Por António Cluny, publicado em 19
Mar 2013 - Informação
Nada me tinha preparado para a abertura de espírito, a
liberdade de discurso e a vontade de promover efectivas mudanças a que assisti
na Argentina
Há
três semanas, recebi um convite da procuradora-geral da nação e da defensora
pública da Argentina para participar, enquanto presidente da MEDEL, num urgente
debate público intitulado “Uma justiça legítima”.
Não foi, naturalmente, a primeira vez que cooperei em debates
destinados a pensar e propor reformas na justiça.
Recordo, com saudade, o “Congresso da Justiça”, patrocinado pelo
Presidente Jorge Sampaio, cuja iniciativa coube - é justo salientar - ao
bastonário José Miguel Júdice e que contou com o entusiasmo do sindicato do MP
e, entre outras, com a colaboração efectiva da associação dos juízes.
Recordo também, naturalmente, a solidez teórica e a vivacidade dos
debates nas conferências das magistraturas italiana e francesa e dos congressos
dos juízes e procuradores alemães e espanhóis.
Nada, porém, me tinha preparado para a abertura de espírito, a
liberdade de discurso e a vontade de promover efectivas mudanças a que assisti
na Argentina.
Ao longo de dois dias, perante uma assistência que terá atingido
duas mil pessoas - juízes, MP, defensores públicos, advogados, académicos,
universitários, sociólogos, economistas, jornalistas, estudantes -, foi
possível ouvir algumas das ideias mais inovadoras, análises agudas e críticas
mais genuínas ao funcionamento do sistema de justiça e ao papel que ele
desempenha - e pode desempenhar.
A preocupação com uma certa “eficácia da justiça” dirigida,
sobretudo, à salvaguarda dos interesses económicos e financeiros, que tanto
preocupa os poderes institucionais da Europa de hoje, não teve, é certo, neste
debate argentino, uma grande centralidade. Não.
A preocupação geral centrou-se na capacidade que a justiça
argentina tem - ou não tem - para fazer valer a Constituição e as leis aprovadas
no parlamento, tendo em vista reforçar a soberania do povo argentino e os
direitos dos cidadãos.
A perspectiva dos problemas da justiça ali abordada emanou,
sobretudo, da necessidade de a dotar de uma cultura e de meios, visando vencer
o atávico conformismo que a tem levado, sempre, a resguardar os interesses
económicos e sociais mais poderosos - aqueles que conseguem sobrepor-se às
constituições e leis democraticamente aprovadas - em vez de dar voz aos
direitos da cidadania e à soberania da nação.
Falou-se muito, pois, na necessidade de transparência nas
prioridades processuais e nas agendas dos órgãos judiciais.
Discutiu-se a necessidade de criar mecanismos facilitadores de
acesso de todos os cidadãos à justiça e de esta conferir, como lhe compete, efectiva
dignidade aos problemas que eles querem ver resolvidos nos termos das leis da
república.
Defendeu-se a necessidade de criar verdadeiros concursos
republicanos para o preenchimento dos lugares da jurisdição e do MP, e de estes
poderem decorrer sob o controlo efectivo daqueles em nome de quem a justiça é
exercida: os cidadãos e os seus representantes.
Falou-se de ruptura e de uma reinvenção da justiça: da composição
e dos métodos de eleição dos seus órgãos próprios de governo, bem como da
criação de novos instrumentos e órgãos de jurisdição libertos dos “freios” que
impedem a resolução dos processos mais significativos para o povo argentino.
Reivindicou-se, enfim, uma independência que se não limite aos
poderes institucionais, mas que tenha em conta a influência dos não menos
poderosos poderes fácticos: os interesses económicos supranacionais, a finança
e os media que deles dependem.
Correram-se riscos, mas falou-se de independência - da verdadeira.
Jurista e presidente da MEDEL