terça-feira, 26 de março de 2013

Investigação criminal: a carta de Brasília

processos empilhados 2Por António Cluny, publicado em 26 Mar 2013
Em democracia só entidades independentes, com estatuto garantido constitucionalmente, devem dirigir as investigações no âmbito da justiça
1. A ideia de que a democracia implica um caminho contínuo de progresso, cujas mudanças permitem melhorar sempre o que de bom a sociedade já alcançou, parece hoje uma noção em crise.
O que recentemente sucedeu no Brasil - esse prodigioso país, em pleno momento de afirmação mundial - confirma plenamente esta falácia.
Alguém - com raro sentido de oportunidade política - lembrou-se de formular uma “generosa” proposta de revisão constitucional para, alegadamente, reforçar a independência do Ministério Público (MP).
Essa proposta visa, na verdade, impedir apenas que o MP continue a dirigir as investigações criminais, que, pela primeira vez, têm permitido à justiça brasileira atingir estratos políticos, económicos e sociais que sempre se julgaram imunes.
Conhecida por PEC 37/2011, tal proposta vem causando, por isso, estupefacção entre a comunidade jurídica mundial.
Esta tem acompanhado, com admiração genuína, a actividade empenhada do MP daquele país na defesa dos direitos de cidadania e, mais concretamente, no combate à criminalidade económica e financeira, designadamente no âmbito do célebre processo “mensalão”.
A experiência ensina, em todo o caso, que são exactamente os sucessos obtidos contra os privilégios da impunidade que costumam estar na origem destas investidas.
Os portugueses sabem bem disso.
2. Mas, mesmo assim, será, ainda, admissível colocar em causa os poderes de investigação do MP, uma entidade que - como no Brasil sucede - tem, exactamente, por missão constitucional o exercício da acção penal?
Qualquer que seja o modelo de justiça existente nos países democráticos, sempre se exige que seja uma autoridade judicial, ou uma entidade constitucional independente como o MP, que, processualmente, dirijam, controlem ou completem as investigações policiais.
No mundo, só três países consagram, actualmente, a tese contrária: a Indonésia, o Quénia e o Uganda.
Cientes do que pode suceder, a Procuradoria-Geral da República do Brasil e o MP Federal lembraram-se, por isso, de convocar uma conferência de nível internacional para analisar e discutir tão peregrina proposta.
3. Aí, com o apoio da MEDEL, foi aprovado um importante documento - a Carta de Brasília - que espelha nitidamente as contradições e os perigos que a provação da referida PEC 37/2011 pode comportar.
Nele se faz notar:
O prejuízo que tal aprovação acarretaria para a salvaguarda do princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei e, assim, também, para a eficiência e efectividade da justiça;
A incongruência em que passaria a incorrer o estado brasileiro, que aprovou o Estatuto do Tribunal Penal Internacional, que prevê, precisamente, um MP independente e com poderes investigatórios amplos;
A dificuldade acrescida que o Brasil passaria a ter na cooperação judiciária internacional, que se baseia no princípio do reconhecimento mútuo entre entidades independentes e com poderes judiciários no campo da investigação.
4. O Brasil é, todos sabemos, um país com brilhantes tradições jurídicas, órgãos judiciais e um MP respeitados pelos seus cidadãos e pela comunidade jurídica e judiciária mundial.
Admitir que o Brasil possa vir a aderir ao pequeno grupo de países que, no mundo, aceitam ainda a possibilidade de investigações criminais não judicializadas e dirigidas apenas por órgãos - como as polícias - que dependem das orientações políticas dos governos, só pode, assim, causar espanto e profunda preocupação democrática.
Jurista e presidente da MEDEL

Reformados levam provedor a exigir explicações

NATÁLIA FARIA 
Público - 26/03/2013 - 00:00
Provedor de Justiça fala em número "inusitado de queixas" recebidas sobre corte extraordinário nas pensões
A caixa de correio do provedor de Justiça, Alfredo José de Sousa, tem vindo a ser invadida por queixas de pensionistas que acusam o Centro Nacional de Pensões (CNP) de não dar resposta aos pedidos de esclarecimento sobre o corte extraordinário nas pensões imposto pelo Orçamento do Estado para 2013. Em causa estão também os atrasos na apreciação dos pedidos de aposentação - nalguns casos superiores a um ano - e no envio das declarações anuais de rendimentos e retenções efectuadas em 2012.
As queixas não são de agora e, agastado com o facto de os anteriores pedidos de esclarecimento terem caído em saco roto, Alfredo José de Sousa pede que "num prazo não superior a 15 dias" lhe sejam prestados "todos os esclarecimentos sobre as medidas e procedimentos já eventualmente adoptados ou a adoptar para que estes problemas sejam rapidamente ultrapassados".
Para o provedor, o número "inusitado de queixas" recebidas indicia que o direito à informação dos pensionistas não está a ser acautelado, "contribuindo para o avolumar de dúvidas, receios e também de reclamações". Em causa estão as "oscilações frequentes no montante mensal líquido das pensões", agravadas pelo facto de o CNP ter vindo a recusar aos respectivos beneficiários "qualquer documento em que explique a pensão líquida que é paga".
Ao PÚBLICO a presidente da Associação de Aposentados, Pensionistas e Reformados, Rosário Gama, sublinha que a situação é particularmente grave por afectar "cidadãos vulneráveis e fragilizados".
O atraso no envio da declaração de rendimentos e das deduções efectuadas em 2012 é outro dos problemas por detrás deste "puxão de orelhas" de Alfredo de Sousa aos serviços tutelados pelo ministro Pedro Mota Soares. A lei determina que tal declaração seja remetida aos pensionistas até ao dia 20 de Janeiro de cada ano. Não o tendo feito - ou tendo-o feito após o prazo legal -, o provedor exige que o CNP o esclareça sobre as razões que levaram ao incumprimento, sobretudo porque, para os pensionistas que optem por apresentar a sua declaração de IRS em papel, o prazo de entrega termina no próximo dia 31 de Março.
Recorde-se que este ano todos os reformados que em 2012 receberam pensões mensais acima dos 293 euros são obrigados a entregar a declaração de IRS - até agora, esta obrigação fiscal era apenas exigida aos reformados com pensões acima dos 428 euros brutos por mês.
Um ano para decidir processos
A estes problemas acrescem as denúncias sobre atrasos superiores a um ano na instrução e conclusão dos processos para a atribuição das pensões. Considerando que tais atrasos têm "impactos muito negativos na vida dos interessados, sobretudo daqueles que vivem em situações dramáticas de insuficiência económica e se vêem privados, durante longos períodos de tempo, da sua pensão", o provedor sublinha ainda que, no caso dos pedidos de reforma antecipada, a ineficiência dos serviços comprometeu "o direito dos interessados à respectiva pensão em tempo útil, uma vez que estes, entretanto, em alguns casos, completaram os 65 anos de idade".
A culpa aqui é do CNP - segundo sustenta o provedor na missiva que enviou ao Instituto de Segurança Social, mas também ao secretário de Estado da Solidariedade e Segurança Social, Marco António Costa -, bem como dos centros distritais da Segurança Social, com particular destaque para o centro distrital do Porto, "que concentra o maior número de queixas".

Os tribunais nunca vão estar preparados para lidar com casos excepcionais

PúblicoJOSÉ AUGUSTO MOREIRA 
26/03/2013 - 00:00
Depois de todas as vicissitudes do processo da Casa Pia, a ideia é que o sistema judicial parece continuar a não ser capaz de conviver com os casos mediáticos.
Passaram mais de dez anos, multiplicaram-se polémicas e acusações, alteraram-se códigos e leis e os tribunais decretaram as penas, mas ninguém parece estar em condições de garantir que tudo não volte a acontecer. A questão, dizem, é que as mudanças foram induzidas pelos casos concretos e as instituições continuam a não estar preparadas para lidar com os megaprocessos e o mediatismo decorrente do envolvimento de poderosos e figuras públicas.
"Não é um problema de leis, mas de atitudes", diz o professor Costa Andrade, concluindo que, apesar das muitas lições retiradas do caso da Casa Pia, continua não ter "razões para crer que isto vá melhorar muito". Para este catedrático da Universidade de Coimbra especialista em direito penal, é ainda "preciso criar condições para que a Justiça funcione apenas dentro do seu próprio espaço", o que de todo não aconteceu neste processo.
"Houve mudanças, mas o seu efeito é ainda difícil de avaliar", adianta o académico, mostrando-se convencido que esta é uma questão com a qual o sistema se continuará a confrontar. "São problemas de todos os megaprocessos, dos casos mais mediáticos", avalia. Sublinha a "circunstância de se terem juntado personagens mediáticos, gente influente e ligações ao poder".
E depois das lições deste caso e das mudanças nas leis não há garantias de que tudo não se voltará a repetir? "Claro que não. Basta que haja um processo em que a opinião pública se envolva da mesma maneira", sentencia o advogado Rodrigo Santiago, para quem "este processo nasceu torto e nunca se endireitou".
No mesmo sentido vai o bastonário dos advogados, que, no entanto, desdramatiza a questão. "Nenhum sistema judicial está preparado para coisas excepcionais", garante Marinho Pinto. Uma perspectiva que não diverge da de alguns juízes.
"Em termos de investigação e sistema judiciário, é claro que não estamos preparados para lidar com processos com este tipo de complexidade", disse ao PÚBLICO um juiz- conselheiro, que pediu para não ser identificado, dado na sua actividade ter-se cruzado em algumas circunstâncias com o andamento deste processo. Por seu lado, o desembargador Mouraz Lopes, presidente da Associação Sindical de Juízes, disse não querer pronunciar-se sobre a matéria "devido às actuais funções". "Ainda é cedo. Podia causar ruídos face à proximidade de algumas decisões", justificou.
Sistema perverso
Para além das questões mediáticas e das "mudanças nas leis penais por influência das erupções e efervescência dos dias", aquele juiz-conselheiro reconhece que subsistem "problemas de gestão do processo penal" e com o sistema de nomeação dos juízes, "que se revela perverso" nestes casos. "Não é possível escolher os juízes mais experientes e, como tal, mais preparados", assinala, sublinhando também que "nenhum processo pode andar seis anos em julgamento".
"Não estamos preparados para enfrentar os casos mais complexos", diz, associando a duração da audiência do processo da Casa Pia ao que se passa actualmente no julgamento do BPN, "que decorre há meses e vai ainda na audição da sexta ou sétima das várias centenas de testemunhas".
Para que as coisas mudassem, diz Marinho Pinto, "era preciso que houvesse a humildade de reconhecer os erros e isso não acontece". "As coisas nunca se repetem exactamente da mesma maneira, mas tudo aquilo que entorpeceu o processo da Casa Pia continua a germinar nas grandes causas", acusa o bastonário, que recorre a um dito comum nos meios judiciais referindo que "as grandes causas nunca fizeram boa jurisprudência". "Aprendemos com os erros", admite Marinho Pinto.
"O que está em causa são interesses muito poderosos de parte a parte e toda a gente sabe que o processo nasceu para ajustes políticos com agentes do PS", comenta. Acrescenta "que toda a gente sabia há muito que havia pedofilia, mas nunca ninguém se importou". Cita "o caso do mestre relojoeiro da instituição que teve a coragem de fazer uma denúncia e foi alvo de um inquérito e sancionado pela então secretária de Estado, Teresa Costa Macedo".
Em abono da sua tese, lembra "que tudo era noticiado para além da verdade", a "promiscuidade entre o então director da PJ e alguns jornalistas" e "a chegada ao Parlamento do juiz de instrução com um mandado de detenção na mão e as televisões à espera". Também Rodrigo Santiago, que numa fase inicial chegou a defender um dos arguidos, não poupa o juiz Rui Teixeira. Acusa-o de "intrusismo abusivo que deturpou a investigação", ao ter avocado o processo que era do Ministério Público. Atribui as causas a "imaturidade e vontade de protagonismo", já que não vislumbra "motivos nem sinais que apontem para outras motivações".
Sem o citar, também Costa Andrade verbera "os casos chocantes de alguns agentes que se deixaram seduzir pelo mediatismo das primeiras páginas, substituindo o espaço próprio da Justiça pelo da publicidade e mediatismo". E não se tiraram ilações? "Não tenho razões para crer que isto irá melhorar. Não é crível que a atitude dos agentes tenha melhorado", analisa.