terça-feira, 16 de julho de 2013

Esconjurar o medo

Por António Cluny
publicado em 16 Jul 2013 - 05:00
Negociar com medo não é, todavia, negociar. Só pessoas livres e iguais em direitos podem negociar de verdade
1. Vivemos um tempo em que o medo parece ter-se instalado de novo, com um papel relevante na vida da sociedade.
Não se trata já do medo de um inferno eterno, que será vivido num outro mundo. O medo actual é um medo que se vive dia-a-dia, nesta terra, neste tempo e no tempo que imediatamente se lhe há-de seguir, tanto para nós como para os nossos filhos.
O esforço que antes - pelo menos desde a Segunda Guerra Mundial - foi feito para ir gradualmente erradicando o "medo inútil" da vida quotidiana dos homens parece ter ruído de repente.
Tudo em nosso redor parece querer agora ressuscitar o medo: o medo antigo dos nossos pais.
Inculcar este medo parece ser a substância, o meio e o propósito da cultura dominante. O cinema e a TV retratam permanentemente medos irreais e distantes ou medos presentes, e porventura reais, que em comum têm sempre a capacidade de se agravar, sem vislumbre de solução ou de remédio.
O romance policial actual - a literatura realista dos nossos dias - invoca quase sempre o fenómeno do crime como obra de poderes ocultos, mais ou menos institucionais, que comandam, sem controlo, a sociedade. E quando, mesmo assim, esta literatura premeia o detective com a verdade revelada, não deixa de explicar que por fim essa verdade sairá sempre vencedora.
O recente caso da denúncia, comprovada, da violação global das nossas comunicações por entidades oficiais da maior potência mundial apenas confirma, assim, as mais irrealistas literatura e ficção cinematográfica.
2. A mensagem política do mundo actual é, também ela, de novo, uma mensagem de medo.
Já ninguém nos diz que vale a pena o esforço para que num futuro mais ou menos próximo possamos viver melhor e mais seguros e que os nossos filhos - "esses sim!" - terão já a vida com que sempre sonhámos.
O futuro é-nos oferecido sempre negro, mais ou menos negro. "Tens de te sacrificar agora, um pouco, um pouco mais, pois de outro modo será pior: terás logo de sacrificar tudo!" - é esta a mensagem.
Este medo e esta mensagem inibem, conduzem à desconfiança, ao egoísmo, à fraqueza, à solidão.
Este medo rouba a alegria de viver livre em sociedade: mata a liberdade, mata a solidariedade, mata a sociabilidade. Mata!
O medo justifica a extorsão e pretende mesmo levar a vítima a negociar o próprio roubo com o extorsionário.
Por isso ele acobarda, avilta e envergonha quem o sofre e oculta: aniquila a personalidade dos que o sofrem e o aceitam.
Em "Una misma noche", o escritor argentino Leopoldo Brizuela relata-nos bem esse medo e o efeito social que ele pode assumir em cada momento e para qualquer fim politicamente útil.
A dado passo, referindo-se aos tempos da ditadura, diz o narrador, que procura esconjurar o medo ressurgido e os seus mecanismos: "? de alguna manera, aquella noche nosotros negociamos, porque toda negociación, quita pureza, o por lo menos recuerda la impureza de sobrevivir".
Negociar com medo não é, todavia, negociar. Só pessoas livres e iguais em direitos podem negociar de verdade.
Subtrair direitos, desqualificar estatutos, reduzindo assim o poder de que cada um dispõe para continuar a estabelecer os compromissos que permitem uma vida justa e em paz é pois mais do que uma simples opção de competitividade económica, uma estratégia potenciadora do medo e da submissão a que este sempre conduz.
Ter a percepção do significado e do papel do medo actual é, isso sim, o primeiro passo para o vencer.
Jurista e presidente da MEDEL

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