domingo, 3 de fevereiro de 2013

Já não se aguenta


por NUNO SARAIVA
Durante o Estado Novo, os interrogatórios da PIDE, a polícia política do regime, eram muitas vezes testemunhados por um "médico" que caucionava os atos de tortura. O excelso e corajoso doutor, insensível ao sofrimento dos interrogados, incentivava os inspetores a prosseguirem com a inquirição, do tipo custe o que custar, assegurando sempre que o detido "aguenta, aguenta".
As afirmações mais recentes de Fernando Ulrich, o presidente do BPI, remetem-nos para esse tempo em que a doutrina oficial do pensamento único impunha a filosofia dos "pobrezinhos mas honradinhos". Na quarta-feira, dia em que apresentou os resultados consolidados do exercício de 2012, Fernando Ulrich estava impante - e com razão - com os lucros de 250 milhões que o banco a que preside conseguiu arrecadar. Ficava-lhe bem, porém, um pouco de humildade que lhe permitisse reconhecer que os números que apresentou só foram possíveis graças à intervenção do Estado através do fundo de recapitalização da banca, ao sacrifício dos contribuintes que ele parece desprezar e aos depósitos de gente que, de hoje para amanhã, pode ficar com o estatuto de sem-abrigo.
Mas o mais chocante nas palavras do banqueiro é o paternalismo, a insensibilidade, a arrogância, a pesporrência e a sobranceria que elas revelam. Interroga-se Ulrich: "Se os gregos aguentam uma queda do PIB de 25%, os portugueses não aguentariam porquê? Somo todos iguais, ou não?" E, pior do que esta defesa despudorada e resignada do empobrecimento coletivo, é a desumanidade demonstrada pela interrogação seguinte: "Se você andar aí na rua, e infelizmente encontramos pessoas que são sem- -abrigo, isso não lhe pode acontecer a si ou a mim porquê? Isso também nos pode acontecer. E se aquelas pessoas que nós vemos ali na rua, naquela situação a sofrer tanto, aguentam, porque é que nós não aguentaríamos?"
Afirmações deste tipo são próprias de corações empedernidos que, está bom de ver, jamais conviveram com a realidade que nos rodeia. Quando se tem um pingo de humanidade, e nos confrontamos com a crueldade de quem vive na rua, sem teto, sem família e sem comida, a interrogação obrigatória não é "se aquelas pessoas aguentam, porque é que nós não aguentaríamos?", mas sim como é que aquelas pessoas aguentam?
Fernando Ulrich, como Isabel Jonet ou, para não ser acusado de sectarismo, Arménio Carlos, são gente de referência nas mais diversas atividades. Têm responsabilidades acrescidas de cada vez que abrem a boca, e têm de ter consciência das repercussões que as suas palavras, mesmo quando mal medidas, têm na sociedade portuguesa, sobretudo em momentos delicados como aqueles que vivemos.
Mas Fernando Ulrich é também a voz e, num certo sentido, o ideólogo de uma forma passadista de pensar que, cada vez mais, vai ganhando terreno. A de que o Estado deve ser caridoso em vez de solidário. E não, não somos todos iguais. Porque, como sabemos, no caso dos bancos é bom que o Estado seja solidário na hora de arranjar dinheiro, salvar as instituições e assumir os prejuízos.
Este é só mais um exemplo de como a política e o Estado estão capturados pelo sector financeiro. Outro tivemo-lo ontem quando da obscena tomada de posse de um secretário de Estado - conferida por Cavaco Silva - que já foi administrador da SLN, a holding detentora do BPN. Franquelim Alves, que ao que consta omitiu do seu currículo esta passagem, terá reconhecido no Parlamento durante o inquérito parlamentar à gestão do BPN que "a situação era conhecida" e, "por razões cautelares", o Banco de Portugal não foi informado do que se estava a passar.
São estes personagens que, apesar de abrigados pelo Estado, passam a vida a rogar-lhe pragas e a mal-dizê-lo. Veremos, no caso de Fernando Ulrich, quando um dia for um "sem-abrigo" do Estado, se o banqueiro se aguenta!
Diário de Notícias, 03-02-2013

Portugal deve “olhar para práticas do Reino Unido” sobre concessões rodoviárias


O Governo está a renegociar as PPP rodoviárias DANIEL ROCHA
O secretário de estado das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, Sérgio Monteiro, disse nesta sexta-feira que Portugal deve “olhar para as práticas do Reino Unido” em matéria de concessões rodoviárias.
O governante, que foi ouvido durante mais de quatro horas na comissão parlamentar de inquérito às Parcerias Público Privadas (PPP), apresentou algumas estatísticas do Tesouro inglês e da Direcção- Geral de Tesouro e Finanças para o caso português.
Citando números dessas instituições, Sérgio Monteiro disse que o peso relativo da área dos transportes e infra-estruturas é de 13% no Reino Unido e de 96% em Portugal, o que denuncia “uma excessiva concentração do sector” no caso português.
Quanto aos encargos anuais das concessões desta área em percentagem do Produto Interno Bruto (PIB), estes são de 0,1% no Reino Unido e de 1% em Portugal. Já em percentagem da despesa pública, os valores são de 0,2% no caso britânico e de 2% no caso português.
“É preciso olhar para as práticas do Reino Unido e também para a distribuição sectorial, que é mais harmoniosa, para que o modelo seja mais sustentável”, reiterou o governante, garantindo que os contratos de concessão que o Governo pretende lançar “não aumentam os encargos” públicos.
Na sua intervenção inicial, o secretário de Estado disse que é importante perceber “por que é que, em Portugal, as PPP têm tão má fama”, considerando que isso “talvez” se deva ao “debate demasiado politizado”.
“O modelo de PPP é um modelo que, quando aplicado correctamente, é virtuoso, porque garante solidariedade intergeracional. Falta fazer um debate um bocadinho mais aprofundado para perceber se este pagamento é feito via impostos ou através do princípio utilizador-pagador”, afirmou.
Sérgio Monteiro recomendou ainda à comissão de inquérito para que, no relatório final, haja “sugestões de boas práticas para o futuro”, para perceber “o que se pode fazer diferente para que as PPP deixem de ter tão má fama (...) e possam trazer efeitos benéficos”.
No início dos trabalhos, o presidente da comissão, o deputado comunista António Filipe, disse que foi pedida à presidente da Assembleia da República a extensão, por 90 dias, do prazo para os trabalhos da comissão, uma vez que o prazo inicial de 120 dias termina a 11 de Fevereiro.
Público, 03-02-2013

Médica vai responder por homicídio


Uma médica ginecologista do Hospital Particular de Alvor (Portimão) vai ser julgada pelo homicídio por negligência de Vera Alves, uma enfermeira de 27 anos que morreu, vítima de hemorragia, durante uma pequena cirurgia aos ovários a que se submeteu em abril de 2011 para conseguir engravidar, naquela unidade de saúde.
Correio da Manhã, 03-02-2013

Crianças em risco

Por: Fernanda Palma, Professora Catedrática de Direito Penal
Sentir o Direito
CM de 2012-02-03
Têm-se sucedido os casos de crianças assassinadas pelas mães, que vivem situações de depressão profunda, associadas a uma separação, a grave instabilidade da vida familiar ou a um quadro de carência social e económica. Referenciadas, genericamente, pelas instituições oficiais de acompanhamento, tais situações colocam a questão da eficácia do sistema.
A eficácia do sistema de proteção de crianças e jovens em perigo não se afere por meras estatísticas ou pelas repercussões económicas. Porém, estes acontecimentos trágicos deveriam ter sido uma preocupação dos responsáveis pela Justiça nos discursos de abertura do ano judicial e justificam que a Assembleia da República lhes dedique uma comissão especializada.
É muito difícil agir nestes casos e as Comissões de Proteção já deram provas de dedicação e empenhamento por mais do que uma vez. Não está em causa a censura por um falhanço manifesto, que provavelmente até não ocorreu, mas uma apreciação objetiva e a autoanálise humilde da capacidade destes organismos para resolver problemas extremos e explosivos.
No caso recente dos dois meninos envenenados com bolos pela mãe, que depois se suicidou, a situação de risco terá sido detetada há cerca de dez meses pela Comissão de Proteção. No entanto, parece evidente que falhou o apoio psicológico ou psiquiátrico à personagem central desta tragédia e também ao resto da família, para a ajudar a lidar com a situação.
As Comissões de Proteção de Crianças e Jovens, de âmbito municipal, funcionam de forma muito incipiente, reunindo representantes de vários organismos que nunca estão adstritos à sua missão em regime de exclusividade. Mesmo o seu órgão executivo, a chamada Comissão Restrita, que integra um mínimo de cinco elementos, funciona nesses termos.
Por outro lado, o conjunto de competências das Comissões de Proteção encontra uma forte limitação legal: a sua intervenção depende sempre do acordo dos pais ou dos representantes dos menores. Na falta desse acordo, a defesa do interesse superior da criança deve ser assegurada pelos tribunais, que podem intervir mediante iniciativa do Ministério Público.
A mãe de Rúben e David, Eliana, fora proibida pelo Tribunal de Família e Menores de exercer a responsabilidade parental e ficar sozinha com os filhos. Dois dias depois, trouxe-os da escola para os matar. Tal como na ajuda às vítimas de violência doméstica, esta é uma área em que o Direito tem de ser mais eficiente, embora isso em nada contribua para a Economia.

Marinho e Pinto acusado de destruir estrutura da ordem

MARIANA OLIVEIRA 
Público - 03/02/2013 - 00:00
Conselho distrital critica proposta de alteração de estatutos feita pelo bastonário. Marinho e Pinto recua no projecto
O conselho distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados (OA), o respectivo conselho deontológico e as 22 delegações do distrito aprovaram, anteontem à noite, por unanimidade uma moção em que acusam Marinho e Pinto de querer destruir "a tradicional e histórica estrutura orgânica da Ordem", por causa de uma proposta que colocou à discussão no início da semana para ajustar os estatutos do organismo à nova lei das associações públicas profissionais.
O projecto extingue os conselhos distritais e as delegações locais, criando organismos ao nível das comarcas, adequando-se já ao futuro mapa dos tribunais. Esta reorganização ainda não está no terreno, faltando a aprovação de vários diplomas, não havendo ainda uma data para a sua entrada em vigor. Por isso os advogados de Lisboa estranham "a adopção do figurino do mapa judiciário que é objecto de contestação no conselho geral e cuja entrada em vigor se anuncia apenas para Setembro de 2014".
A moção repudia o método usado pelo bastonário para ouvir os vários órgãos da OA e o prazo dado para o comentário, até a sexta-feira passada. Em causa está a apresentação de um projecto de alteração dos estatutos da OA, encomendado ao escritório Sérvulo Correia e remetido aos vários organismo da OA na segunda-feira.
A encomenda, que o bastonário confirmou ao PÚBLICO, foi ontem divulgada pelo Diário de Notícias. Marinho e Pinto recusa-se a dizer quanto pagou pelo trabalho e desvaloriza a questão, adiantando que "contrata os assessores que entender". E sublinha: "Perante uma situação de homicídio grave a oposição está a discutir quem fez a faca usada no assassinato."
O conselho geral da ordem reuniu-se em plenário na sexta-feira e recuou na proposta de estatutos, tendo deliberado, por unanimidade, "não apresentar qualquer proposta de adaptação do Estatuto da Ordem dos Advogados à lei (...) das associações públicas profissionais e desenvolver de imediato os procedimentos necessários para a convocação de um congresso extraordinário", lê-se numa nota divulgada no site da ordem.
O recuo do conselho geral de Marinho e Pinho, que decidiu não acatar a nova lei das associações públicas profissionais por entender que ela representa uma ingerência do Governo, foi acompanhado de uma ameaça de demissão do bastonário.
Vasco Marques Correia, presidente do conselho distrital de Lisboa e possível candidato a bastonário, elogia o recuo de Marinho e Pinto e pede-lhe que não se demita. "Goste-se ou não do dr. Marinho e Pinto, ele é um bastonário forte e deve manter-se até ao fim do seu mandato. Ser substituído pela sua vice-presidente, Elina Fraga, seria uma solução muito fraca para a Ordem", sustenta.
Perante a dificuldade de encontrar um consenso alargado que permita um congresso extraordinário, Vasco Marques Correia sugere uma assembleia geral extraordinária. Sobre a encomenda do bastonário diz que não a faria. "Há um gabinete de estudos na Ordem, composto por advogados qualificados que fariam isso de graça", defende.
E acusa Marinho e Pinto de aproveitar esta oportunidade e, em fim de mandato (termina no final do ano), tentar fazer alterações profundas. "Para adequar o Estatuto à nova lei é preciso apenas criar um conselho fiscal, a eleição a bastonário passar a ter duas voltas e reduzir o estágio de 24 para 18 meses", sustenta.

O dinheiro é o nervo da República e por isso é matéria constitucional

PÚBLICO - 03/02/2013 - 00:00
Para Gomes Canitilho, o homem que ouve "música celestial" nos manuais de direito constitucional, as finanças são a realidade da Constituição. Por Leonete Botelho
José Joaquim Gomes Canotilho espera-nos no seu gabinete no Colégio de S. Pedro, no edifício da Reitoria da Universidade de Coimbra, com um dos nove pesados volumes do Manual do Direito do Estado na mão. É um manual de Direito Constitucional alemão escrito na língua de origem, que o professor jubilado domina na perfeição. Ou não fosse o sistema jurídico português inspirado no germânico.
Neste volume, o autor, C.F. Müller, discorre sobre a acção, a organização e as Finanças do Estado. Para Canotilho, algumas passagens são "música celestial". Traduziu alguns trechos para o PÚBLICO porque, diz, "é importante que estas coisas venham num jornal". E quase não foi preciso fazer perguntas nesta conversa em redor das funções do Estado, da sua reforma e seus limites. A moeda, o dinheiro, os impostos, as receitas não fiscais, o Orçamento são temas que constituem o maior capítulo desta edição de 2010/2011 que, explica Gomes Canotilho, situa toda esta função financeira do Estado no centro da sua essência constitucional.
Quer dizer que a gestão financeira é hoje uma das principais funções do Estado. Isto representa um retrocesso?
Não, representa um progresso relativamente às conversas dos economistas, que ficaram admirados por ver que o Tribunal Constitucional controlava o Orçamento. Isto mostra que as pessoas não estão preparadas, muitas vezes, para viver num Estado de direito em épocas difíceis. Mas a centralidade das finanças não é nova. Já os romanos diziam "pecunia nervus rerum", o dinheiro é o nervo das coisas. O dinheiro é o nervo da República, as finanças são a realidade de uma Constituição.
O Tribunal Constitucional ganhou uma nova centralidade política? E como é que isso se articula com o regime de excepção que estamos a viver?
A questão é, antes, a centralidade do Direito Financeiro e Fiscal na Constituição. A questão colocou-se ainda no tempo de José Sócrates, que já estava em governo de gestão quando assinou o memorando.
Foi polémico saber se um governo de gestão podia ou não assinar um tratado internacional com tantas consequências. Mas foi invocado um princípio do Direito Romano que eu pensei estar desactualizado:Salus publicae suprema lex est. Ou seja, a salvação pública é a lei suprema.
E continua a ser esse o argumento para todos os sacrifícios.
Pois, mas nós não estamos em estado de excepção. Nem em estado de sítio nem em estado de emergência, como estão previstos na Constituição. Só esses podem legitimar a supressão de direitos, liberdades e garantias.
Então em que estado estamos?
Começou-se a invocar o estado de excepção financeira e fiscal. Mas isso legitima não invocar normas do Estado de direito? Parece que não, nós continuamos num Estado de direito e há regras a cumprir.
Isso quer dizer que não podemos invocar um estado de excepção?
Não, porque se entende que há mais duas excepções: a situação económica em que temos de cumprir obrigações pesadas na qualidade de devedores e, por outro lado, porque existe o poder do Estado de aplicar impostos. O imposto hoje é o acto mais intrusivo na esfera jurídico-patrimonial dos cidadãos.
É por isso que tem de estar regulado na Constituição?
Claro, mas os economistas ainda não compreenderam que há princípios que têm de ser respeitados, que há direitos consagrados. O Estado moderno é um Estado de Finanças, a Teoria Financeira é uma Teoria do Estado e as crises financeiras são crises do Estado.
As crises financeiras são crises do Estado?
Isso decorre do facto da função financeira ser uma função essencial do Estado. No entanto, o Estado democrático que assenta nos impostos não se deve confundir com outro Estado, que anda agora a aparecer, que é o que eles chamam o Estado das Taxas ou o Estado da prestação dos serviços. O primeiro é o Estado que trabalha com o cidadão que paga impostos, o segundo já não é bem isso, é uma dissolução da cidadania em actos isolados da sua existência, pagando taxas.
Não será isso a que se chama a reforma do Estado social?
É o que tenho dito. O que nós estamos a criar em Portugal é o pior dos dois mundos, porque temos um Estado tributário de impostos até à medula e o que propõem são taxas acumuladas. E não é apenas isso. É que isto é afinal a dissolução da cidadania nestas máscaras de consumidor, utente e cliente.
Estamos a caminhar para um paradigma em que para os muito ricos há tudo e para a classe média não há nada?
Eu gostava de pagar menos impostos, mas aceito a reforma do Estado se ela consistir em racionalização e princípios da economicidade, da eficácia. Estou disposto a discutir como é que vamos financiar o Estado social. Mas o princípio da universalidade é sagrado, ninguém pode deixar de ter acesso ao conhecimento, à Saúde, à Segurança Social.
A pergunta que se faz agora é como é que isso se paga.
Se o princípio da universalidade parece indiscutível, temos de saber se está necessariamente ligado ao princípio da gratuidade. E de saber se aquilo que tinha começado como uma espécie de co-pagamento (propinas, por exemplo) não é propriamente um racionamento...
E para isso não é preciso mudar a Constituição? Passos Coelho quis mudá-la, mas o projecto ficou pelo caminho...
Um dos problemas da revisão falhada é que verdadeiramente não apontava para a redução das despesas do Estado, mas para a transferência de dinheiros do sector público para o sector privado. Não sou contra alguns sistemas de transferência do público para o privado para manter a protecção destes bens de que estamos a falar. Agora, o que a reforma escondia era uma opção ideológica. A melhor maneira de discutirmos a reforma do Estado é tornarmos isto transparente.
Como é que se torna esse debate transparente?
As pessoas querem compreender se podemos poupar dinheiro, se devemos fazer este esquema racionalizador da gestão político-funcional, da discussão do que é uma universalidade de serviços. Se perante o aumento de alguns gastos, designadamente da Saúde, estamos disponíveis para algumas taxas. Mas não é para acumular um tributo de 50% de taxas duplicadas ou triplicadas.
Não tem de haver alguma medida de orientação de comportamentos?
Admito que sim. As taxas moderadoras e algumas coisas que nos podem conduzir a uma outra educação política e social. Uma das questões que desde o início, para nós, era clara, era uma questão em contraciclo com esta ideia do consumo descontrolado. O cidadão normal, que lava o carro com água tratada, que tem piscina, sabe quanto é que custa um litro de água tratada? Há mudanças comportamentais que num sentido de mais austeridade não são más.
Mas em tudo isto nós acreditamos. O que é preciso é colocar claramente o que está em jogo nesta discussão do Estado. O que faz falta é perguntar: os senhores querem um Estado como o da Suécia? Têm de pagar muitos impostos e mesmo assim temos de fazer a racionalização, a reorganização do Estado e temos que o tornar mais inteligente, mais produtivo, mais eficaz para bem de todas as classes sociais. Os senhores quererão um Estado social mínimo? Não queremos, não queremos serviços universitários desprestigiados...
A reforma do Estado tem de ser pensada e isso exige tempo.
Exige tempo e exige ideias claras sobre o que queremos. Uma coisa é dizer que queremos um Estado social como a Alemanha, a Suécia ou o Canadá. Outra é dizer que o Estado deve ser o Estado mínimo, também em serviços sociais. Aqueles não são Estados mínimos.
Um governo sozinho, ainda que com maioria absoluta, tem legitimidade para fazer isto?
O Estado social em que estou a pensar é um Estado com redistribuição de rendimentos. O Estado social em que eles estão a pensar é o Estado que gasta muito menos e que acredita que com desenvolvimento económico e social, automaticamente vamos ter rendimentos para estas despesas sociais. De que é que estamos a falar quando se discute esta reforma do Estado?
A reforma do Estado é uma questão constitucional...
O Orçamento do Estado, o pagamento de impostos, a contribuição extraordinária de solidariedade é uma questão constitucional.
Mas quem tem legitimidade para fazer o Orçamento não é o Governo?
Claro que o Tribunal Constitucional não pode vir dizer que o Governo devia ter feito outro Orçamento. Quem tem legitimidade para o fazer é o Governo. Quando o Tribunal diz "há aqui uma imposição da troikaou de conformação em virtude do estado financeiro", efectivamente é o que está a acontecer... Uma coisa são as opções políticas, e que devem ser tomadas pelos órgãos com legitimação para isso, outra coisa é o TC, que tem de ver que há uma Constituição financeira, que há princípios que estão na Constituição de progressividade nos impostos tendo em conta o rendimento familiar, a capacidade contributiva, o princípio da igualdade...
Então o TC não contesta opções, mas verifica princípios?
Sim, vai confrontar algumas normas, não as políticas, mas que condensam opções políticas, para ver se isso está de acordo com os princípios. São processos muito laboriosos de interpretação.
Concordou com a decisão do TC do ano passado?
Há várias questões que foram introduzidas no discurso político. O parâmetro do público e do privado não está em nenhum lado da Constituição, foi inventado para legitimar uma opção pelos mínimos: os mínimos salários, as mínimas reformas. O Tribunal não cria normas, mesmo que haja uma jurisprudência do ano passado em termos da equidade e da justiça que não eram muito claras.
E não existe essa jurisprudência?
O Tribunal discutiu essas questões à luz desses princípios, mas verdadeiramente não criou nenhuma norma. Uma coisa é a comparação, que é legítima, outra coisa é a retórica argumentativa do ano passado, que também é legítima, outra coisa é dizer que o Tribunal criou um padrão de avaliação no OE de 2012, o que não é verdade. Apreciando o OE do ano passado, as condicionantes políticas, económicas, culturais, sociais, o TC convocou aqueles princípios, sobretudo o princípio da igualdade, e chegou àquela conclusão.
E agora?
Eu acho que o problema do 13.º e do 14.º mês está a criar nebulosidade, opacidade no discurso. O que se tutela e garante na Constituição são salários e não subsídios e, portanto, o melhor era começarmos a pensar num processo de irmos introduzindo os subsídios nos salários e ficarmos definitivamente 12 meses com salários mais altos. Um dos problemas fundamentais é clarificar o sistema e o Tribunal faz um esforço para isso.
Admite-se que numa reforma do Estado venha a existir um elevado número de despedimentos. É legítimo fazê-lo?
Possivelmente numa reforma do Estado a médio prazo, talvez. Agora, 50 mil funcionários, que é o número de que se fala, isso multiplicado por três ou por quatro, porque são famílias, são 200 mil pessoas... Onde é que vamos buscar o subsídio de desemprego, o RSI? É novamente nos impostos sobre o rendimento? Ou seja, são todas estas dimensões que, evidentemente, um TC não pode controlar em tudo...
Por isso lhe perguntava se um governo de maioria simples tem legitimidade para fazer uma reforma desta envergadura.
Uma coisa é legitimação, outra é legitimidade. Se estas políticas são incontornáveis ou inadiáveis, é indispensável um consenso social. Como é que vai ser esse consenso, isso é mais complicado, mas vai ser necessário se queremos ter uma reforma profunda do Estado...
O que está a ser feito corresponde - mas eles nunca explicaram bem isso - à estratégia de desvalorização fiscal: dado que nós não temos moeda para desvalorizar, vamos incidir sobre os impostos e, portanto, eliminar o poder de compra e impor austeridade. E sendo assim, o que está em jogo é ficarmos mais pobres 30%. É o que está a acontecer.
Se o TC vier dizer, como no ano passado, que há normas inconstitucionais, o Governo não perde a legitimidade?
Não perde. O que o Tribunal entendeu foi que há normas que violam princípios jurídico-constitucionais.
E não está na altura de a nossa Constituição ser adaptada à nova realidade financeira e fixar, por exemplo, um limite ao endividamento?
Podia ser adaptada, mas não é através de normas da Constituição... Os alemães tinham isso e violaram várias vezes. Esta pressão levou-nos a pensar que devíamos levar a sério este problema da dívida. Somos devedores, vale a pensar nisso.
Chegou a altura de nós mudarmos o paradigma da Constituição, de revê-la tão profundamente que se possa purgá-la do que já está desactualizado?
Cada geração tem o direito de fazer a sua própria Constituição. O problema é que as gerações actuais querem desfazer a Constituição e vincular as futuras gerações. O que está em causa verdadeiramente é uma Constituição com direitos económicos, sociais e culturais e com políticas. Toda a gente concorda com o direito à Saúde, com o SNS, com a rede pública de ensino, com um serviço de Segurança Social. Se colocar isto à apreciação, não tenho dúvidas que todas as pessoas dizem que isto deve manter-se na Constituição. O que os economistas colocam é que se o povo disser que sim, tem de dizer como é que financia isto. E isso está respondido em alguns países, mas não em Portugal.
O que pergunta hoje é como se financiam os direitos sociais.
Há outro problema, que tenho focado: começa a haver uma profunda injustiça em termos de impostos. A imunidade que alguns querem do Direito financeiro ou do Direito dos impostos relativamente à Constituição é de pessoas que não leram nada, que não têm conhecimento nenhum destas regras ou então de outros países que não têm a ver com o nosso e com esta civilização.
Concorda com o sistema de nomeação de juízes para o TC?
Não há sistemas perfeitos. Mas talvez tivesse sido interessante um equilíbrio na indicação dos juízes. O Presidente indica o presidente do Tribunal de Contas, saber se não poderia indicar um ou dois... Os partidos têm de ter um processo de aprendizagem quanto a algumas coisas. Aquele processo lamentável na indicação do provedor de Justiça, o processo lamentável de indicação de juízes para o TC. Em vez de legitimarem os órgãos, começam a deslegitimá-los. A aprendizagem tem de ser no sentido da transparência, qualidade técnica, ética. O TC tem que ser um órgão, até do ponto de vista da composição, legitimado. Há que aprender e não repetir estes erros.