PÚBLICO - 03/02/2013
- 00:00
Para Gomes Canitilho, o homem que ouve "música
celestial" nos manuais de direito constitucional, as finanças são a
realidade da Constituição. Por
Leonete Botelho
José Joaquim Gomes Canotilho
espera-nos no seu gabinete no Colégio de S. Pedro, no edifício da Reitoria da
Universidade de Coimbra, com um dos nove pesados volumes do Manual do Direito
do Estado na mão. É um manual de Direito Constitucional alemão escrito na
língua de origem, que o professor jubilado domina na perfeição. Ou não fosse o
sistema jurídico português inspirado no germânico.
Neste volume, o autor, C.F.
Müller, discorre sobre a acção, a organização e as Finanças do Estado. Para
Canotilho, algumas passagens são "música celestial". Traduziu alguns
trechos para o PÚBLICO porque, diz, "é importante que estas coisas venham
num jornal". E quase não foi preciso fazer perguntas nesta conversa em
redor das funções do Estado, da sua reforma e seus limites. A moeda, o
dinheiro, os impostos, as receitas não fiscais, o Orçamento são temas que
constituem o maior capítulo desta edição de 2010/2011 que, explica Gomes
Canotilho, situa toda esta função financeira do Estado no centro da sua
essência constitucional.
Quer dizer que a gestão
financeira é hoje uma das principais funções do Estado. Isto representa um
retrocesso?
Não, representa um progresso
relativamente às conversas dos economistas, que ficaram admirados por ver que o
Tribunal Constitucional controlava o Orçamento. Isto mostra que as pessoas não
estão preparadas, muitas vezes, para viver num Estado de direito em épocas
difíceis. Mas a centralidade das finanças não é nova. Já os romanos diziam "pecunia nervus rerum",
o dinheiro é o nervo das coisas. O dinheiro é o nervo da República, as finanças
são a realidade de uma Constituição.
O Tribunal Constitucional
ganhou uma nova centralidade política? E como é que isso se articula com o
regime de excepção que estamos a viver?
A questão é, antes, a
centralidade do Direito Financeiro e Fiscal na Constituição. A questão
colocou-se ainda no tempo de José Sócrates, que já estava em governo de gestão
quando assinou o memorando.
Foi polémico saber se um
governo de gestão podia ou não assinar um tratado internacional com tantas
consequências. Mas foi invocado um princípio do Direito Romano que eu pensei
estar desactualizado:Salus publicae suprema lex est. Ou seja, a salvação
pública é a lei suprema.
E continua a ser esse o
argumento para todos os sacrifícios.
Pois, mas nós não estamos em
estado de excepção. Nem em estado de sítio nem em estado de emergência, como
estão previstos na Constituição. Só esses podem legitimar a supressão de
direitos, liberdades e garantias.
Então em que estado estamos?
Começou-se a invocar o
estado de excepção financeira e fiscal. Mas isso legitima não invocar normas do
Estado de direito? Parece que não, nós continuamos num Estado de direito e há
regras a cumprir.
Isso quer dizer que não
podemos invocar um estado de excepção?
Não, porque se entende que
há mais duas excepções: a situação económica em que temos de cumprir obrigações
pesadas na qualidade de devedores e, por outro lado, porque existe o poder do
Estado de aplicar impostos. O imposto hoje é o acto mais intrusivo na esfera
jurídico-patrimonial dos cidadãos.
É por isso que tem de estar
regulado na Constituição?
Claro, mas os economistas
ainda não compreenderam que há princípios que têm de ser respeitados, que há
direitos consagrados. O Estado moderno é um Estado de Finanças, a Teoria
Financeira é uma Teoria do Estado e as crises financeiras são crises do Estado.
As crises financeiras são
crises do Estado?
Isso decorre do facto da
função financeira ser uma função essencial do Estado. No entanto, o Estado
democrático que assenta nos impostos não se deve confundir com outro Estado,
que anda agora a aparecer, que é o que eles chamam o Estado das Taxas ou o
Estado da prestação dos serviços. O primeiro é o Estado que trabalha com o
cidadão que paga impostos, o segundo já não é bem isso, é uma dissolução da
cidadania em actos isolados da sua existência, pagando taxas.
Não será isso a que se chama
a reforma do Estado social?
É o que tenho dito. O que
nós estamos a criar em Portugal é o pior dos dois mundos, porque temos um
Estado tributário de impostos até à medula e o que propõem são taxas
acumuladas. E não é apenas isso. É que isto é afinal a dissolução da cidadania
nestas máscaras de consumidor, utente e cliente.
Estamos a caminhar para um
paradigma em que para os muito ricos há tudo e para a classe média não há nada?
Eu gostava de pagar menos
impostos, mas aceito a reforma do Estado se ela consistir em racionalização e
princípios da economicidade, da eficácia. Estou disposto a discutir como é que
vamos financiar o Estado social. Mas o princípio da universalidade é sagrado,
ninguém pode deixar de ter acesso ao conhecimento, à Saúde, à Segurança Social.
A pergunta que se faz agora
é como é que isso se paga.
Se o princípio da
universalidade parece indiscutível, temos de saber se está necessariamente
ligado ao princípio da gratuidade. E de saber se aquilo que tinha começado como
uma espécie de co-pagamento (propinas, por exemplo) não é propriamente um
racionamento...
E para isso não é preciso
mudar a Constituição? Passos Coelho quis mudá-la, mas o projecto ficou pelo
caminho...
Um dos problemas da revisão
falhada é que verdadeiramente não apontava para a redução das despesas do
Estado, mas para a transferência de dinheiros do sector público para o sector
privado. Não sou contra alguns sistemas de transferência do público para o
privado para manter a protecção destes bens de que estamos a falar. Agora, o
que a reforma escondia era uma opção ideológica. A melhor maneira de
discutirmos a reforma do Estado é tornarmos isto transparente.
Como é que se torna esse debate
transparente?
As pessoas querem
compreender se podemos poupar dinheiro, se devemos fazer este esquema
racionalizador da gestão político-funcional, da discussão do que é uma
universalidade de serviços. Se perante o aumento de alguns gastos, designadamente
da Saúde, estamos disponíveis para algumas taxas. Mas não é para acumular um
tributo de 50% de taxas duplicadas ou triplicadas.
Não tem de haver alguma
medida de orientação de comportamentos?
Admito que sim. As taxas
moderadoras e algumas coisas que nos podem conduzir a uma outra educação
política e social. Uma das questões que desde o início, para nós, era clara,
era uma questão em contraciclo com esta ideia do consumo descontrolado. O cidadão
normal, que lava o carro com água tratada, que tem piscina, sabe quanto é que
custa um litro de água tratada? Há mudanças comportamentais que num sentido de
mais austeridade não são más.
Mas em tudo isto nós
acreditamos. O que é preciso é colocar claramente o que está em jogo nesta
discussão do Estado. O que faz falta é perguntar: os senhores querem um Estado
como o da Suécia? Têm de pagar muitos impostos e mesmo assim temos de fazer a
racionalização, a reorganização do Estado e temos que o tornar mais inteligente,
mais produtivo, mais eficaz para bem de todas as classes sociais. Os senhores
quererão um Estado social mínimo? Não queremos, não queremos serviços
universitários desprestigiados...
A reforma do Estado tem de
ser pensada e isso exige tempo.
Exige tempo e exige ideias
claras sobre o que queremos. Uma coisa é dizer que queremos um Estado social
como a Alemanha, a Suécia ou o Canadá. Outra é dizer que o Estado deve ser o
Estado mínimo, também em serviços sociais. Aqueles não são Estados mínimos.
Um governo sozinho, ainda
que com maioria absoluta, tem legitimidade para fazer isto?
O Estado social em que estou
a pensar é um Estado com redistribuição de rendimentos. O Estado social em que
eles estão a pensar é o Estado que gasta muito menos e que acredita que com
desenvolvimento económico e social, automaticamente vamos ter rendimentos para
estas despesas sociais. De que é que estamos a falar quando se discute esta
reforma do Estado?
A reforma do Estado é uma
questão constitucional...
O Orçamento do Estado, o
pagamento de impostos, a contribuição extraordinária de solidariedade é uma
questão constitucional.
Mas quem tem legitimidade
para fazer o Orçamento não é o Governo?
Claro que o Tribunal
Constitucional não pode vir dizer que o Governo devia ter feito outro
Orçamento. Quem tem legitimidade para o fazer é o Governo. Quando o Tribunal
diz "há aqui uma imposição da troikaou
de conformação em virtude do estado financeiro", efectivamente é o que
está a acontecer... Uma coisa são as opções políticas, e que devem ser tomadas
pelos órgãos com legitimação para isso, outra coisa é o TC, que tem de ver que
há uma Constituição financeira, que há princípios que estão na Constituição de
progressividade nos impostos tendo em conta o rendimento familiar, a capacidade
contributiva, o princípio da igualdade...
Então o TC não contesta
opções, mas verifica princípios?
Sim, vai confrontar algumas
normas, não as políticas, mas que condensam opções políticas, para ver se isso
está de acordo com os princípios. São processos muito laboriosos de
interpretação.
Concordou com a decisão do
TC do ano passado?
Há várias questões que foram
introduzidas no discurso político. O parâmetro do público e do privado não está
em nenhum lado da Constituição, foi inventado para legitimar uma opção pelos
mínimos: os mínimos salários, as mínimas reformas. O Tribunal não cria normas,
mesmo que haja uma jurisprudência do ano passado em termos da equidade e da
justiça que não eram muito claras.
E não existe essa
jurisprudência?
O Tribunal discutiu essas
questões à luz desses princípios, mas verdadeiramente não criou nenhuma norma.
Uma coisa é a comparação, que é legítima, outra coisa é a retórica
argumentativa do ano passado, que também é legítima, outra coisa é dizer que o
Tribunal criou um padrão de avaliação no OE de 2012, o que não é verdade.
Apreciando o OE do ano passado, as condicionantes políticas, económicas,
culturais, sociais, o TC convocou aqueles princípios, sobretudo o princípio da
igualdade, e chegou àquela conclusão.
E agora?
Eu acho que o problema do
13.º e do 14.º mês está a criar nebulosidade, opacidade no discurso. O que se
tutela e garante na Constituição são salários e não subsídios e, portanto, o
melhor era começarmos a pensar num processo de irmos introduzindo os subsídios
nos salários e ficarmos definitivamente 12 meses com salários mais altos. Um
dos problemas fundamentais é clarificar o sistema e o Tribunal faz um esforço
para isso.
Admite-se que numa reforma
do Estado venha a existir um elevado número de despedimentos. É legítimo
fazê-lo?
Possivelmente numa reforma
do Estado a médio prazo, talvez. Agora, 50 mil funcionários, que é o número de
que se fala, isso multiplicado por três ou por quatro, porque são famílias, são
200 mil pessoas... Onde é que vamos buscar o subsídio de desemprego, o RSI? É
novamente nos impostos sobre o rendimento? Ou seja, são todas estas dimensões
que, evidentemente, um TC não pode controlar em tudo...
Por isso lhe perguntava se
um governo de maioria simples tem legitimidade para fazer uma reforma desta envergadura.
Uma coisa é legitimação,
outra é legitimidade. Se estas políticas são incontornáveis ou inadiáveis, é
indispensável um consenso social. Como é que vai ser esse consenso, isso é mais
complicado, mas vai ser necessário se queremos ter uma reforma profunda do
Estado...
O que está a ser feito
corresponde - mas eles nunca explicaram bem isso - à estratégia de
desvalorização fiscal: dado que nós não temos moeda para desvalorizar, vamos
incidir sobre os impostos e, portanto, eliminar o poder de compra e impor
austeridade. E sendo assim, o que está em jogo é ficarmos mais pobres 30%. É o
que está a acontecer.
Se o TC vier dizer, como no
ano passado, que há normas inconstitucionais, o Governo não perde a
legitimidade?
Não perde. O que o Tribunal
entendeu foi que há normas que violam princípios jurídico-constitucionais.
E não está na altura de a
nossa Constituição ser adaptada à nova realidade financeira e fixar, por
exemplo, um limite ao endividamento?
Podia ser adaptada, mas não
é através de normas da Constituição... Os alemães tinham isso e violaram várias
vezes. Esta pressão levou-nos a pensar que devíamos levar a sério este problema
da dívida. Somos devedores, vale a pensar nisso.
Chegou a altura de nós
mudarmos o paradigma da Constituição, de revê-la tão profundamente que se possa
purgá-la do que já está desactualizado?
Cada geração tem o direito
de fazer a sua própria Constituição. O problema é que as gerações actuais
querem desfazer a Constituição e vincular as futuras gerações. O que está em
causa verdadeiramente é uma Constituição com direitos económicos, sociais e
culturais e com políticas. Toda a gente concorda com o direito à Saúde, com o
SNS, com a rede pública de ensino, com um serviço de Segurança Social. Se
colocar isto à apreciação, não tenho dúvidas que todas as pessoas dizem que
isto deve manter-se na Constituição. O que os economistas colocam é que se o
povo disser que sim, tem de dizer como é que financia isto. E isso está
respondido em alguns países, mas não em Portugal.
O que pergunta hoje é como
se financiam os direitos sociais.
Há outro problema, que tenho
focado: começa a haver uma profunda injustiça em termos de impostos. A
imunidade que alguns querem do Direito financeiro ou do Direito dos impostos
relativamente à Constituição é de pessoas que não leram nada, que não têm
conhecimento nenhum destas regras ou então de outros países que não têm a ver
com o nosso e com esta civilização.
Concorda com o sistema de
nomeação de juízes para o TC?
Não há sistemas perfeitos.
Mas talvez tivesse sido interessante um equilíbrio na indicação dos juízes. O
Presidente indica o presidente do Tribunal de Contas, saber se não poderia
indicar um ou dois... Os partidos têm de ter um processo de aprendizagem quanto
a algumas coisas. Aquele processo lamentável na indicação do provedor de
Justiça, o processo lamentável de indicação de juízes para o TC. Em vez de
legitimarem os órgãos, começam a deslegitimá-los. A aprendizagem tem de ser no
sentido da transparência, qualidade técnica, ética. O TC tem que ser um órgão,
até do ponto de vista da composição, legitimado. Há que aprender e não repetir
estes erros.