FRANCISCO
TEIXEIRA DA MOTA
"É próprio da vida em sociedade haver alguma
conflitualidade entre as pessoas. Há frequentemente desavenças, lesões de
interesses alheios, etc., que provocam animosidade. E é normal que essa
animosidade tenha expressão ao nível da linguagem. Uma pessoa que se sente
incomodada por outra pode compreensivelmente manifestar o seu descontentamento
através de palavras azedas, acintosas ou agressivas. E o direito não pode
intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do
visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades
morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se
sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse a vida em sociedade seria
impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz
social, que é a sua função.".
A citação é de uma decisão do Tribunal da Relação do Porto e foi
lembrada no dia 18 pelo Tribunal da Relação de Guimarães num curioso processo
em que o tribunal da 1.ª instância decretou ser crime a falta de
"respeitinho" pelas autoridades.
Pouco passava da uma e meia da manhã quando a GNR de Fafe foi
chamada para pôr termo a uma "alteração da ordem pública" à saída de
um bar. Como estava lá muita gente, deslocaram-se primeiro dois guardas a que
se somaram mais quatro que a gente era muita. Verdade seja dita que era mais o
barulho que outra coisa... A certa altura, um dos militares da GNR, de seu nome
Abílio, dirigiu-se ao João, um dos exaltados, aconselhando-o a ter controlo e a
acalmar-se, ao que aquele lhe respondeu: "Eu falo como eu quiser! Eu
conheço os meus direitos! Eu tenho um tio que é cabo da Guarda Nacional
Republicana e vou já ligar com ele!" Simultaneamente, o Roberto, outro dos
exaltados, dirigindo-se a um outro guarda, disse-lhe "bate-me, anda lá,
bate-me. Eu sei que vocês não podem fazer nada". Os guardas da GNR,
incomodados com estas invectivas e por estar um grande número de pessoas no
local, pediram ao Roberto que se deslocasse até junto da viatura policial para
o poderem identificar. Quando lá chegou, o Roberto caiu no chão, simulando uma
agressão e imputando-a a todos os militares que se encontravam no local, ao
mesmo tempo que batia num gradeamento que existia no local e gritava que os
militares o estavam a agredir. Acto contínuo, o arguido João, referindo-se a
todos os militares presentes no local, afirmou bem alto: "Já um guarda
teve um processo e teve de pagar uma indemnização! Eu tenho gravagens! Eu tenho
gravagens."
Levados a julgamento, João e Roberto foram condenados pelo
Tribunal de Fafe como autores de crimes de difamação agravada numa pena de
multa de 3500€ cada um. Para este tribunal, tanto o João como Roberto bem
sabiam que as expressões referidas eram "ofensivas da honra e consideração
dos agentes da GNR" e revelavam "o propósito de violar tais valores
dos mesmos, sabendo assim adoptar conduta proibida por lei".
Insatisfeitos com esta nova modalidade da justiça de Fafe,
recorreram os dois para o Tribunal da Relação de Guimarães. Aí o assunto foi
analisado com mais ponderação nas palavras da juíza desembargadora Lígia
Moreira : "As expressões em causa são proferidas aquando de acção de
agentes da GNR, 2 agentes chamados por alteração da ordem, a um bar, entretanto
reforçados, para um total de 6 agentes que se propõem aconselhar a ter controlo
e a acalmar e a fazer identificações; encontrando-se de um lado, o João e o
Roberto "alterados" e, do outro, aqueles agentes
"experimentados" neste tipo de situações." E acrescentou o
Tribunal da Relação: "Não são, obviamente, expressões que traduzam uma
postura pacífica, acomodada e simpática. Antes traduzem uma postura
conflituosa, reivindicativa, com animosidade, acintosa até."
Mas seriam crime?
Respondeu o tribunal de recurso: "Declarar que se fala como
se quiser, que se conhecem os nossos direitos, que se tem um tio cabo da GNR e
se vai ligar ao mesmo, e que já um guarda teve um processo e se têm
"gravagens" (gravações?!) objectivamente, não afecta relevantemente,
a honra ou a consideração" de agentes da GNR.
E quanto ao Roberto? Esclareceu sensatamente a Relação de
Guimarães que este exaltado só tinha dito "bate-me, bate-me, eu sei que
vocês não podem fazer nada", sendo certo que a posterior "simulação
de que era agredido", se em si mesma já se configurava pouco convincente e
significativa - se se auto-agredia contra um gradeamento, os presentes no local
facilmente o desmascaravam -, desacompanhada de qualquer outro acto ou
afirmação que relevantemente afectasse o "núcleo essencial das qualidades
morais dos agentes", não tinha "a virtualidade de preencher tipo
legal de crime". E João e Roberto foram absolvidos, deixando de pertencer
ao mundo do crime em que tinham sido lançados pelo Tribunal de Fafe. Para bem
deles, nosso e das estatísticas!
Advogado. Escreve à
sexta-feira ftmota@netcabo.pt