Público
- PAULO RANGEL
19/02/2013 - 00:00
Não
se pode dar por previamente interpretada a norma que afinal se quer agora
interpretar
4. Uma advertência intercalar
O tema da limitação de mandatos autárquicos permanece sob as
luzes da ribalta. Antes mesmo de prosseguir com o prometido argumentário - que,
de resto, não se esgotará por hoje -, justifica-se fazer um ponto de ordem. As
diferentes tomadas de posição e a suposta discussão que lhes subjaz, na maior
parte dos casos, enfermam do vício da petição de princípio ou denunciam um
raciocínio tautológico. E, por isso, é absolutamente essencial prevenir e
precaver o maior dos riscos neste debate: dar por interpretada (a priori)
a norma que justamente se visa interpretar!
Eis um cuidado que vale tanto para as normas que integram a
chamada lei de limitação de mandatos como para as normas constitucionais
pertinentes. Com efeito, não falta agora quem tenha subido um degrau e haja
transferido o juízo apriorístico para o patamar da Constituição. E as juras de
certeza antecipada que antes eram feitas a propósito da lei são agora
produzidas, com idêntica profissão de fé, a respeito da Constituição. Importa,
pois, seja no plano da lei, seja no plano da Constituição, nunca esquecer um
princípio hermenêutico fundamental: não se pode dar por previamente interpretada
a norma que afinal se quer agora interpretar.
5. O argumento administrativo (ou da
"natureza autárquica" do mandato)
Quando se olha para a querela em volta da lei da limitação de
mandatos autárquicos, parece esquecer-se, com demasiada leveza, o adjectivo
"autárquicos". Na realidade, concentra-se grande atenção no
substantivo "limitação" e porventura mais atenção ainda no conceito
de "mandatos". Mas deixam-se no olvido as implicações próprias do
carácter autárquico dos mandatos em causa.
Os mandatos autárquicos não podem, pura e simplesmente, ser
tratados como os mandatos nacionais. Com efeito, os mandatos autárquicos são,
por natureza, "desdobráveis" ou "replicáveis" em centenas
ou milhares de unidades estanques no território nacional. E são, por
conseguinte, os únicos mandatos a propósito dos quais se pode colocar a questão
da permissão ou da proibição da "mobilidade territorial".
Já nos mandatos de alcance nacional, pela própria essência das
coisas, essa questão não se põe nem pode pôr-se. Basta pensar na limitação
existente para o Presidente da República, para logo ver as diferenças. No caso
do Presidente, não subsiste a hipótese de, exercidos dois mandatos, se lançar
uma candidatura a novo mandato numa outra circunscrição, pelo que a questão nem
sequer se abre. Mas no caso dos presidentes dos executivos autárquicos, porque
existe a possibilidade de tentar um mandato numa outra circunscrição, não
podemos deixar de nos interrogar sobre o verdadeiro alcance da limitação. Será
simplesmente a interdição de desempenho de mais de três mandatos numa concreta
e dada autarquia ou será mesmo a interdição absoluta de exercício de mais de
três mandatos?
Não faz sentido imprimir uma carga mística ao conceito de
mandato autárquico, plasmado na Constituição ou na lei, ligando-o
umbilicalmente a um certo território. As funções de presidente de câmara e de
presidente de junta podem, por natureza, ser desenvolvidas em territórios
diversos. Porque cientes desta possibilidade de exercício de mandatos
sucessivos em mais do que um território, não pode à partida excluir-se que a
Constituição e a lei não acolham realmente uma proibição absoluta. Há-de ser
justamente por referência à ratio
essendi da lei e até da
Constituição e não por um qualquer apriorismo ou dado prévio que deve ser
encontrada uma solução.
6. O argumento da discriminação
Muitos são aqueles que têm visto no estabelecimento da limitação
dos mandatos (seja absoluta, seja territorial) uma injusta discriminação dos
autarcas (melhor, dos presidentes de executivos autárquicos). E que dizem até
que a discriminação será tanto maior quanto mais "absoluto" for o
sentido da interpretação.
Em primeiro lugar, perguntam porque não existe uma limitação
idêntica para os restantes presidentes de executivos, designadamente o
primeiro-ministro e os presidentes de governos regionais. Lembre-se, aliás, que
o I Governo Sócrates queria estender o princípio da limitação dos mandatos à
chefia de todos os órgãos executivos e que foi essa, de resto, a grande
controvérsia que dominou as negociações, a discussão e a aprovação da actual
lei. Como à época, deixei escrito em declaração de voto e decorre do que acima
se disse, não há qualquer semelhança entre os dois tipos de cargos. A chefia de
governos não configura um mandato, porque não corresponde a um cargo electivo.
A legitimidade destes cargos é indirecta, a sua continuidade em funções depende
dos respectivos parlamentos e, em certas circunstâncias, podem até do chefe de
Estado. Não intercede por isso qualquer analogia ou similitude que confira verosimilhança
à alegação de discriminação.
Em segundo lugar, e com mais veemência até, insurgem-se contra a
inexistência de limitação dos mandatos dos deputados. Nada tenho a opor à
limitação de mandatos dos diferentes cargos políticos - aí incluídos os deputados
-, mas deve encarecer-se que a teoria política, desde os seus alvores, sempre
se focou no risco de perpetuação do poder executivo, em particular daquele
poder executivo que goza de legitimidade eleitoral directa. É justamente nesse
campo que mais se faz sentir a necessidade de renovação e que, mostra a
experiência, mais são de temer a inércia da rotina, o risco de promiscuidade ou
até os abusos.
Embora sabendo que há diferenças a considerar, sempre será de
perguntar: se tal limitação fosse instituída, aceitar-se-ia que um deputado,
consecutivamente eleito, durante três mandatos, pelo círculo de Bragança,
pudesse candidatar-se a um quarto mandato nas listas de Vila Real? Ora, aí está
um bom teste para os defensores da mobilidade territorial...
Eurodeputado (PSD). Escreve
à terça-feira paulo.rangel@europarl.europa.eu