quarta-feira, 7 de março de 2007

Vamos pegar em moedas e fazer pontaria aos juízes*

Passaram dez anos desde a operação Mãos Limpas e tento recordar-me de como era a atmosfera geral naquela altura. Vêm-me à mente recorda­ções de grande exaltação popular. A multidão, e sem grandes distinções entre direita e esquerda, a multidão em geral (excepto aqueles que eram alvo de processos), estava satisfeita por ver finalmente revelados os segre­dos alheios, por se dizer em voz alta que este ou aquele tinha roubado, por ver no banco dos réus aqueles que por definição eram considerados intocáveis.
A atmosfera era bastante diferente da do 25 de Julho de 1943 (quando milhares e milhares de italianos, que tinham aclamado o Duce até ao dia anterior, treparam às estátuas que o representavam para as decapitarem, ou puxaram-nas com as cordas até as fazerem desabar); desta vez e todos os leitores se recordarão deste episódio a multidão aguardava junto aos antigos quartéis-generais, esperando a saída dos Poderosos para lhes arremessar moedas, gozando com popular sabedoria o ditado que diz que quem sobe muito alto, arrisca-se a cair precipitadamente. Nada disto nos deve admirar, porque se tratava apenas de uma mistura de saudável indignação popular e de gosto canalha pela humilhação do poderoso que perdeu. Tudo se enquadrava, por assim dizer, na norma histórica.
Hoje, a dez anos de distância, assistimos a um fenómeno estranho. O mais curioso não é que certas pessoas, que sempre se sentiram amea­çadas pelas investigações dos magistrados, tenham conseguido chegar ao governo com o objectivo de os controlar, e que tenham usado por sistema a arma da deslegitimação. Faz parte da ordem natural das coisas que acon­teçam coisas deste género: ao fim e ao cabo, o sonho de todo e qualquer acusado não se resume em provar a sua inocência, quer também demons­trar que quem o acusa o faz com um parti pris. O que agora chama a atenção é, acima de tudo, a opinião que se tem difundido, e que frequen­temente se manifesta apenas sob a forma de reticência, que a magistratura (que há dez anos foi de tal maneira aplaudida que as matrículas em Direito aumentaram de repente, e só faltou distribuir estampas à porta das igrejas com o juiz Di Pietro vestido de santo) exagerou um pouco, e que já está na altura de parar de nos chatear. E se as pessoas não dizem isto aberta­mente, acabam por votar em quem o diz.
Este sentimento é dificilmente explicável se pensarmos que vem de pessoas que estariam sempre prontas a condenar o director do hospital que é apanhado a aceitar um suborno. O que é que se passou, afinal? O que se passou, já eu denunciei há vários anos, mas fui energicamente varado por muitos dos meus virtuosos colegas, que se perguntavam como é que eu podia ser tão indulgente com os «mariolas». É que naquela altura os culpados (e até os presumidos culpados, que afinal eram inocentes) não só foram imediatamente processados, não só foram penalizados com prisões preventivas demasiado longas, como também foram expostos ao ridículo na televisão, em frente à nação inteira, presos às cadeiras e tra­tados como se fossem arguidos, ou, pior, como condenados, alguns deles com a baba a querer aparecer nos cantos da boca, outros que não conse­guiam controlar os movimentos nervosos das mãos, nas quais de bom grado teriam escondido a cara, enquanto eram gozados por procuradores sarcásticos.
Esta prática começara um pouco antes, com as transmissões feitas a partir de diversos tribunais de pequena instância do nosso país, onde os desgraçados que tinham assinado uma letra em branco eram humilhados perante milhões e milhões de espectadores e não basta dizermos que lhes tinha sido pedida autorização e que tinham aceitado ser filmados, porque também é preciso proteger os patetas da sua própria vaidade, da mesma maneira que é preciso proteger os suicidas (que, por definição, querem morrer) dos seus desejos. Das pequenas instâncias o espectáculo passou para os outros tribunais, os charlatães e os pobres diabos da pro­víncia deram lugar aos homens de poder, e mesmo antes de saberem se o réu era inocente ou culpado, as massas deliravam com a sua humilhação e desgraça televisiva. Era um procedimento errado, errado para quem estava inocente, e errado para quem era culpado, porque pagava mais do que aquilo que os Códigos prescrevem.

Com o passar dos anos, creio que foi o medo (e a vergonha) desta humilhação que afastou as pessoas comuns dos caminhos da justiça. Uma justiça que talvez tivesse agido bem, mas que na prática desencadeou mecanismos que um dia, quem sabe, poderiam apanhar-nos a nós, a mim, a ti, a ele... Este poder de exposição ao ridículo abriu caminho à ideia dos juízes como figuras suspeitas. Não seremos nós a desprovê-los da sua legitimidade, pensa agora o povo, mas se outros o fizerem, não somos nós que os vamos impedir. Como se dissessem: é melhor não darmos carros demasiado rápidos à polícia, porque amanhã podem vir atrás de nós.


* Umberto Eco, L'Espresso, Fevereiro de 2002 (texto inserido em A Passo de Caranguejo, Difel, p.189 e ss., recolha de intervenções e artigos escritos pelo autor entre 2000 e 2005).

1 comentário:

Luiz Henrique Merlin disse...

Belo texto. Excelente escolha.
Não o conhecia.
Não conhecia, aliás, este blog português. Muito interessante!

Vou recomendar a outros colegas brasileiros, estudiosos da área criminal.

Abraços