domingo, 20 de janeiro de 2013

Recusa de Medicamentos

Por: FernandaPalma, Professora Catedrática de Direito Penal

Sentir o Direito
Têm surgido notícias alarmantes sobre racionamento de medicamentos que, a serem verdadeiras, podem configurar comportamentos criminosos. O caso mais nítido é a possível utilização, por certas administrações hospitalares, de medicamentos de custo mais baixo, em detrimento de medicamentos cuja eficácia é muito superior, segundo a Ciência Médica.
Se estas acusações forem verdadeiras, os doentes estarão a ser sujeitos a um perigo agravado para a vida ou para a integridade. Se a questão for separada das restrições de gastos na saúde impostas pelo acordo com a troika e pensada à luz dos nossos critérios jurídicos e constitucionais, não há dúvida de que tais comportamentos possuem relevância criminal.
Com efeito, haverá uma omissão dos que detêm uma "posição de garante", ou seja, estão obrigados a zelar pela saúde dos doentes, que pode ter como consequência a morte ou uma ofensa corporal. A omissão traduzir-se-á na não aquisição, não disponibilização ou não prescrição de medicamentos e podem estar em causa homicídios ou crimes contra a integridade física.
Porém, a questão surge como execução da política do medicamento, que levaria os administradores a fazerem opções em conflito de deveres, devido às restrições impostas pela tutela. Este dado é relevante, mas não exclui a responsabilidade penal, uma vez que a Constituição determina que o dever de obediência cessa perante ordens que conduzam à prática de crimes.
Assim, no caso histórico dos médicos alemães que selecionavam os doentes mentais crónicos que iriam para os campos de extermínio, o argumento de um conflito de deveres para salvar os restantes doentes nunca foi aceite. Por outro lado, é difícil invocar o conflito de deveres quando é sabido que os medicamentos em causa são ministrados em alguns hospitais.
Estamos perante problemas relativos à política de saúde e à gestão dos medicamentos, que podem confrontar o Ministério Público e os tribunais com os critérios de responsabilidade penal dos decisores administrativos e até mesmo dos responsáveis políticos. Estão em causa decisões administrativas ou políticas que podem afetar a vida ou a saúde dos doentes.
Não se trata de judicializar a política, pois não está só em causa uma orientação que se revelou incorreta e agravou problemas económicos e sociais. Há uma relação direta entre a decisão e a omissão do tratamento indicado. Se a omissão for dolosa ou, pelo menos, negligente e originar a morte ou uma ofensa, estarão preenchidos os elementos de um crime.

Muito barulho mas pouco efeito


Qualquer pessoa pode criar uma petição online e é quase impossível verificar a veracidade das assinaturas. Em Portugal ainda são encaradas com desconfiança, mas plataformas como a Avaaz começam a ter muita força no mundo anglo-saxónico - e a dar resultados
Quando o abate do cão Zico foi suspenso, muitas pessoas pensaram que a petição online a favor do animal tinha resultado. Mas não é bem assim. O animal envolvido na morte de uma criança de 18 meses não foi abatido porque a Associação Animal - uma das promotoras da petição - interpôs uma providência cautelar no Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja.
A petição apenas recebeu mais atenção mediática do que muitas outras porque, em Portugal, estas ferramentas não têm tanta influência como noutros países. "É uma forma de pressão e como tal funciona, impõe uma agenda", diz Rodrigo Moita de Deus, diretor-geral da agência de comunicação Next
power e um dos autores do blog 31 da Armada. "Mas os anglo-saxónicos usam mais essas ferramentas do que os latinos, devido às próprias características dos povos." Moita de Deus reconhece que os resultados podem ser falsificados, mas conclui que "é o pior mecanismo... à exceção de todos os outros". Mas para o diretor da Nextpower é diferente falar de um "acordar da sociedade civil" e de "protestos" da mesma.
"A sociedade civil não acordou, protesta. As pessoas não querem participar na solução, querem que o problema seja resolvido."
O surto de petições online e no Facebook deve-se a esta conjunção: uma vontade de protestar com a facilidade de o fazer. Não necessariamente com resultados. "O problema é que muitas vezes a petição online não tem credibilidade suficiente para ser consequente", alerta Alexandre Guerra, especialista em relações-públicas. "O que não significa que as entidades visadas nessa petição não devam estar atentas ao que está a acontecer online, seja ao nível de uma petição, do Facebook ou de outra plataforma", considera.
Mas há uma distinção importante entre as petições online e as clássicas, em especial as recolhidas em papel. "A petição clássica implica uma vontade e um trabalho que ao nível das plataformas online não existe", sublinha Alexandre Guerra.
"Uma coisa é fazer 'gosto' no Facebook, outra é levantar o rabo do sofá e ir à manifestação. A petição clássica tem um lado cívico e pessoal que implica compromisso."
Tem também a consagração legal na Constituição, visto que a partir de mil signatários, com assinaturas verificadas, a audição está garantida.
"Quando se faz uma petição clássica há um objetivo concreto, para resultar numa medida ou alteração de lei. No caso das petições online a ideia é diferente: é criar buzz, uma corrente mediática que depois se transforme numa forma de influência e pressão sobre uma entidade", conclui o especialista em relações-públicas.
Anthony Zacharzewski, presidente da organização não partidária Demsoc, arrasa as petições online.
"São a comida de plástico da democracia", diz, citado pelo Guardian. No entanto, plataformas internacionais como a Change.org, com 2? milhões d€ utilizadores, ou a Avaaz.com, com 17 milhões, estão a ganhar uma força sem precedentes e a provocar o debate: serão as campanhas e petições online capazes de reinventar a política e o equilíbrio de forças na sociedade? A Change.org, por exemplo, conseguiu forçar o Parlamento da África do Sul a tomar medidas contra a violação "corretiva" de lésbicas no país. Na Avaaz, uma petição com quase 400 mil assinaturas pediu que o milionário Rupert Murdoch fosse impedido de comprar a BSkyB, depois do escândalo de escutas do News of the World. Pressionado, Murdoch retirou a proposta no último momento.
Ana Rita Guerra
Diário Notícias /Dinheiro Vivo, 19-01-2013

“A Abundância de Direitos em tempos de Crise”



22 de janeiro de 2013, pelas 18h, na Livraria Almedina do Atrium do Saldanha - Lisboa

com Cunha Rodrigues e Teresa Beleza

A sentença do FMI


O senhor Abebe Selassie, o rosto do FMI no resgate, sublinhou que é “muito importante” que o Orçamento esteja de acordo com as regras da Constituição. A afirmação politicamente correta esconde a realidade: o FMI respeita a decisão do Tribunal Constitucional, mas se houver chumbo o Governo tem de encontrar alternativa. Se não for na despesa, terá de ser na receita, ou seja, mais impostos sobre as já vítimas de um confisco predatório. Na lógica do FMI, sacar mais dinheiro às famílias e tirar dinheiro à procura interna é tornar a economia mais saudável. Mas neste país, em que a esmagadora maioria das empresas e do emprego dependem da procura interna, a receita crua do FMI é uma sentença de morte.
Há um vírus que ameaça a economia e a sobrevivência do País: a quebra demográfica. De ano para ano, nasce cada vez menos gente. O fenómeno agrava-se com a emigração massiva de jovens. Até o FMI alerta para o facto de a emigração limitar o crescimento. Sem capital humano não há mais PIB.
Os funcionários públicos e reformados que ganham pouco acima da média já notam que o duodécimo devolvido é levado pela subida do IRS. O Estado dá com uma mão e saca com a outra.
Correio Manhã última hora, 20 Janeiro 2013

Reforma do Estado: hora certa ou discussão atrasada?


Miguel Cadilhe, Daniel Bessa e Carlos Moreno debatem a reforma do Estado no “Conversas Cruzadas” da Renascença. “O Governo tem de fazer um esforço muito, muito grande de ordem política para reconstruir, recriar entendimentos com a oposição e com os parceiros sociais. Eu acho que, de facto, o Governo destruiu alguma coisa nesse domínio que é vital”, defende Miguel Cadilhe, no programa Conversas Cruzadas, este domingo, na Renascença.
Considerando importante o diálogo Governo-oposição para a reforma do Estado, o antigo ministro das Finanças de Cavaco Silva diz também que a “oposição tem de fazer um esforço. O Partido Socialista não tem estado ultimamente à altura das suas responsabilidades. Nós não podemos esquecer que o Partido Socialista foi o primeiro subscritor do acordo com a ‘troika’ e o Partido Socialista foi o grande responsável da situação a que o país chegou e que desaguou no acordo com a ‘troika’”. “Não podemos esquecer isto.”
Cadilhe lembra que “não podemos omitir isto: estamos nesta situação que é dolorosíssima para os portugueses, porque o Governo do Partido Socialista presidido por Sócrates durante os anos em que lá esteve – e foram longos – em vez de corrigir a indisciplina das finanças públicas criou mais dívida pública e tornou a situação insustentável”.
Já Daniel Bessa, ex-ministro da Economia de António Guterres, reparte falhas estratégicas e de comunicação entre o Executivo e o principal partido da oposição: “Quando quero conversar com alguém eu não ponho um anúncio no jornal a dizer que o convidei. Este é o pior dos pontos de partida. O PS há-de ter aqui muitas culpas, mas não as tem todas e nem quero saber se tem mais se tem menos. Esta coisa de querer conversar com alguém e dizer ‘eu convidei aquele fulano para não sei o quê’…. Isto suscita o quê? A rejeição.”
“Parece partir logo do princípio que vai rejeitar e procura criar condições para o culpar por ter rejeitado. Quando quero convidar alguém, convido-o para minha casa no maior dos segredos e procuro construir uma cumplicidade” defende Daniel Bessa.
Mas Miguel Cadilhe não acredita que os danos nos canais de comunicação sejam irreparáveis. “Tem de haver aqui uma aproximação, tem de haver aqui um acto de inteligência, um acto de nobreza dos políticos, um acto de nobreza no sentido mais elevado da expressão. Tem de haver uma aproximação entre o líder da oposição que é o líder do PS e o líder do Governo, do PSD e do líder do CDS também. E, é claro admito que o Presidente da República sem que se veja sem que se ouça, mas que se sinta e acho que sentimos isso, deve estar a fazer todos os esforços para que essas pontes sejam restabelecidas. O rio não é assim tão largo para estarmos a destruir as pontes que resultaram, afinal de contas, de um acordo de 2011, o acordo da ‘troika’ por mais exigente que seja para todos os portugueses” sustenta o ex-ministro das Finanças.
Reforma do Estado: uma discussão atrasada
Carlos Moreno, juiz jubilado do Tribunal de Contas, defende que a discussão sobre a reforma do Estado chega atrasada. “Devia ter sido antes, discutir agora é fazê-lo no momento errado. Devia ter sido em uníssono na sequência do acordo com a ‘troika’ quando envolvendo os partidos do governo e o maior partido da oposição. Era esse o momento ideal”.
Daniel Bessa, por seu lado, alerta para os riscos que decorrem da pressão imposta pela necessidade de resultados. “Deve haver um planeamento na discussão destas questões de reforma do Estado. É um tema que de tempos a tempos deve ser revisitado. O pior momento para o fazer é agora. Agora, enfim, só pode correr mal. Está-se debaixo de uma pressão imensa, tem tudo de ser feito á pressa, porque pedem-se resultados para ontem numa escassez de recursos que dificultam algumas soluções, porque rescisões amigáveis e coisas do género exigem dinheiro” afirma o director da Cotec Portugal.
O juiz Carlos Moreno renova o alerta para as consequências da austeridade quase ilimitada: “Manifestei-me, desde sempre, e desde 2010, contra aquilo que eu chamo a facilidade que são os cortes sucessivos que são cortes cegos e horizontais. Repare, vou dar um exemplo: quando se chega ao ponto de ter de cortar pensões em reformados, quando o corte é cego e quando o corte é horizontal sem distinguir aspectos de vulnerabilidade social como o seu verdadeiro rendimento per-capita em 2012. Porque os reformados receberam em sua casa filhos, netos, familiares que estão desempregados e ficaram com o seu rendimento mensal afectado. Isto é do conhecimento de toda a sociedade” denuncia o autor do livro “como o Estado gasta o nosso dinheiro”.
Já Miguel Cadilhe defende a inevitabilidade do aproveitamento de um marco histórico: o acordo com a “troika”: “Sem este mau momento, nós não faremos as reformas estruturais e a história está aí para o provar. Aqui há uns anos escrevi sobre o dilema do grande reformador: Se em eleições anuncia que vai fazer as grandes reformas perde as eleições. Se não anuncia as grandes reformas, não tem legitimidade para as fazer a seguir.”
“Portanto, quer num caso quer no outro, não faz as grandes reformas. Mas, na altura, dizia que poderá acontecer um cenário de um acordo pré ou pós eleitoral entre os maiores partidos. Nós agora estamos nessa situação, porque há o acordo com a ‘troika’ feito pelo PS, PSD e CDS. Um acordo que é um momento histórico único para fazer as grandes reformas que o nosso reformador, o nosso político-reformador nunca conseguiu fazer” sustenta Miguel Cadilhe.
Daniel Bessa: Governo com verdade. PS sem ilusões
Verdade e transparência é a receita de Daniel Bessa para o discurso público e para a solução dos problemas. “Eu costumo dizer, disse uma vez, que o governo tinha de falar verdade e o PS deixar de vender ilusões. O Dr. António José Seguro deve ter visto isto e até reagiu, porque, no dia a seguir, começou a dizer que não vendia ilusões. Eu acho que o princípio de verdade é indispensável nestas coisas”, aconselha Bessa.
O economista considera também que “o Governo português com todo o respeito por tudo o que tem feito, com o devido mérito que se haverá de reconhecer, tem um sério problema de execução em matéria de finanças públicas”.
“Eu não posso contar como sendo de sucesso o que tem acontecido em matéria de finanças públicas em Portugal nos últimos anos. O FMI foi condescendente quando veio dizer que a coisa tem corrido muito bem. Não tem e não pode ser apregoada como um sucesso. Não tem. E depois do outro lado, o Dr. António José Seguro, se chegar a primeiro-ministro tem um problema, porque ele vai fazer rigorosamente o contrário do que anda a prometer. Alguém tem alguma dúvida sobre isso? Foi isso o que eu chamei de vender ilusões. Portanto, tem que haver aqui princípios sem os quais o acordo se torna impossível. Se o PSD disser ‘estou em dificuldade preciso de ajuda’ e não é verdade que está em dificuldade e precisa de ajuda? Certamente que do outro lado a resposta será diferente, não será bem a que tem sido dada” sustenta Daniel Bessa.
O ex-ministro da Economia elogia a posição de Francisco Assis quando o candidato derrotado por Seguro defende que o PS não pode ser uma provedoria acrítica de todas as contestações e deve apontar alternativas com clareza. “Alguém no PS diz que é preciso mexer na ADSE e, imediatamente, quase em uníssono ouvimos coisas como ‘não, não, porque os funcionários públicos são eleitores do PS’ ou a direcção do Partido Socialista que imediatamente veio dizer ‘não, não, o nosso porta-voz para esta área fala em nome próprio porque a posição é esta ‘ nós não vamos mexer na ADSE’. Eu talvez apostasse 99 contra 1 como, se forem Governo, mexem na ADSE” conclui Daniel Bessa.
Rádio Renascença Online, 20 Janeiro 2013

A Constituição dá para tudo um pouco


Luís Marques
POBRE CONSTITUIÇÃO
A Constituição está transformada numa bandeira da esquerda e num espantalho da direita. A coisa está tão banalizada que já nem se percebe que estamos a falar da Constituição da República Portuguesa (assim se chama, com toda a dignidade, a lei fundamental do país) e não de um mero folheto partidário, daqueles que os nossos políticos se entretém a discutir.
Hoje em dia é tão normal invocar a Constituição como beber um copo de água. Qualquer iniciativa do Governo é acusada de inconstitucional ainda antes de se saber bem o que é. O próprio Governo quando anuncia qualquer medida trata de garantir a respetiva constitucionalidade, para se antecipar à oposição, que garantirá o contrário. As medidas em si mesmas já interessam pouco. O que vale é saber o que diz o Tribunal Constitucional sobre as mesmas.
Este Tribunal está transformado no centro do poder político.
Já não há praticamente ninguém que não recorra para lá. O Presidente tem dúvidas sobre o Orçamento de 2013? Tribunal Constitucional. O PS, o PCP, o Bloco de Esquerda, o provedor também têm dúvidas? Tribunal Constitucional. Isto vale também por antecipação. Vem aí uma reforma do Estado? A esquerda ameaça com o Tribunal Constitucional, ainda antes de se saber do que se trata.
A Constituição da República Portuguesa (assim, com toda a solenidade) serve para tudo. Para paralisar a política. Para evitar a discussão política. Para adiar a prisão de Isaltino Morais. Para atrasar a destituição de Macário Correia da presidên
cia da Câmara de Faro. Para eternizar processos em recurso.
Recorrer ao Tribunal que garante o respeito pela Constituição é um elemento obrigatório na decisão de políticos e advogados.
A Constituição, ela própria, é motivo de controvérsia. Pedro Passos Coelho começou por defender mais uma revisão da mesma, como elemento fundador do seu projeto político. Para o efeito teve a extraordinária ideia de indicar um monárquico para dirigir uma comissão que produziu uma proposta que dorme hoje na gaveta das coisas inúteis. Morreu a proposta e morreu a ideia. Resultado: uns garantem que não é preciso mexer na Constituição. Outros defendem exatamente o contrário.
Na realidade, a Constituição dá para tudo um pouco. Para quem quer mudar e para quem quer que tudo fique na mesma.
Invoca-se a Constituição por motivos de conveniência. Portugal já não é verdadeiramente um país soberano, nem independente. No entanto, a Constituição diz, nos seus artigos l.º e 7.º, que Portugal é, respetivamente, uma “República soberana” regida pelo princípio da “independência nacional”. Alguém se preocupa com isso?
Expresso, 19 Janeiro 2013

Magistrados indemnizados


Uma decisão do Tribunal Central Administrativo condenou ontem o Estado a pagar aos magistrados uma indemnização pelo não cumprimento de um acordo que previa uma compensação pelo não uso da casa de função. O acordo foi feito no tempo de Celeste Cardona e implica o pagamento de milhares de euros aos procuradores sócios do sindicato, que interpôs a ação. O Ministério da Justiça ainda pode recorrer.
Expresso, 19 Janeiro 2013

“A reforma do Estado está a ser feita com grande amadorismo”


ENTREVISTA A JORGE SAMPAIO
Ex-Presidente diz que reforma do Estado tem sido pouco transparente e alerta para a degradação do diálogo mínimo
Almoço no Pabe Ao deixar os seus dois cargos na ONU, o ex-Presidente faz um balanço e diz que a situação política portuguesa é “inenarrável”
Jorge Sampaio “O mínimo de diálogo está a deteriorar-se”

Texto JOSE PEDRO CASTANHEIRA, RICARDO COSTA e RUI CARDOSO Foto RUI OCHÔA

Jorge Sampaio assistiu de perto ao lançamento do Expresso. Tinha escritório no prédio ao lado e reunia com os seus amigos da política do outro lado da rua Duque de Palmela, no snack do Hotel Florida. Com uma longa carreira política, emocionou-se quando, recentemente, foi explicar a nossa Constituição à Tunísia, país que serviu de rastilho às primaveras árabes. A Tunísia quer uma Constituição semipresidencialista e pediu ao ex-Presidente da República para explicar o nosso equilíbrio de poderes.
Um equilíbrio que tão bem conhece, como deputado, dirigente partidário, Presidente e, agora, como observador mais distante mas atento.
- Não deixa de ser irónico estarmos a ‘exportar’ a Constituição quando é tão criticada em Portugal.
- Nós é que temos a mania que a má ou a deficiente governação são culpa da Constituição, o que não é manifestamente o caso.

- A Constituição é usada como bode expiatório?
- Qualquer que seja o conteúdo da Constituição ela tem de consagrar os princípios da igualdade e da proporcionalidade, quando não o da confiança. Pensar-se que uma revisão constitucional afasta estes princípios é estar-se num mundo não democrático. Até já chegámos a ouvir pessoas dizer que o país é inconstitucional — o que é inimaginável e completamente absurdo! O caso da saúde é patente. A Constituição exige que o SNS seja universal e geral. Qualquer coisa que afete estes dois princípios é inconstitucional. Diz também que é tendencialmente gratuito, de acordo com as possibilidades económicas de cada um — o que significa que há uma panóplia de soluções do ponto de vista do pagamento dos cuidados de saúde. Não podemos culpar a Constituição por todas as nossas incapacidades políticas. Pela minha parte, sempre fui a favor de uma interpretação atual dos textos legais.

- Existe demasiada pressão pública sobre o Tribunal Constitucional?
- Tentativas há, mas só sente a pressão quem é pressionável. Sou um defensor da importância do controlo final da constitucionalidade. Embora, claro, se possa sempre discordar de uma eventual decisão nesse sentido.
- Preocupa-o o facto de não haver entendimento sobre os grandes temas da atualidade?
- Nós estamos a perder, a uma rapidez assustadora, os hábitos de construir e alimentar a coesão nacional e intergeracional que tem estado na base do modelo social. Está a deteriorar-se, de forma preocupante, o mínimo de diálogo político para se chegar a decisões consensuais. O diálogo pressupõe concessões mútuas. Digo frontalmente, com imenso desgosto, que não houve da parte do Governo, nomeadamente do PSD, uma preocupação de incluir o PS numa conversa permanente, não pública, sobre todos os pontos da governação. Passa- -se a vida a ouvir que foi o PS que assinou o memorando, mas o memorando foi assinado pelos três partidos. Esgrimir este argumento, como também pretender que o PS está a amarrado a uma trela, não leva a parte alguma. Até porque há uma coisa dramática: estamos cercados por credores. Esta é a realidade. Ora todos os esforços deveriam convergir para um entendimento sobre como criar condições para nos libertarmos desta tutela.

- Como se ultrapassa isso?
- Com políticas apropriadas, por um lado, e, por outro, com respostas democráticas. Estas últimas exigem diálogo político e concertação social. Ora, os agentes políticos têm de o saber construir. Mas o consenso na concertação está agora em perigo, designadamente com a questão dos 12 dias de indemnização. A semana que passou foi, aliás, paradigmática do rumo errado pelo qual se está a enveredar — não se organiza um debate a sério, conclusivo, da maneira a que assistimos esta semana. É um desastre. Dever-se-ia começar com a apresentação, por parte do Governo, de um livro branco sobre as reformas. E, depois, sim, discuti-lo a todos os níveis… Agora, o que parece ter acontecido é precisamente o contrário. Obviamente, não podemos viver de uma maneira para a qual não temos sustentabilidade. O relatório do FMI contém muitas sugestões que até são interessantes, apesar de haver também dados errados e de uma forte componente ideológica subjacente. Por isso, é necessário suscitar a discussão mas num clima de abertura, de pluralismo e de diálogo inclusivo. Há sempre alternativas em democracia. E a urgência de soluções não pode dispensar estes debates. O que importa é encontrar as melhores soluções, os consensos mais abrangentes. Ora, isso não está organizado.

- Como se pode organizar isso?
- O Governo devia ter começado, há mais de um ano, por pôr em cima da mesa uma série de princípios fundamentais e discuti-los, envolvendo as universidades, os think tanks, chamar a OCDE e o FMI, fazer uma síntese e apresentar um Livro Branco com propostas que poderiam ser alvo de um vasto debate na sociedade, de que resultariam propostas ao Parlamento.

- Estamos a começar do fim.
- Sim, parece que está tudo a ser feito casuisticamente, de uma forma pouco transparente, e com grande amadorismo, ao sabor de medidas avulsas ditadas pela necessidade de fazer cortes. Isto até é dar cabo de uma característica que é vista pelos peritos internacionais e credores como essencial, que é o consenso. Tudo isto é inenarrável!

- António Guterres admitiu responsabilidades pela situação em que o país se encontra. Sente o mesmo?
- Ninguém pode dizer que não tem responsabilidades, maiores ou menores. Fui um agente político responsável, eleito por sufrágio universal, e tenho naturalmente aquilo que é genericamente uma responsabilidade no quadro das competências que, em cada momento, foram as minhas. Nunca me pus nem ponho de fora.

- Não foi essa a posição de Cavaco Silva na entrevista que deu ao Expresso.
- Eu não faço comparações. Tenho a minha visão do exercício dos cargos públicos que sempre segui nas várias funções que desempenhei. Sempre me pautei por um sentido de responsabilidade exigente — fiz o que devia, podia e pensei que era útil, em cada ocasião. Terei tido omissões — certamente que sim, como qualquer pessoa em dez anos. É impossível não pensar que houve erros e que não houve omissões. Deles, a História falará. Neste momento, importa-me, sim, saber o que podemos fazer coletivamente pelo nosso país. Portugal está numa saga extremamente difícil e eu sou dos que querem sair dela pela discussão e pela democracia, que não querem ver postas em causa as bases fundamentais de um processo democrático que tanto custou a construir. Por exemplo, esta ideia de que o objetivo é aparecermos como os bons alunos da Europa… Francamente, não é por aí! Atribuir culpas só aos portugueses parece-me ser excessivo e demasiado violento. Exige-se da Europa que volte a ter uma resposta coletiva e se deixe de separações, de falta de solidariedade, de divisões. A Europa, em vez de reforçar a sua união, corre o perigo de se desagregar.

-Ainda diria hoje que “há mais vida para lá do défice”?
- É que eu não disse essa frase. O que disse é que “há mais vida para lá do orçamento”. Já percebi que ficarei crucificado por uma frase que não disse. E é preciso ver o parágrafo anterior da intervenção em que disse isso, em que falava das contas públicas: isto não se resume ao orçamento, às finanças, existe também a economia, era o que queria dizer. E já agora, há outro ponto que queria mencionar: persiste uma ideia estranha segundo a qual vem aí uma crise política. Mas não é de todo evidente que haja soluções óbvias para essa crise. Seria melhor não acrescentarmos problemas dispensáveis à crise em que vivemos.

- Mário Soares defende que deveria ser formado um novo governo.
- Eu divirjo do meu antecessor nesse ponto. Não se podem formar governos sem apoios partidários. O momento não é para uma crise política. Mas isto também não pode redundar num pretexto para se limitar o debate.

- O esforço deve ser posto na concertação e no diálogo?
- O mais possível. O que eu gostava era de ver alguém a trabalhar como quando se constrói, na Alemanha ou Holanda, um governo de coligação, em que, além de os gabinetes de estudo dos partidos trabalharem permanentemente, há um programa comum discutido durante semanas. Aqui, basta ter um bocado de papel e julga-se que se fez um acordo político. A credibilidade dos cidadãos no sistema político está em declínio vertiginoso. Temos a responsabilidade de parar isso, pela credibilízação do diálogo e do trabalho político. Se só se grita, não vamos a lado nenhum.

- E agora, quais são os seus planos para o futuro?
- Falamos disso em março.
“Candidatos a PR devem avançar cedo”

- Qual era a sua relação com o Expresso quando o jornal saiu, em janeiro de 1973?
- Conhecia há muito Balsemão, por termos sido contemporâneos na Faculdade de Direito. Além disso, havia o fator vizinhança, porque eu tinha o escritório no prédio ao lado. Foi uma lufada de ar fresco e um ato de grande significado, decorrente da aventura que fora a ala liberal.

- Começou logo a colaborar.
- Sim, na campanha eleitoral de 1973, quando convidaram várias pessoas para fazer uma crónica durante aquele mês de liberdade. Foi a colaboração que mais gozo me deu, devo dizer.

- Vinte anos depois, foi no Expresso que revelou a vontade de se candidatar a Belém.
- É verdade. Foi numa entrevista em que disse que “seria estimulante disputar as eleições com Cavaco Silva”… Candidatei-me bastante cedo — coisa que sempre aconselhei aos subsequentes candidatos. Anunciar cedo ajuda a preservar uma dose de liberdade.

“A democracia liberal não é aplicável em todos os sítios da mesma maneira”
- Em que contexto sai dos cargos na ONU, Enviado Especial para a luta contra a tuberculose e Alto Representante para a Aliança das Civilizações?
- Neste tipo de cargos a renovação das lideranças é indispensável. É preciso saber parar e perceber quando se atingiu o momento certo da passagem de testemunho. Foi essa a minha avaliação e pedi ao secretário-geral para me substituir. Como se sabe, inaugurei ambos os cargos. Foi em maio de 2006, quando Kofi Annan me convidou para seu enviado especial para a luta contra a tuberculose. Porquê? Isto prende-se com a Declaração do Milénio que, pela primeira vez na história das Nações Unidas, traduz um consenso sobre objetivos a alcançar que não tinham só a ver com a paz e os direitos humanos, mas também com a necessidade de erradicar a pobreza extrema do mundo. A tuberculose é um bom barómetro: sabia que morrem 4500 pessoas por dia, ou seja, 1,6 milhões por ano? Sabia que as pessoas com VIH-sida são especialmente permeáveis à tuberculose, que mata um quarto destes doentes?

- Isso era novo para si?
- Não, de todo. Na Câmara de Lisboa já tinha lançado o primeiro programa de luta contra a toxicodependência. Como Presidente, fiz da saúde pública como tema de direitos humanos uma das minha prioridades. Este meu reiterado interesse dever ter chamado a atenção de Kofi Annan, o que explica porventura o convite, que aconteceu no momento certo — foi logo a seguir à saída de Belém — e, por isso, de 2006 a 2009 dediquei-me a fundo a esta causa.

- Qual o país que o chocou mais?
- É difícil escolher um, mas África, que foi uma das minhas prioridades, sobretudo em 2006 e 2007. Comecei por Addis Abeba, em setembro de 2006, numa reunião com todos os ministros da Saúde do continente africano e aproveitei para visitar sanatórios com situações impressionantes. Nas aldeias africanas vi coisas chocantes, sim, mas também gente extraordinária e dedicada, a trabalhar em condições de extrema dificuldade. 2008 foi um ponto alto das minhas atividades pois consegui finalmente promover o primeiro Fórum Global das NU dedicado à coinfeção HIV/TB. Esta coinfeção é alvo de um grande paradoxo: que sentido tem mantermos vivas pessoas apesar de terem uma doença incurável para depois elas acabarem por morrer de tuberculose, que é uma doença curável?

- Há algum país da CPLP entre os com taxas de tuberculose mais elevadas?
- Sim. A situação pior é em Moçambique. E há o Brasil, fui uma vez à favela da Rocinha… Na China, a situação da tuberculose é igualmente grave. Estive lá com Bill Gates para lançar um programa focado na tuberculose multirresistente, onde esteve o vice-primeiro-ministro chinês da altura.

- A China admite-o publicamente?
- O peso do estigma é enorme. O primeiro passo para a solução da luta contra a tuberculose começa no seu reconhecimento público. Hoje em dia as multirresistências são uma verdadeira ameaça de saúde pública. Sem um bom serviço de saúde da tuberculose normal facilmente se evolui para as multirresistências, daí a importância crucial de a tuberculose ser identificada a tempo e tratada até ao fim. Investir na tuberculose é mais barato do que arcar com as suas consequências no plano sociai e económico. A tuberculose pode reduzir o PIB de um país gravemente afetado em 4 a 7%. Estes temas são tão importantes para a paz como o combate à pobreza e à exclusão. O mandato era de cinco anos e estive sete em funções. Era altura de sair.

- Junta a esta saída, a da Aliança das Civilizações…
- Sim, termino o meu mandato no fim do próximo mês de fevereiro. Iniciei-o em maio de 2007, a convite de Ban Ki-moon, para seu Alto Representante para a Aliança das Civilizações! “Vai ter de viajar muito”, acrescentou…

- Havia um relatório sobre a Aliança?
- Sim, nessa altura, a Aliança era apenas um relatório de cerca de cinquenta páginas… Tudo começara em 2004, após os atentados de Madrid. Zapatero tinha lançado a ideia de que era preciso reativar o diálogo para reconstruir pontes entre culturas e restaurar a confiança num mundo extremamente polarizado. Durante estes anos transformei esse relatório numa iniciativa real, a funcionar plenamente numa escala mundial. Começou com um pequeno grupo de apoio de cerca de 25 países. Hoje congrega cerca de 115 Estados-membros e uma vintena de organizações internacionais e tem uma extensa rede de ONG e outras organizações da sociedade civil. A Aliança é a plataforma de referência das NU de diálogo e cooperação intercultural e um ator internacional que procura promover a boa governação e fomentar o diálogo e entendimentos entre as sociedades.

- A situação internacional melhorou? Temos uma guerra a começar no Mali com islamitas, franceses…
- A Aliança nunca se propôs tratar daquilo que é tipicamente político e releva basicamente do Conselho de Segurança das NU. O seu domínio de atuação é outro — como iniciativa de soft power a Aliança trabalha num plano diferente. Veja-se por exemplo o conflito israelo-palestiniano, que dura há 60 anos. Toda a gente sabe os passos essenciais para o resolver. Mas, mesmo que haja um acordo formal, assinado no foro apropriado, a seguir há a vida real dos palestinianos e dos israelitas. Há que preparar as pessoas para esta vida em comum, caso contrário persistirão sempre muros e barreiras. O diálogo não se decreta, e não há entendimento político duradouro sem um mínimo de compreensão pessoal. Devo dizer, a este respeito, que Portugal tem muito para mostrar no domínio da capacidade de integração.

- Viu com satisfação o voto de Portugal na ONU sobre a Palestina?
- Só posso responder a título pessoal, mas acho que foi correto, embora tardio. Sou favorável à constituição de dois Estados, ou seja, da construção de um Estado Palestiniano independente, viável e soberano, vivendo lado a lado, em paz e segurança, com o Estado de Israel. Mas as condições efetivas para a realização desta solução estão a ficar ameaçadas em definitivo.

- Europeu como é, alguma vez se sentiu como pertencente a um continente em perda?
- Poderia responder citando Eduardo Lourenço: “A nossa velha Europa conhece neste momento uma crise de imagem e de estatuto histórico de um novo género e provavelmente sem saída, como se estivéssemos no fim da linha”.

- A primavera árabe mudou alguma coisa?
- É evidente que sim. Vamos ter de nos habituar à emergência de novas conceções de democracia — e, note-se, democratização não vai significar necessariamente ocidentalização. Trata-se de aprender a dialogar e a conviver com um modelo de sociedade que vai talvez recriar um modelo de democracia inspirado no Islão político. A ideia de que o modelo da democracia liberal, capitalismo industrial e secularismo nacional é aplicável em todos os sítios e da mesma maneira é um erro.
Expresso, 19 Janeiro 2013

Cidadãos que denunciam corrupção “não são bufos”

A Procuradora-Geral Adjunta Cândida Almeida exortou, na noite de sexta-feira, os cidadãos a denunciarem crimes de corrupção, frisando que, ao fazê-lo, “não são bufos”, antes pessoas que lutam pela democracia.
“Não são bufos quando denunciam a corrupção. Estão é a lutar pela democracia que deve imperar na nossa vivência coletiva”, disse Cândida Almeida, em Cantanhede, dirigindo-se à assistência durante um debate promovido pela associação de pais da escola secundária local.
A também diretora do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) frisou que os magistrados, órgãos de polícia criminal e sociedade civil possuem “o direito e o dever” de se unirem “e colaborarem todos com a investigação” de casos de corrupção.
Cândida Almeida disse existirem “várias soluções na lei” que permitem a colaboração “imprescindível” dos cidadãos, sem a qual, alertou, a luta contra a corrupção não será vencida.
“E, portanto, estamos, digamos, numa espiral de criminalidade, de fraude fiscal, de branqueamento [de capitais], de corrupção”, alertou.
A magistrada revelou ainda que a linha para receber denúncias contra a corrupção, criada pela Procuradoria Geral da República (PGR), recebeu mais de 2.000 denúncias desde novembro de 2011.
dn.pt, 19 Janeiro 2013