossexuais? Ou há condições para adotar ou não há. Independentemente do género ou da orientação sexual.
- Mas o ideal para uma criança não é ter um pai e uma mãe?
- Ou há ou não há condições afetivas e materiais. O resto é indiferente.
- Se a lei for chumbada é uma desilusão para si?
- Dificilmente algo me ilude ou desilude.