segunda-feira, 4 de setembro de 2006

Suficiência ou prevalência do processo penal - um comentário

Reiterando o aplauso à iniciativa de José António Barreiros de diálogo «blogosférico» sobre a revisão do Código de Processo Penal, já formulada aqui, aproveito para um comentário sobre a eventual definição normativa de uma prevalência do processo penal, suscitada por José António Barreiros neste postal.
Embora sensível ao factor perturbador de o mesmo Estado formular pronúncias aparentemente contraditórias sobre os mesmos factos em diferentes procedimentos (aqui não provado, ali provado), parece-me perniciosa a eventual fixação genérica de uma prevalência da «verdade» do processo penal.
Como referi aqui: «Aquela verdade judiciária embora seja a única relevante para o fim do concreto processo (por exemplo o exercício da pretensão punitiva do Estado por aquele facto quanto àquele arguido) é apenas uma verdade que nem sempre é a epistemicamente mais forte (nomeadamente porque o juízo judiciário é, ainda, essencialmente fundado nas formas de cognição comuns e muitas vezes por razões jurídico-políticas relacionadas com o fim do processo existir material informativo com valor epistémico que não poder ser utilizado)».
Se então estava a referir-me essencialmente à indagação de factos no processo penal e em procedimentos não judiciários parece-me que tal também é válido para diferentes procedimentos judiciários (por exemplo cíveis, administrativos, de menores e família, fiscais) que sejam apreciados por diferentes instâncias (judiciárias ou não judiciárias).
Os valores em colisão implicam que se deva questionar, categoria por categoria, «se a verdade judiciária, e em particular do processo penal, pode [ou deve] conviver com outras verdades», mas parece-me que quando a questão se suscite entre procedimentos que podem culminar em processos judiciais, as questões devem ser essencialmente ponderadas não em sede de suficiência do processo penal (em que as soluções são determinados pelos valores do processo penal) mas de adesão / separação de processos (em que se têm de equacionar os valores dos vários tipos de processo e a compatibilidade de um único julgamento).
De qualquer modo, propendo, acima de tudo, a considerar, tal como defendi anteriormente a propósito de outras dimensões do valor da «verdade» do processo penal e seus efeitos prejudiciais, que:

«A problematização deste tema e dos valores em colisão, bem como a redefinição política dos espaços de controvérsia social sobre factos que foram (estão a ser ou podem vir a ser) objecto de processos judiciais (em especial de processos penais), parece ser hoje uma exigência e será um bom sinal para a democracia que se superem tabus em nome da discussão racional.
A discussão na esfera pública dos valores em confronto constituirá mesmo uma exigência do Estado de direito, sob pena de tratamentos desiguais nesta matéria serem não propriamente fundados em variáveis objectivas e questões de princípio mas estritamente na competência de acção dos envolvidos».

PS- Refira-se que a expressão de um princípio de prevalência do processo penal constava da redacção do art. 180.º, nº 5, do CPenal revogada pela Lei 65/98, quando, relativamente ao crime de difamação, limitava a faculdade de prova da verdade do facto imputado que constituísse crime «à condenação por sentença transitada em julgado». Sempre discordei dessa excepção que limitava a liberdade de expressão responsável (já que condicionada pela demonstração da veracidade dos factos) relativamente a determinados factos pela mera circunstância de os mesmos serem tutelados como crime (ou seja eventualmente mais graves do que outros que já poderiam ser imputados com lesão da honra do visado). Embora conexa com o objecto deste postal esta questão, contudo, suscita outros problemas, se calhar muito ligados à nossa cultura nacional e não compatíveis com este mero comentário (que aliás já vai demasiado longo).

O meu eucalipto e o CPP...

Deixem-me contar-vos a pequena história do meu eucalipto, quase centenário.
Era uma árvore frondosa e cheia de viço, estendendo as suas raízes longamente em busca de água, que sorvia que nem um desalmado. Um dia, veio uma nova estrada – a “Correcção da Rua O” – e cortou-lhe uma parte substancial do seu abastecimento no sopé da colina.
Alguns ramos principiaram a secar, a casca do tronco começou a soltar-se com mais pressa e não fôra a intervenção urgente dos “Cirurgiões das Árvores” – firma do Porto com um excelente “cirurgião” – e o seu fim teria sido rápido.
Mau grado aquela intervenção de há cerca de cinco anos, inopinadamente no cume abrasador de Agosto uma pernada soltou-se lá do cocuruto e ficou suspensa a baloiçar a baloiçar sobre o caminho de acesso à habitação e os fios do telefone.
Pedido de apoio urgente à Protecção Civil e no mesmo dia apareceram dois bombeiros e um Chefe, que levaram um quarto de hora a descrever os equipamentos necessários para remover a pernada, os que tinham mas não funcionavam e os que precisavam mas não tinham. Considerei-me elucidado, e descalço de verba para filantropicamente remediar a situação, despedimo-nos sob o olhar vigilante da pernada – qual espada de Dâmocles suspensa sobre as nossas cabeças (as nossas e não as dos bombeiros que entretanto se haviam recolhido de sirene calada).
Lembrei-me logo dos “cirurgiões”...mas estavam de férias ( mal se falava ainda das férias às horas extraordinárias nos hospitais).
Restava-me a Câmara Municipal: usando o correio electrónico e o telefone, quando já desesperava e três dias eram passados, eis que vem uma resposta. Não devia fazer “reply” mas que telefonasse para um número que se indicava – quase à 007. Depois de um exercício mental de conjugação de horários administrativos, à quarta vez atingi o alvo e fui encaminhado para a área dos Espaços Verdes: metia-se o fim-de-semana e só na segunda-feira teria notícias.
Apesar do vento que engrossara, a pernada aguentava-se galhardamente e até o eucalipto esboçou um sorriso com uns pingos de chuva que caíram.
Finalmente a mensagem chegara aos Espaços Verdes, o contacto funcionou ao inverso, da Administração para o cidadão, e no dia seguinte a máquina com suporte e ascensor, em vinte minutos arreou a pernada. O eucalipto soltou um uf! aliviado e os fios do telefone e da Internet continuaram incólumes.
Punha-se o magno problema de saber como era possível ter-se soltado a pernada – estaria podre, o que era de mau agoiro para o centenário e já se pensava como abatê-lo com o mínimo de mossa. Mas não, a madeira está sadia ...o que leva a pensar que ainda podemos desfrutar do eucalipto se cuidarmos de lhe dar água com mais abundância e podá-lo dos ramos secos.

Moral da história: os códigos, tal como as árvores, não se podem deitar abaixo de qualquer maneira. Houve umas pernadas que se soltaram – especialmente depois de uns ventos fortes se terem abatido sobre certos processos e uns senhores terem profetizado as três questões essenciais para rever (ou reformar, ao tempo ainda não se punha a delicada questão). Por isso, há que arrear as pernadas e cuidar do eucalipto...por dentro, diria eu, e com aqueles que tratam das árvores todos os dias.
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De um momento para o outro vejo que a este blog chegou uma nova lufada. Ainda bem.

ACABADAS AS ENCURTADAS FÉRIAS JUDICIAIS

Acabadas as encurtadas ferias judiciais deste ano, sucedem-se divergentes declarações sobre se, com tal medida, aumentou, não aumentou, ou mesmo se diminuiu a produtividade do sistema de justiça. Não se esclarece, contudo, o que se entende por produtividade do sistema de justiça e, consequentemente, quais os critérios para a sua medição, sendo, contudo, notório, e significativo, que a confiança no êxito da medida se revela fraca mesmo por banda dos que a decidiram.
Uma medida populista que, para além de não ter resolvido nenhum dos verdadeiros problemas com que se debate o sistema, contribuiu para os iludir e, consequentemente, atrasar o caminho da efectiva resolução das questões de morosidade e de eficácia, mas também do acesso ao direito e da qualidade da justiça.
A organização do trabalho, e dos seus tempos, é, na realidade, um dos aspectos que terá de ser considerado numa reponderação do funcionamento do sistema de justiça, constituindo a sua consideração, por si só, uma relevante alteração de atitude e de mentalidade. Mas, para além do primarismo com que foi até agora tratado, é indissociável de, pelo menos, outros dois debates, e reformas, que estão anunciados – os que respeitam ao mapa judiciário e à formação (sendo o ingresso na magistratura e a formação inicial apenas uma, cada vez mais, pequena parcela do problema). Sob pena de se poder estar a contribuir para o aumento da desordem do sistema e, seguramente, de nada se estar a fazer para a melhoria da sua oferta e da qualidade das respostas.

Projecto do CPP: suficiência ou prevalência?

Duas histórias reais, a justificarem uma proposta.

Primeira, uma história alegre: um funcionário público foi arguido num processo-crime e num processo disciplinar, essencialmente pelos mesmos factos. Teve a sorte de o ministro a quem foi proposta a sua demissão, ter feito «veto de gaveta». O funcionário foi absolvido do processo-crime e o ministro, ante tal ilibação, mandou aquivar o processo disciplinar.
Agora uma história triste, a de um outro funcionário arguido também num processo-crime e num processo disciplinar, também pelos mesmos factos. Desta feita, o ministro queria mostrar zelo e pulso e demitiu-o vertiginosamente. Quando foi absolvido do processo-crime, o funcionário demitido tentou a via que lhe restava, o recurso extraordinário de revisão administrativa da sanção disiciplinar. Em vão, pois os tribunais administrativos entenderam, em primeira instância e em recurso que os critérios de apreciação da responsabilidade penal e disciplinar são diferentes, por isso a absolvição penal era irrelevante para o efeito.
É claro que diz a Constituição que as decisões dos tribunais prevalecem sobre as de todas as outras autoridades. É o n.º 2 do artigo 205º da Lei Fundamental: «as decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades.» No caso destas duas histórias, fiquei com a ideia contrária, talvez por não saber ler: uma pessoa corre o risco de ser demitida e absolvida porque se provou disciplinarmente que um facto aconteceu e se provou criminalmente que não aconteceu. É a unidade do sistema jurídico e a segurança jurídica, na sua melhor expressão.
Vem a isto a propósito de haver um artigo 7º do CPP onde se estatui o princípio da suficiência do processo penal e que esta reforma deixou intocado. Não comento essa opção. Pergunto-me é se não faria sentido [talvez no quadro de uma reforma do processo penal] e precisamente por causa daquela regra constitucional, prever o princípio da prevalência do processo penal em termos de fazer sustar até ao trânsito em julgado da decisão penal qualquer outro procedimento disciplinar que tenha como fundamento os mesmos factos. Dir-me-ão que, a ser assim, até lá, a esse momento longínquo do trânsito, a função pública ficava onerada com funcionários arguidos penalmente, pronunciados mesmo, mas insusceptíveis de serem suspensos. Não digo tanto, digo apenas que se evite o irremediável da decisão punitiva final, mormente a demissão ou aposentação compulsiva, antes do trânsito penal.
E já agora, pergunto se não causa arrepio ao sentido juridico de cada um ver num processo penal inquéritos disciplinares, autos de sindicâncias, relatórios de inspecção, tudo a concluir, por mão administrativa, como é que sucederam certos factos, quase como que a (im) pressionarem o juiz penal a quem cabe, aparentemente, a decisão fundamental, a prevalente, sobre tal matéria?
P. S. Para aqueles para quem o processo é apenas um fólio de papéis secos: no caso da história alegre, o funcionário, absolvido criminalmente e disciplinarmente ilibado, morreu pouco tempo depois. Assisti à sua decadência, como passou da esperança à indiferença. Ainda hoje quando penso nisso me causa engulhos. Quanto ao outro, aprendeu a odiar a função pública e os tribunais.