José Pacheco Pereira - A situação é parecida com a
dos últimos dias do Governo Santana Lopes. Parecida, mas longe, muito longe de
ser igual. É muito mais grave, mais profunda, e sem aparente saída política de
curto prazo em eleições, como acontecia em 2005. Um tempo político acabou em
Setembro de 2012, que durava desde o início da primeira década do século, e que
se esgotou neste deserto em que parece não existirem forças anímicas na
democracia para resolver a profunda crise de representação.
Em 2005, os últimos dias do Governo PSD-CDS
começaram com a fuga de Barroso, um acto de grande irresponsabilidade no
contexto nacional, depois de uma derrota eleitoral. Os últimos dias do Governo
Barroso já são parecidos com todos os dias do Governo Santana Lopes: Barroso
preparava-se para despedir Manuela Ferreira Leite e estava convencido que era a
política de restrição orçamental que tinha sido responsável pela derrota
eleitoral nas europeias. Não me admirava que fosse, até porque o eleitorado em
2009, prevenido da crise que aí vinha, nem por isso deixou de votar em
Sócrates, para um ano e meio depois o correr como um vil político que devia ser
preso.
Barroso, que começou bem ao dizer que o "país
estava de tanga", identificou o risco que a herança de Guterres lhe tinha
deixado. Tenho há muito tempo a convicção que foi o tandem Guterres-Pina Moura
o primeiro responsável da crise actual, porque o tempo político que conduziu ao
pântano começou aí. As tentativas de puxar para trás a crise para comprometer
Cavaco ou "todos os Governos desde o 25 de Abril" tratam tempos
políticos, económicos e sociais distintos, metendo-os no mesmo saco. Pode ser
útil para a propaganda, ou para uma narrativa ideológica do "Estado
despesista", mas é pouco fundado nos factos. Uma coisa que é preciso nunca
esquecer é que os tempos em política são diferentes e que isso não se vê apenas
nas estatísticas económicas.
Na verdade, o tempo que tem sequência até ao
anúncio da TSU em Setembro, começou com o "pântano" guterrista e
corresponde à noção de que se estava a abrir um abismo entre a necessidade de
controlar a despesa do Estado e os bloqueios vindos da partidocracia, do
sistema político-constitucional e das escolhas eleitorais dos portugueses.
Guterres percebeu-o tarde e foi-se embora. Barroso ainda deu um tempo a Manuela
Ferreira Leite para começar a combater os motivos da "tanga" e depois
tirou-lho por razões eleitoralistas e de gestão da sua carreira pessoal. Esta
foi a primeira tentativa falhada de inversão. A segunda veio dos primeiros anos
de Sócrates, entre 2005 e 2007, teve algum sucesso, e embora a dimensão desse
sucesso tenha números exagerados, nem por isso deixou de ser meritória. O mesmo
Sócrates, que veio mais tarde a rebentar com as finanças públicas, começou como
disciplinador do défice. E por aqui se ficaram as tentativas ocorridas no tempo
político que vivemos até 2011, de inverter uma situação de corrida ao desastre.
O espectáculo da governação neste último mês é de
facto penoso de se ver.
No momento em que escrevo, o primeiro-ministro anda
fugido de aparecer em público nas comemorações de 5 de Outubro para evitar ser
vaiado, e evitou cuidadosamente "dar a cara", como tinha prometido de
peito cheio, para anunciar as "más notícias".
Um brutal pacote fiscal, já bem dentro do terreno
do puro confisco, foi anunciado por um ministro das Finanças que fez uma
declaração de amor aos portugueses que se manifestaram chamando-lhe a ele e aos
seus colegas de Governo "gatunos". Sacher-Masoch explica isto muito
bem.
No Parlamento, durante a discussão das moções de
censura, o ambiente de fim dos tempos era evidente. Quebrando uma regra
protocolar substantiva, o primeiro-ministro recusou-se a responder
individualmente aos dirigentes dos partidos que apresentaram a censura,
Jerónimo de Sousa e Louçã. Não há outra explicação senão aquela que alguns
deputados gritaram: "Tem medo!". E é de ter medo, porque o bom senso
terra a terra e a genuína indignação de Jerónimo de Sousa, junto com a retórica
parlamentar de Louçã, são poderosos face a um político acossado como é hoje
Passos Coelho.
Na mesma sessão, Paulo Portas fez questão de deixar
bem claro que a coreografia do entendimento ocorrida há dias entre CDS e PSD é
pouco mais do que isso e que a coligação se apresenta em público rasgada sem
disfarces. Tinha no dia anterior recebido uma bofetada de luva preta quando
Gaspar falou do "enorme aumento de impostos", como se atirasse a
Portas uma resposta pública à sua carta aos militantes dizendo "ai sim,
não querias um aumento de impostos, pois leva lá um enorme aumento de
impostos".
Na bancada, Passos e Relvas riam-se quando Honório
Novo, do PCP, confrontava Portas com o seu "partido de
contribuintes".
Ao lado, estava Álvaro Santos Pereira e um Governo
que uma "fonte próxima do primeiro-ministro" - o que, em linguagem
jornalística, significa ou Passos Coelho ou alguém mandatado por ele - ter dito
ao Expresso que era para remodelar o mais depressa possível. E Álvaro Santos
Pereira, nomeado individualmente pela mesma "fonte", continua ali,
impávido e sereno. António Borges somou apenas mais algumas palavras furiosas
ao tom revanchista que perpassa em todo o discurso governamental, um remake dos
empurrões na incubadora de antanho: são os empresários "ignorantes"
que não "perceberam" a "inteligência" da TSU; são os juízes
do Tribunal Constitucional que chumbaram a meritória retirada de dois meses de
salário à função pública, para protegerem os seus proventos pessoais; são os
funcionários públicos que "vivem" como "cigarras",
alimentando-se do trabalho das "formigas" privadas e que, se pensam
que escapam, estão bem enganados. Um gigantesco "é bem feito" é dito
todos os dias pelo Governo ao país. O país retribui em espécie. Depois disto
tudo, não adianta queixarem-se de que as pessoas se distraem com faits-divers
em vez de irem ao fundo da questão, porque cada vez mais os faitsdivers são o
fundo da questão, porque não há mais nada.
O Presidente está perdido no seu labirinto e tem
apenas uma tentativa possível, aquilo que impropriamente se designa por
"governo de salvação nacional", que é hoje mais provável do que há um
ano e que pode vir a ter um escasso tempo útil no meio do desespero vigente.
Teria que ser mesmo feito pelo Presidente, fora da partidocracia actual, com
acordo parlamentar escrito e assinado por parte do PS, PSD e CDS que lhe desse
legitimidade democrática, com um compromisso mais alargado do que o deste
Governo. Esse acordo deveria incluir, preto no branco, todas as medidas
julgadas necessárias para cumprir o memorando da troika, algumas que deveriam
ser renegociadas sem pôr em causa os compromissos de fundo com os nossos
credores.
Esse Governo teria como prazo-limite O fim da
intervenção estrangeira, que é o seu principal objectivo, e deveria, a seguir,
haver eleições. A austeridade não acabava, podia até estabilizar-se num patamar
superior, mas teria que absolutamente ter um prazo, nO fim do qual começaria a
abrandar. Todas as medidas de emergência deveriam ter um prazo vívido, 2014 por
exemplo, porque prazos vagos e indefinidos, ou de dez anos para cima, não são
"vívidos" e geram uma síndroma de Sísifo: nenhum sacrifício parece
ter resultado. As palavras, demasiado repetidas, de que um político
"responsável" não fala em prazos, não servem para os dias de hoje e
são desresponsabilizantes. Hoje, os portugueses precisam, para retomar alguma
confiança, de prazos que responsabilizem os políticos.
Não é uma solução perfeita, longe disso.
Não tenho dúvidas de que os partidos farão tudo
para a torpedear, mesmo que aceitem em desespero de causa. A mediocridade das
carreiras políticas no PSD e no PS seria seriamente posta em causa se um
Governo destes se revelar eficaz, a extrema-esquerda combatê-lo-ia sem tréguas,
mas não vejo outra possibilidade de dar esperança aos portugueses e restaurar
alguma confiança.
É verdade que muita coisa de urgente não poderia
ser feita por uma solução deste tipo: alterar a Constituição, promover um
combate eficaz à corrupção, introduzir legislação que inverta o processo de
domínio partidocrata, como seja a possibilidade de grupos de cidadãos concorrerem
ao Parlamento, a colocação dos nomes das listas partidárias por ordem, etc. Mas
muitas outras medidas podem e devem ser tomadas.
A alternativa a uma solução presidencial deste tipo
acabará por ser novas eleições sem garantia de governabilidade nos seus
resultados, até porque na actual configuração parlamentar não vejo qualquer
possibilidade de haver uma solução que substitua a desagregação acelerada da
actual governação. O que não pode continuar é o que está, embora também saiba
que o apodrecimento dura demasiado tempo e muitas vezes acontece por apatia e
interesse egoísta, e depois parte-se para o que já é inevitável há muito tempo,
tarde de mais.
Esta responsabilidade, a seu tempo, ou seja, em
breve, o Presidente não a pode falhar.
É coerente com o mandato que procurou e recebeu e
com o seu entendimento do papel presidencial. Se não o fizer, e há-de haver uma
altura em que até o PSD e o CDS o pedirão, acabará a presidir ao apodrecimento,
com ele como parte do problema, por omissão. Vamos ver.
José Pacheco Pereira
Público de 06-10-2012