I -
Resulta do mandado de detenção europeu em análise que o requerido “foi declarado objeto de uma Ordem de
Restrição para Crimes de Natureza Sexual no dia 21 de junho de 2006”, (…), “foi
classificado como criminoso sexual registado e com alto risco de reincidência”
(…) e “Nos termos do art.º 86.º da Lei 2003 relativa a Crimes de Natureza Sexual
(Sexual Offences Act 2003), um criminoso sexual registado tem de revelar à
polícia a data em que sairá do Reino Unido, o país para onde tenciona viajar e
toda a outra informação estipulada pelos Regulamentos antes da data em que
tenciona viajar. A informação estipulada está contida no Regulamento 5 da Lei
de 2003 relativa a Crimes de Natureza Sexual (Sexual Offences Act 2003)
(Exigências de Notificação de Viagem) Regulamentos de 2004 (Escócia)”.
II -
Assim, como a “Ordem de Restrição para
crimes de Natureza Sexual” foi imposta ao requerido por força de um
mecanismo administrativo, obrigatório face a uma ou mais condenações por crimes
sexuais, não se caracteriza como uma pena acessória ou como uma medida de
segurança determinada por sentença judicial. Não há, pois, dupla incriminação,
pois os factos não são puníveis criminalmente em Portugal, embora o sejam no
Reino Unido.
III -
Concorda-se com a interpretação que o Tribunal da Relação de Évora fez da Lei e
que se pode resumir assim:
- Nos
casos taxativamente elencados no art.º 2.º, n.º 2, da Lei n.º 65/2003, de 23 de
agosto, o Estado português não pode recusar a entrega do requerido com
fundamento em não ser o facto punível em Portugal, pois não há controlo de
dupla incriminação;
- Nos
casos aí não elencados, o Estado português poderá exercer a recusa facultativa
da entrega.
IV
- A recusa facultativa, à falta de critério legal expresso, deve impor, como se
diz no acórdão recorrido, «ao Estado de
execução uma acrescida ponderação dos interesses relevantes com o fim avaliar
da necessidade, da proporcionalidade e da adequação das finalidades da entrega
tendo em conta os valores em conflito».
V
- Contudo, não se pode ignorar que no MDE o princípio geral é o da confiança
mútua e o da cooperação em matéria penal entre Estados democráticos que
partilham o mesmo espaço político e económico.
VI
- Por isso, mesmo nos casos em que a recusa é facultativa, a regra é a da
entrega ao Estado requerente, só havendo motivo para exercer a opção de não
entrega se fortes razões ligadas aos referidos princípios da adequação,
proporcionalidade e necessidade indicarem outro caminho
com suficiente clareza.
VII
- O n.º 3 do art.º 2.º da Lei 65/2003, de 23 de agosto, tem de ser interpretado
no sentido de que se os factos que justificam a emissão do mandado de detenção
europeu constituírem infração punível pela lei portuguesa, independentemente
dos seus elementos constitutivos ou da sua qualificação, então é sempre
admissível (ou, mesmo, obrigatória) a entrega da pessoa procurada ao Estado
requerente, desde que verificados os restantes requisitos configurados na lei.
VIII
- Essa norma, se interpretada desse modo, harmonizar-se-ia com o art.º 12.º,
n.º 1, al. a), do mesmo diploma, que diz que «1- A execução
do mandado de detenção europeu pode ser recusada quando: a) O facto que motiva
a emissão do mandado de detenção europeu não constituir infração punível de
acordo com a lei portuguesa, desde que se trate de infração não incluída no n.º
2 do artigo 2.º».
IX
- Os factos que estiveram na origem das condenações do requerido no Reino Unido
não são enquadráveis em Portugal como crime contra a liberdade ou autodeterminação
sexual, pois só o seriam se as estudantes filmadas pelo requerido, sem o
conhecimento destas, fossem menores de 18 anos e estivessem a praticar atos
pornográficos, o que não foi o caso.
X
- No nosso ordenamento jurídico, tais factos, todavia, são puníveis como
devassa da vida privada, pois constitui esse crime quem, sem consentimento e
com intenção de devassar a vida privada das pessoas, designadamente a
intimidade da vida familiar ou sexual, captar, fotografar, filmar, registar ou
divulgar imagem das pessoas ou de objetos ou espaços íntimos (art.º 192.º, n.º
1, al. b). Trata-se de crime punível com pena de prisão até um ano ou com pena
de multa até 240 dias.
XI
- Isto é: face ao nosso ordenamento jurídico, o requerido não poderia ser
registado como criminoso sexual, ainda que houvesse esse tipo de registo (o que
tem sido objeto de discussão no nosso País, mas que o legislador ainda não
consagrou), pois a sua conduta não é considerada como crime dessa natureza.
XII
- Mas, como o facto é punível com pena de prisão em Portugal, poderia ser
condenado no nosso País numa pena de substituição, por exemplo, numa pena
suspensa, com a obrigação de, durante certo período, não se ausentar para o
estrangeiro sem avisar as autoridades policiais.
XIII
- Assim, a restrição da liberdade de circulação durante certo período não
repugna ao nosso ordenamento jurídico e a violação dessa regra de conduta por
parte do agente do crime, não sendo considerada como um novo crime, poderia
levar à revogação da suspensão e ao cumprimento da pena principal de prisão.
XIV
- Por outro lado, os factos que levaram à imposição, no Reino Unido, da “Ordem de Restrição para Crimes de
Natureza Sexual”,
já foram repetidos pelo requerido “centenas de vezes”, como o próprio admitiu,
e também no território de Portugal.
XV
- Está, assim, suficientemente indiciado que o requerido tem uma personalidade
que facilmente se desvia das regras de conduta social, que o nosso ordenamento
jurídico qualifica como penalmente censuráveis, tendo recidivas sistemáticas
que o próprio admite não conseguir controlar.
XVI
- O Estado português, portanto, ao abrigo do disposto no art.º 12.º, n.º 1, al.
a), da Lei 65/2003, de 23 de agosto, e do n.º 4 do art.º 2.º da Decisão-Quadro
n.º 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de junho, tem motivos suficientes para não
se desviar da regra de cooperação judiciária e de, portanto, entregar ao País
requerente a pessoa procurada pelo mandado de detenção europeu.
Ac.
do STJ de 10 de janeiro de 2013
Proc.
n.º 77/12.6YREVR.S1
Relator: Conselheiro Santos Carvalho
Juiz
Conselheiro Adjunto, com voto de vencido: Rodrigues da Costa
Juiz
Conselheiro Presidente da Secção, com voto de desempate: Carmona da Mota
Voto
de vencido:
I
- Os factos que subjazem à referida Ordem de Restrição não integram entre nós
qualquer tipo legal de crime referente à liberdade e autodeterminação sexual,
mas unicamente um crime de devassa da vida privada, previsto no art. 192.º, n.º
1, alínea b) do Código Penal (CP) e punido com pena de prisão até 1 ano ou com
pena de multa até 240 dias, dependendo ainda de participação do ofendido (art.
198.º do mesmo diploma legal).
II
- Quer dizer: a pessoa procurada nunca seria objecto de qualquer registo como
criminoso sexual, ainda que entre nós estivesse em vigor tal tipo de
condicionamento da liberdade individual para crimes da referida natureza.
III
- Neste contexto, a entrega do referido cidadão britânico mostra-se desadequada,
desproporcionada e não necessária, sendo de todo excessivos e deslocados os
comentários tecidos pela decisão recorrida a propósito da repulsa causada por
tais crimes, quando o tipo de crime que subjaz à Ordem de Restrição é
completamente diferente e despojado da enfatizada gravidade dos crimes sexuais.
IV
- Deste modo, acho também (com o devido respeito) francamente artificial o
arrimo que, na posição que fez vencimento, se procura encontrar no referido
art. 192.º do CP, com recurso imaginoso a uma hipotética suspensão da execução
da pena que a um condenado por tal crime tivesse sido aplicada, sob condição
de, durante certo período, não se ausentar para o estrangeiro sem avisar as
autoridades policiais e de o mesmo vir a cumprir a pena de prisão que havia
ficado suspensa, por incumprimento de tal condição.
V
- De todo o modo, ainda que se pudesse estabelecer a equiparação (que não pode)
e com recurso a tão extremada hipótese, nunca o condenado ficaria subordinado a
uma tal condição por 10 longos anos.
VI
- Por todas estas razões, ao contrário do decidido, teria negado a entrega do
cidadão em causa ao Estado requerente
a) Artur Rodrigues da Costa