quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Trindade Coelho e o direito (III)

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Sabugal era a melhor comarca de 3ª classe; mas era quase uma aldeia, na Beira; e Camilo disse-me numa carta que escreveu para lá que «receava que eu me fizesse ali um reinícola pavoroso»; – e em menos de um mês estava transferido para Portalegre, que era já uma pequena mas linda cidade, capital de distrito, no Alentejo.
Em Portalegre estive 4 anos – e esses 4 anos davam um livro! Alegre? Triste? Nem eu sei!
A terra era muito política (no pior sentido desta má e feia palavra!) – e o partido que estava no governo começou logo a embirrar comigo, porque eu, no exercício do meu cargo, cortava a direito sem querer saber de política nem de políticos...
Vi-me doido com eles, mas eles viram-se também doidos comigo e não levaram nunca a melhor, porque demais a mais o poder judicial confirmava inalteravelmente todos os meus actos – o que mais enfurecia contra mim os tais políticos...
Deram-se episódios engraçadíssimos, de um cómico de «comédia de província», e a luta foi renhida de parte a parte, porque eu não transigia nem transigi; e isto deu-me tal força na opinião pública (o povo é sempre justo) que o governo nunca se atreveu a transferir-me, não obstante os reiterados e insistentes esforços que para isso faziam os mandões locais: – e uma vez que eu próprio requeri ao governo a minha transferência, recebi um telegrama do Procurador-Geral da Coroa (o chefe superior do Ministério Público) a chamar-me a Lisboa, e chamava-me para me pedir que retirasse o meu requerimento, porque a minha saída de Portalegre (dizia ele) seria regozijo para os políticos, e ele próprio desejava manter ali a minha autoridade e que os políticos se convencessem de que tinha a absoluta confiança dos meus superiores hierárquicos.
Ainda me lembro que ao ver-me diante dele, que me não conhecia pessoalmente, o Procurador-Geral da Coroa duvidou de que fosse eu, quase criança, o delegado de Portalegre:
– O meu delegado de Portalegre?! Não pode ser! O meu delegado de Portalegre há-de ser um homem alto e de barbas!
Era a lenda dos meus 4 anos de luta...
Mas não houve distinção que me não fizessem os meus superiores (Procurador-Geral da Coroa e Procurador Régio: aquele, falecido; este, hoje, juiz do Supremo Tribunal de Justiça); e logo me disseram que me queriam em Lisboa, e que eles mesmos promoveriam para ali a minha transferência, porque me queriam ao pé deles e «em Portalegre ganhava pouco».
Ganhava. O meu pobre ordenado eram 11 mil réis por mês (pouco mais de 50 francos) – e com eles vivi, e cheguei muitas vezes a não ter que comer, mas ninguém o sabia...
Ali, em Portalegre, resgatei de um erro de justiça um desgraçado que encontrei na cadeia, condenado por assassino e ladrão. É o Manuel Maçores dos Meus Amores – mas o nome dele era Manuel Barradas; e isso foi uma agonia de mais de um ano, em que eu não pensei noutra coisa de dia e de noite, até que o libertei!
Isso, porém, hei-de contar-lho um dia, mademoiselle Louise, porque eu ainda hoje não penso nessa tragédia a sangue-frio – e o próprio conto Manuel Maçores só anos depois o pude escrever – e nele não há a menor alusão a essa tragédia, que foi o meu trabalho angustioso durante muito tempo, para desfazer a lúgubre trama...
Essa é a única coisa que eu vim fazer a este mundo, e por contente me dou de ter cá vindo...

Trindade Coelho, «Autobiografia», in Os Meus Amores