Filipe
Pinhal: "Governo não tem coragem de separar o trigo do joio (...) CES é
argumento dos fracos"
Gomes Canotilho e Casalta Nabais convergem em dois pareceres autónomos,
encomendados por um grupo de reformados da banca e outros sectores, na defesa
da inconstitucionalidade da contribuição extraordinária de solidariedade (CES).
Se o Governo quer penalizar as pensões que não se baseiam nos descontos efectivos,
então deve isolá-las, dizem.
POLÉMICO CORTE DE PENSÕES
Governo tem de distinguir verdadeiras das falsas pensões
"Manifestamente excessivo e discriminatório"
Através de um imposto que afecta todos por igual, Governo quer corrigir
desigualdades que só dizem respeito a alguns
Se tivesse sido baptizada com rigor, a CES chamar-se-ia "imposto
extraordinário de solidariedade" e não "contribuição extraordinária
de solidariedade". Imposto ou contribuição pode parecer uma irrelevância
semântica, mas fazem toda a diferença na enumeração das inconstitucionalidades
desta polémica medida, provavelmente a mais delicada que o Tribunal
Constitucional tem entre mãos.
No parecer que deu a um grupo de 36 reformados do sector financeiro, Casalta
Nabais, especialista em direito fiscal e antigo assessor do Tribunal
Constitucional, não tem dúvidas em classificar a CES como um imposto (ver
argumentos) e, nessa medida, concluir que viola os princípios da unicidade e da
capacidade contributiva, entre outros. Numa análise de recorte tributário,
classifica as pensões como "rendimentos do trabalho de ontem", pelo
que deveriam ser equiparadas a rendimentos da categoria A (como o trabalho
dependente). Isto, para as pensões ditas "verdadeiras", que têm origem
em carreiras contributivas efectivas. As "falsas pensões", que não
têm relação cornos descontos, devem ser induídas na "categoria G" do
IRS para serem tratadas como "incrementos patrimoniais", já que são
puras transferências de rendimento. Foi esta distinção que o Governo não quis
fazer quando resolveu meter tudo no mesmo saco e aplicar um imposto a todas as
pensões de valor igual ou superior a 1.350 euros. "A CES apenas se explica
como forte penalização de pensões que, ou não deveriam ter sido atribuídas pelo
Estado, ou, a serem-no, deviam ter tido um montante mais modesto",
sustenta Casalta Nabais. "Mas, se isso é assim, então o que o poder
legislativo devia e deve fazer é corrigir essas situações, designadamente
reduzindo o montante dessas pensões, e não disparando contra todos os
pensionistas".
As pensões da banca estão no grupo das 'Verdadeiras", garante.
"Constituem rendimento do trabalho de ontem, porque baseadas nas
correspondentes contribuições das entidadesempregadoras e trabalhadores, ou por
adequados sistemas de suporte erguidos pelas instituições do 2º pilar"
[dos complementos de pensão ]. Casalta Nabais diz que estes sistemas estão
adequadamente provisionados e, mesmo que não o estivessem, esse seria um
problema das entidades patronais e dos accionistas, já que as mesmas não têm
impacto na despesa pública.
OS ARGUMENTOS DE JOSÉ CASALTA NABAIS
A CES é um imposto extraordinário sobre os rendimentos do trabalho de ontem
"IMPOSTO DE SOLIDARIEDADE"
Não é o substantivo, mas os adjectivos "adicional" e
"extraordinária" que definem a CES. Apesar de se chamar originalmente
"contribuição", ela é na verdade ura "imposto", com uma
"inequívoca estrutura unilateral", isto é, o contribuinte não o paga
para obter uma contrapartida específica como acontece nas contribuições para a
Segurança Social e as taxas, defende Casalta Nabais. Uma prova adicional de que
a CES não é uma contribuição para a Segurança Social está no facto de o
legislador nem se ter dado ao trabalho de incluí-la no Código Contributivo,
"como se imporia s de uma verdadeira contribuição extraordinária para a
Segurança Social se tratasse".
Outra prova adicional está, segundo o fiscalista, no facto de as receitas da
CES integrantes do 2o pilar (sistemas complementares de pensões constituídos
pelas empresas aos seus trabalhadores) serem, também elas consignadas à CGA,
que não tem nada a ver com o pagamento dessas pensões. 0 facto de a receita ser
afecta ao Instituto da Segurança Social e à Caixa Geral de Aposentações nada
tem a ver com a estrutura do facto tributário. Em suma, a CES é um
"imposto extraordinário de solidariedade", de natureza parafiscal.
DUPLO, NÃO ÚNICO
A Constituição diz que o imposto sobre o rendimento pessoal tem de ser único
mas os pensionistas pagam dois impostos pessoais: o IRS e a CES. Não é
aceitável dizer que se abre uma excepção em nome da sustentabilidade do Estado
social, já que "não é preciso que haja violação do principio da unicidade
para que a sustentabilidade seja garantida. Ela pode ser assegurada sem
duplicação de imposto", sustenta o fiscalista.
DESVIO DE PODER TRIBUTÁRIO
O que o Governo faz não é tributar para cumprir os objectivos da diminuição das
desigualdades mas penalizar por via fiscal todas as pensões em nome de algumas
mal atribuídas no passado. Trata-se de uma "subversão da natureza fiscal
do Estado", o que permite que se invoque os princípios da proibição do
excesso ou da proporcionalidade em sentido amplo. E para Casalta Nabais "é
manifestamente excessivo o sacrifício dos direitos dos pensionistas às respectivas
pensões face ao interesse público de obtenção de mais receitas", sem que
haja qualquer fundamento para tal.
IGUALDADE EM CAUSA
As pensões são a única categoria de rendimentos pessoais que suporta a CES, o
que viola o princípio da igualdade. Para o mesmo nível de rendimentos, a
tributação é muito distinta consoante a fonte. Casalta Nabais sublinha ainda
que o facto de a medida ser temporária não lhe retira as inconstitucionalidades
de que enferma. "A exigência dos princípios constitucionais da unicidade e
da proibição do excesso e do arbítrio não podem ser dispensados" só porque
ela apenas vigora por um ano. Até porque o Estado tem outras alternativas de
angariação de receita, considera.
"A CES é um imposto de classe"
"Crise" e "perigo de insolvência" não são sinónimos de
estado de sítio e de emergência Constituição é para cumprir
Um imposto de classe", que discrimina sem qualquer justificação material
os pensionistas, e que, nalguns casos, atinge níveis confiscatórios. E assim
que Gomes Canotilho descreve a polémica "contribuição extraordinária de
solidariedade" (CES) no parecer concedido a um conjunto de antigos altos
quadros do sector financeiro.
Antes de entrar na esgrima de argumentos, o eminente constitucionalista de
Coimbra faz uma espécie de preâmbulo para responder às vozes que consideram que
o Constitucional não deve imiscuir-se nas questões financeiras do Estado,
classificando estas posições como uma tentativa de impor "um inaceitável
dogma na liberdade de conformação do legislador no domínio da tributação".
A aceitar estas posições, que têm vindo a fazer o seu caminho e conduzido à
"vertigem dissolvente de esteios básicos do Estado de direito", então
estaríamos perante o que o autor considera ser uma "inversão paradoxal: as
leis tributárias não se moveriam no quadro da Constituição, elas seriam a
essência da própria Constituição", observa Nesse caso, "tudo seria
política e economia, sem direito".
Canotilho também sublinha que a crise não justifica a adopção de medidas que
não se conformem com a lei fundamental: "Os contributos para a
'solidariedade nacional' pressupõem a demonstração do cumprimento rigoroso das
normas constitucionais quanto aos requisitos de criação de novos
impostos". Normas essas que são violadas reiteradamente (ver argumentos).
Quase no final do parecer, não resiste a um comentário que o próprio reconhece
estar fora da argumentação jurídico-constitucional, sobre a injusta repartição
dos sacrifícios. O constitucionalista traz à liça as regras de tributação dos
"acréscimos patrimoniais injustificados" (rendimentos de fonte
desconhecida, logo potencialmente ilícitos) que são tributados de acordo com as
taxas gerais ou a 60% quando ultrapassem 100 mil euros. "Estranha-se que o
Orçamento evidencie maior tolerância para com sujeitos passivos que não
conseguem provar a proveniência dos rendimentos, do que para com as pessoas que
vivem ou viveram do trabalho", sublinha. Lembrando que "o factor
trabalho encontra-se intimamente ligado ao valor da dignidade humana",
(...) diz que "não pode ser com ligeireza que são adoptadas medidas que
revestem especial severidade para quem trabalha ou trabalhou ao longo da sua
vida".
OS ARGUMENTOS DE JOSÉ GOMES CANOTILHO
Se se entende que é legítimo, em nome de um "estado de necessidade
fiscal", criar "impostos de classe", então é de identificar
devidamente as classes a onerar
IMPOSTO, NÃO CONTRIBUIÇÃO
CES tem a natureza de imposto, distinto do IRS. Estamos, na verdade, perante um
"imposto de classe" que atinge apenas os reformados e pensionistas,
pré-aposentados e equiparados. É jurídica e dogmaticamente incorrecto falar de
uma taxa, de uma contribuição de melhoria ou de uma contribuição para a
Segurança Social, já que estas são pagas periodicamente ao longo da carreira do
trabalhador para lhe conferir direito à reforma.
DUPLICAÇÃO DE IMPOSTO
Sendo um novo imposto sobre rendimentos de pensões, viola o princípio da
unicidade - há uma "duplicação da tributação do rendimento das pessoas
singulares para os reformados e pensionistas. Implica ainda um agravamento
fiscal selectivo em função do "critério classista", em frontal
colisão com a exigência de unidade da tributação.
E A CAPACIDADE CONTRIBUTIVA?
Ao desconsiderar o facto de o imposto ser pessoal e não atender às necessidades
e rendimentos do agregado familiar, a CES viola o princípio da capacidade
contributiva.
IGUALDADE EM CAUSA
A CES não avalia em que medida os pensionistas fizeram descontos suficientes ou
não para as pensões. Desse modo, viola o princípio da igualdade, na medida em
que atinge indiscriminadamente situações jurídicas e fácticas muito diferentes.
O princípio da igualdade é também ferido quando se verifica que outras classes
de rendimento podem ter taxas de tributação efectivas inferiores. É o caso do
trabalho dependente (a partir de certos valores salariais), mas também dos
rendimentos de capitais, que nem suportam a sobretaxa de IRS.
DESPROPORCIONAL, CONFISCATÓRIO
Se o objectivo foi o de corrigir casos de descontos insuficientes para a
reforma, a CES é desmedida e desproporcional, estando longe de se limitar às
pessoas cujos interesses poderiam legitimamente ser sacrificados (viola o
princípio da proporcionalidade na dimensão de exigibilidade pessoal). Na
dimensão da exigibilidade material, há também violação do princípio da
proporcionalidade, já que a taxa efectiva de tributação pode ultrapassar os 80%
dos rendimentos. É por isso manifesto o seu carácter confiscatório. Mesmo nos
casos em que a CRP aceita expropriação de propriedade privada por utilidade
pública, tem de haver lugar a justa indemnização.
FALTA DE JUSTIFICAÇÃO MATERIAL
O legislador não está impedido de introduzir diferenciações e tipicizações. Mas
não pode "tratar, sem qualquer justificação material, de forma desigual o
que é essencialmente igual" ou vice-versa. "Se o legislador entende
que é legítimo, em nome de um 'estado de necessidade fiscal', criar 'impostos
de classe', então importaria identificar devidamente as classes a onerar
especialmente, atendendo quer a critérios de capacidade contributiva, quer a
critérios de justiça material, adoptando-se aquilo que poderia ser designado
por 'smart taxation'", diz. O Governo avançou para um corte nas reformas
com o argumento de combate às falsas pensões, mas as reformas não são todas
iguais. Há muitas que foram legitimamente constituídas através de descontos dos
trabalhadores e das suas entidades patronais. A contribuição extraordinária de
solidariedade (CES) é um novo imposto sobre o rendimento dos pensionistas, que
ignora a sua capacidade contributiva. Pelos valores que pode atingir, é
"confiscatória" consideram Gomes Canotilho e Casalta Nabais nos
pareceres a que o Negócios teve acesso, encomendados por 36 reformados do
sector financeiro, entre os quais avultam Filipe Pinhal e Cristopher de Beck
Jornal
Negócios, 28-01-2013