É de todos conhecido o estilo frontal, altivo, por vezes agreste da ministra da Justiça na abordagem das questões e até no juízo escorreito que faz sobre as pessoas com quem se cruza. Fá-lo sempre numa linguagem franca e aberta, embora por vezes excessiva para com aqueles com quem não simpatiza.
Quem não se lembra da acrimónia com que sempre tratou Luís Filipe Menezes e da profecia da desgraça que sentenciou para o partido caso aquele ganhasse as eleições para presidente do PSD? Do mesmo passo, é consabido o perfil directo, voluntarista e tutti quanti populista com que o bastonário da Ordem dos Advogados enfrenta os desafios que hoje se colocam à advocacia e à justiça em Portugal, não poupando críticas mordazes aos poderes instalados. Quem não se recorda do tom tonitruante e arrasador com que afrontou Manuela Moura Guedes num célebre Jornal da Noite da TVI?
Vale isto para dizer que colocar a ministra da Justiça e o bastonário da Ordem dos Advogados frente a frente para debaterem a crise da justiça é o equivalente a colocar dois elefantes numa loja de porcelanas. Mais cedo ou mais tarde, provavelmente mais cedo que tarde, vai ficar tudo em cacos. Como se viu há dias no Congresso dos Advogados. É por isso importante na apreciação das questões da justiça abstrairmo-nos dos fait divers de índole pessoal e procurarmos perscrutar o cerne do problema, por forma a encontrarmos os caminhos virtuosos de uma verdadeira reforma da justiça. Até porque a sensação que perpassa por todos nós é que a justiça tem andado um pouco ao sabor dos amores e desamores ente a ministra e o bastonário. E o episódio mais actual desta saga é o anúncio recente de graves irregularidades supostamente cometidas por mais de mil advogados da nossa praça, no âmbito do apoio judiciário, que teriam lesado o Estado em mais de 3,5 milhões de euros.
Sem tibiezas, creio ser de louvar a atitude corajosa da ministra da Justiça de ordenar a realização de uma auditoria ao apoio judiciário. Numa época em que o país foi objecto de assistência financeira internacional e os portugueses vivem tempos difíceis de austeridade, é dever do governante curar da boa aplicação dos dinheiros públicos, não podendo pactuar com a apropriação indevida ou o esbanjamento de recursos tão escassos. Além do mais, sendo os advogados actores privilegiados da justiça, têm o dever acrescido de primar pela rectidão da sua conduta e de dar o exemplo. E nem se diga que a realização da auditoria é lesiva da dignidade dos advogados, por criar um clima de dúvida sobre a sua honorabilidade. Nos tempos que correm ninguém se pode eximir à responsabilidade de prestar contas e de ser fiscalizado. Manifestamente, ao decidir como decidiu, a ministra esteve bem.
Onde a ministra da Justiça andou menos bem, a meu ver, foi na metodologia adoptada para concluir a auditoria e, em particular, na gestão da comunicação dos seus resultados. Desde logo porque, para lá do atraso no pagamento, a Ordem dos Advogados em momento anterior já havia alertado para a existência de erros grosseiros no tratamento de dados. Mas sobretudo onde a ministra esteve francamente mal foi na forma imprudente e precipitada como permitiu a divulgação na comunicação social dos resultados dessa auditoria. Num tempo em que é vital reforçar a credibilidade e a seriedade das instituições, ponto fraco do nosso estado de direito, nada pior do que este tipo de notícias para ferir de morte a sua honorabilidade. E logo quando os putativos agentes da fraude (ainda não provada, diga-se) são uma minoria no universo dos advogados portugueses. No final da linha é até bem provável que a montanha venha a parir um rato. A ver vamos…
A ministra da Justiça começou a dar sinais claros de que tem ideias para atalhar os problemas da justiça em Portugal. O anúncio de algumas iniciativas concretas no domínio do Processo Penal e, em particular, no do Processo Civil, com vista a agilizar o funcionamento dos tribunais vão nesse sentido. Mas é bom que a ministra entenda, de uma vez por todas, que não terá sucesso em qualquer reforma da justiça, se o fizer de costas voltadas para os operadores judiciários ou a defenestrar o prestígio dos advogados. Definitivamente se quiser levar a água ao moinho vai ter de começar a ver para além da Taprobana e deixar para outra encarnação o seu duelo ao sol com o bastonário da Ordem dos Advogados…
Jorge Neto
Público, 26-12-2011