tráfico de estupefacientes - métodos
proibidos de prova - agente provocador - escutas telefónicas - cooperação
judiciária internacional em matéria penal - competência internacional - medida
da pena
(1) - Como se sabe, os recursos não servem para discutir questões novas,
isto é, as questões que não foram invocadas perante o tribunal recorrido, pois
os recursos são remédios jurídicos que se destinam a despistar e corrigir erros
“in judicando” ou “in procedendo” desse tribunal e não constituem novos
julgamentos, cuja finalidade fosse a de apurar matéria anteriormente não
considerada.
(2) - Todavia, a doutrina e a jurisprudência têm entendido que as provas
produzidas pela intervenção do agente provocador são provas obtidas com o uso
de um método proibido, já que são enganosas e, como tal, ofensivas da
integridade moral das pessoas, mesmo que com consentimento delas (cf. art.º
126.º, n.ºs 1 e 2-a, do CPP).
(3) - Por isso, como as provas adquiridas por esse método são nulas e não
podem ser usadas no processo, a invocação pelo arguido condenado de que, contra
si, foram usados métodos proibidos de prova deve ser decidida pelo tribunal de
recurso, ainda que se trate de questão nova, pois da resposta que for dada irá
depender a validade da matéria de facto estabelecida através de tal uso
indevido e ilegal. Isto é, a nulidade das provas que decorre do uso de métodos
proibidos pode e deve ser conhecida a qualquer tempo.
(4) - Contudo, há que ressalvar que no recurso de revista perante o STJ,
este Tribunal tem exclusivamente poderes de cognição em matéria de direito
(art.º 434.º do CPP), como já dissemos. Ora,
pelos factos provados, o arguido X não foi um «agente provocador» e essa é a
matéria de facto que o STJ tem de levar em conta, pois é a que já está definitivamente
assente no processo.
(5) - O recorrente invoca que as
escutas telefónicas que foram autorizadas pelo TCIC de Lisboa ao seu número de
telefone com um número de uma operadora espanhola estão feridas de nulidade,
pois que se trata de um telefone espanhol, com utilização e faturação
sedeadas em Espanha e que, portanto, o Tribunal Central de Instrução Criminal
de Lisboa é territorialmente incompetente para autorizar as respetivas escutas,
as quais apenas poderiam ser legalmente autorizadas na sequência da
formalização de um pedido de auxílio judiciário internacional, designadamente,
por aplicação do disposto nos artigos 17° a 20° da Convenção Relativa ao
Auxílio Mútuo em Matéria Penal entre os Estados Membros da União Europeia,
concluída em 2000. Assim, as chamadas
efetuadas de e para o telefone em causa devem ser declaradas sem qualquer valor
probatório, nos termos do disposto art.º 126.º, n.º 3, do CPP.
(6) - Contudo, todas as escutas feitas nos autos foram autorizadas por um
Juiz de Instrução, nos termos do art.º 187.º do CPP. O que o recorrente
contesta é a competência desse Juiz, não em razão do território, como diz, mas
do espaço de soberania dos tribunais portugueses, pois que a sua alegação é a
de que o ato foi praticado fora dele e sem apoio de tratado, convenção ou regra
internacional (cf. art.º 6.º). A incompetência do juiz seria, nesse caso,
absoluta.
(7) - Mas, em primeiro lugar, não foi ordenada nos autos nem foi feita a
interceção ao telefone do recorrente com o número de uma operadora espanhola,
caso em que teria de ser pedida a cooperação internacional em matéria penal,
pois tal interceção só seria possível com a colaboração da dita operadora
espanhola.
(8) - O que sucedeu foi que, estando sob interceção os telefones de
operadoras portuguesas pertencentes a outros coarguidos, nestes foram feitas
chamadas para o telefone do recorrente ou recebidas chamadas que este lhes fez
e, portanto, a interceção foi autorizada e pedida a operadoras telefónicas
portuguesas. O referido telefone do recorrente, de uma operadora espanhola, não
foi “alvo” das escutas ordenadas e autorizadas, como se pode ver pelo quadro de
fls. 5470, embora as conversas que aquele fez com aquele telefone para os
“alvos” das interceções autorizadas a outros telefones tenham sido,
fortuitamente, objeto de escuta.
(9) - Nestes casos, portanto,
a escuta, em território nacional, faz-se através e pelos meios da
operadora portuguesa para quem o usuário do telefone estrangeiro (neste caso, o
recorrente) fez transferir a chamada ou através da operadora nacional que fez
transferir a chamada proveniente do território nacional para um telefone de uma
operadora estrangeira.
(10) - Isto é: as escutas
foram efetuadas através da operadora nacional e foi através desta que a
interceção foi feita, ainda que o posto telefónico fortuitamente escutado integrasse
uma rede estrangeira e estivesse posicionado, no momento da escuta fortuita,
fora do território nacional. Para a validade das interceções telefónicas é
irrelevante onde se encontra o interlocutor do telefone sob escuta, em Portugal
ou no estrangeiro, pois o que importa é que este integre a rede nacional de
telecomunicações áudio.
(11) - A violação da soberania
por atos de processo penal praticados fora do território nacional só existiria
se as escutas fossem feitas, ou por aparelhos montados fora do espaço português,
ou com o recurso a uma operadora estrangeira, sem o “roaming” da operadora nacional,
o que não foi o caso.
(12) - Dos
factos provados resulta que o recorrente foi o coordenador e responsável, no terreno,
pela operação de transporte de cerca de 2000 kg de haxixe (resina de canábis,
com um grau de pureza que variava entre 1,9% e 8,4%), de Marrocos para
Portugal, por via marítima, produto esse que, em parte, se destinava a ser
transportado por via terrestre para Espanha e, na outra parte, para ser
entregue ao coarguido Y, ficando este com a responsabilidade de providenciar
pelo transporte para França ou Itália.
(13) - O
recorrente forneceu a embarcação que foi a Marrocos buscar os fardos de haxixe
e que os trouxe para Portugal e, em geral, coordenou as operações de
recrutamento do pessoal e dos meios, dando o seu aval ao “aluguer” das chatas
que, junto à costa portuguesa, foram buscar os fardos à referida embarcação e
os transportaram para a praia, bem como, depois, ao transporte terrestre e ao
armazenamento provisório da droga, antes de seguir para os destinos combinados.
(14) - Contudo,
não está provado que o recorrente fosse o dono do negócio, mas antes um
“homem-de-mão”, com especiais responsabilidades de coordenação.
(15) - Há que
ter em atenção a grande quantidade de droga em causa e, portanto, a especial
censurabilidade da conduta, todavia não considerada agravada pelas instâncias
nos termos do art.º 24.º do DL 15/93. Mas, também, há que reconhecer que o
haxixe faz parte das drogas com menor potencial de dano para a saúde dos
consumidores.
(16) - Estamos,
portanto, face a uma ilicitude que, no quadro do tráfico comum, está muito
acima da média, tal como a culpa do agente se situa num patamar muito elevado.
(17) - A favor do recorrente colhe o facto de não ter antecedentes
criminais, de ter confessado parcialmente os factos, de ter uma situação de
vida estável junto da família e de desenvolver atividades diversificadas
ligadas ao setor de turismo e de exploração dos espaços recreativos do hotel do
cônjuge.
(18) - Tendo em atenção as elevadas exigências de prevenção geral e o
intenso grau de culpa evidenciado, mas também a primariedade penal do
recorrente, sem descurar as razões de justiça relativa quanto às penas
aplicadas aos coarguidos, mantém-se a pena em 9 (nove) anos de prisão e,
portanto, o recurso improcede.
AcSTJ de 5 de julho de 2012, Proc. n.º 911/10.5TBOLH.E1.S, Relator: Conselheiro Santos Carvalho
Acção cível conexa com a criminal - pedido de indemnização civil - admissibilidade
de recurso - dupla conforme
(1) - Nos termos do art.º
721º, nº 1, referido ao art.º 691.º, n.º 1, do CPC, na versão resultante do DL
nº 303/2007, de 24 de agosto, cabe recurso de revista para o Supremo Tribunal
de Justiça do acórdão da Relação que tenha incidido sobre uma decisão de 1ª instância
que tenha posto termo ao processo. Mas, de acordo com a norma do nº 3 do
primeiro destes preceitos, «não é admitida revista do acórdão da Relação que
confirme, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a decisão
proferida na 1ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte».
(2) - Este n.º 3 do art.º
721.º do CPC é aplicável ao processo penal. Se o legislador do CPP quis
consagrar a solução de serem as mesmas as possibilidades de recurso, quanto à
indemnização civil, no processo penal e em processo civil, há que daí tirar as
devidas consequências, concluindo-se que uma norma processual civil, como a do
n.º 3 do art.º 721.º do CPC, que condiciona, nesta matéria, o recurso dos
acórdãos da Relação, nada se dizendo sobre o assunto no CPP, é aplicável ao
processo penal, havendo neste, em relação a ela, caso omisso e a sua aplicação
não afeta a unidade do sistema.
(3)
- No caso do acórdão recorrido, ora em apreço, a Relação confirmou os montantes
dos danos patrimoniais e dos danos não patrimoniais que a 1ª instância fixara,
pois apenas acrescentou aos primeiros a quantia de €
165,92. Nesta situação, o acórdão recorrido constitui dupla conforme para a
demandante e é, portanto, irrecorrível para ela. Na verdade, se a demandante
não tivesse logrado qualquer vencimento no recurso, não haveria revista para o
STJ; por isso, não tem sentido ter direito a tal recurso de revista no caso de haver
logrado algum vencimento no recurso para a Relação.
(4) - É evidente
que a decisão da Relação, no presente caso, seria recorrível para os demandados,
caso tivessem querido interpor recurso de revista para eventual correção do
valor da indemnização, pois, em relação aos mesmos, não foi confirmado o valor
indemnizatório e ficaram mais prejudicados do que já estavam com a decisão da
1ª instância.
(5) - Por isso,
pode dizer-se que a decisão da Relação que confirma total e irrestritamente a
que foi proferida na 1ª instância é irrecorrível para ambas as partes. Mas a
decisão da Relação que confirma parcialmente a da 1ª instância, pode ser
irrecorrível para a parte que foi beneficiada (o demandante que obteve mais do
que o fixado na 1ª instância, ou o demandado que foi condenado em menos), mas
pode ser recorrível para a outra parte que foi prejudicada.
Ac. do STJ de 5 de julho de 2012, Proc. n.º 696/03.1PAVCD.P1.S1, Relator:
Conselheiro Santos Carvalho