quinta-feira, 2 de setembro de 2004

"Vivemos o Vácuo de Uma Política Criminal Democrática"

Entrevista do juiz-académico Paulo Pinto de Albuquerque publicada, hoje, no Público

Por ISABEL BRAGA

Nascido na Beira, Moçambique, há 37 anos, licenciado em direito pela Universidade Clássica de Lisboa, em 1989, Paulo Pinto de Albuquerque foi logo nesse ano convidado para assessor do Ministério da Administração Interna, cargo que abandonou para frequentar o Centro de Estudos Judiciários (CEJ). Enquanto magistrado, prosseguiu os estudos, na Universidade Católica, onde apresentou a tese de mestrado em 1994 e a de doutoramento em 2003. A 15 de Setembro, abandona a magistratura para se dedicar ao ensino, na Universidade Católica.

PÚBLICO - Está desiludido com a profissão de juiz?
Paulo Pinto de Albuquerque - Não, foi uma experiência muito enriquecedora, que me permitiu conhecer por dentro a sociedade portuguesa, nos seus lados mais negros e nos aspectos positivos, alguns quase heróicos.

P. - A sua opção pela carreira docente significa que prefere lidar com os problemas sociais mais na teoria que na prática?
R. -Sei que a opção que tomei é pouco vulgar, pelo menos em Portugal. Não tenho notícia de que outro juiz se tenha doutorado e enveredado pela carreira docente, pelo menos desde a fundação da República. Sempre procurei não me afastar da vida e das pessoas, mas também quero reflectir sobre elas, e intervir politicamente, procurar soluções para alguns problemas cruciais do sistema português de justiça.

P. - Quais são esses problemas?
R. - Em 30 anos de democracia ainda não conseguimos pôr de pé uma política criminal que cumpra os imperativos constitucionais da igualdade e da soberania popular. A política criminal nacional devia ser planeada, determinada pelo ministro da Justiça em programa anual apresentado à Assembleia da República (AR) e traduzir-se em directivas genéricas do ministro da Justiça à Procuradoria-Geral da República (PGR), as quais, por sua vez, deveriam ter tradução na política interna do Ministério Público (MP), nas directivas que o procurador-geral dá aos procuradores. O que sucede, na realidade, é que cada procurador decide de acordo com a sua convicção e entendimento do direito. Na mesma comarca, no mesmo tribunal ou até na mesma secção pode haver magistrados do MP que, perante casos semelhantes, decidam de maneira diferente. É um funcionamento pouco transparente.

P. - A sua tese de doutoramento trata dessa questão?
R. - Sim, falo da reforma da justiça criminal portuguesa ao longo de duzentos anos, desde o liberalismo até à reforma de Cavaleiro Ferreira em 1945, e, depois, o que se fez em democracia, com destaque para a reforma do Código de Processo Penal em 1987.

P. - O MP deve mandar na PJ?
R. - A lógica imporia que os órgãos superiores da PJ fossem ocupados por magistrados do MP. A funcionalidade do sistema seria acrescida se o MP coordenasse o trabalho da PJ. Por opção política, os cargos superiores da PJ têm sido entregues a magistrados judiciais, o que cria a situação singular de estes magistrados se encontrarem, no fundo, entalados entre os magistrados do MP, que conduzem os inquéritos, e as polícias que eles próprios dirigem. É uma situação muito ingrata.

P. - Como explica que isso aconteça?
R. - Por inércia histórica. Quando a PJ foi criada, em 1945, pelo então ministro da Justiça, Cavaleiro Ferreira, eram magistrados judiciais a dirigi-la porque aquela polícia tinha poderes parajudiciais, de confirmação da prisão preventiva e de aplicação de medidas de segurança provisórias. E essa prática foi-se mantendo como sinal da matriz criadora da PJ. Com a democracia, esses poderes parajudiciais desapareceram.

P. - A independência do sistema judicial relativamente ao poder político não ficaria prejudicada se, como defende, as directivas aos magistrados do MP obedecessem a um programa do Governo, submetido anualmente ao Parlamento?
R. - Essa crítica, no fundo, revela desconfiança em relação à democracia, em relação à discussão parlamentar da política criminal. E não devemos temer essa discussão.

P. - É no Ministério Público que reside, na sua opinião, o principal problema da política criminal portuguesa?
R. - O modo como temos estruturado o Ministério Público é decisivo para o processo penal e para os resultados da política criminal. As suas directivas não são transparentes, porque não são públicas nem discutidas no lugar próprio, que é o Parlamento.Vivemos hoje o resultado da inexistência de uma política criminal verdadeiramente democrática, assente nos princípios da igualdade e da soberania popular.

P. - O processo da Casa Pia, nestes últimos dois anos, pesa no retrato que faz da política criminal portuguesa? O processo retirou credibilidade ao sistema?
R. - Não diria que retirou credibilidade, diria que revelou problemas do sistema, que já existiam antes, problemas dos limites éticos das profissões jurídicas, de magistrados e advogados, que merecem uma reflexão séria da Ordem dos Advogados, do Conselho Superior de Magistratura e do Conselho Superior do Ministério Público...

P. - Pode concretizar melhor?
R. - Estou a falar na conduta de juristas, mas há também problemas de natureza política, como o lugar que deve ter o procurador e a PGR na política criminal portuguesa, o lugar que deve ter o director da PJ. Mas também é verdade que as pessoas não estavam habituadas ao contacto com processos, por isso estranham contradição de decisões, avanços e recuos, decisões pouco coadunáveis com antecedentes no processo...

P. - O julgamento de Carlos Silvino está adiado há um ano porque o advogado do arguido o recusou como juiz. Os tribunais superiores nada encontraram que justificasse essa recusa. Como reagiu a isso?
P. - Esse é um dos problemas que, quer do ponto de vista ético quer jurídico, deve preocupar os juristas e também a AR, quando apreciar a reforma do processo penal. O incidente de recusa tem a sua razão de ser, mas deve ter os seus limites. Aquilo que eu digo aos meus alunos é que Portugal precisa de uma política criminal centrada na vítima. Isto não é preterir o arguido, é ajudá-lo a repor o mal feito, o melhor que ele for capaz.

P. - Há excesso de garantismo no sistema penal português?
R. - Isso é uma falsa questão, isso diz pouco.

P. - O advogado que o recusou como juiz pode continuar a adiar o julgamento de Carlos Silvino, se tal lhe convier, recusando os outros juízes do colectivo. Essa possibilidade não é um excesso de garantismo?
R. - O incidente de recusa não é um excesso de garantismo, tem é que haver limites na lei que dissuadam a instrumentalização do incidente. Se o efeito do incidente não for suspensivo do processo, este deixa de ter esses efeitos nefastos.

P. - Não acha compreensível que, depois dos incidentes que têm marcado a justiça portuguesa, nos últimos tempos, os cidadãos vejam os tribunais como uma espécie de lotaria, que tanto pode castigá-los como não, independentemente de serem inocentes ou culpados?
R. - Devemos lembrar-nos que a justiça portuguesa também tem sucessos, teve um fantástico, lidou com um bando terrorista que fez vítimas, e conseguiu acabar com ele. Falo das FP-25 de Abril. Isso foi muito importante, histórico, para a democracia portuguesa.

P. - A última sentença do tribunal relativa a esses arguidos, em 2001, ilibou toda a gente dos crimes de sangue, menos os arrependidos, que admitiram os crimes.
R. - Eu falava do Ministério Público, sobretudo. E é um facto que as FP-25 de Abril acabaram.

P. - O que pensa do afastamento de Adelino Salvado da direcção da PJ?
R. - Ele era livre de decidir diferentemente, mas decidiu demitir-se e afastar-se. Fez o juízo de valor que a situação lhe merecia. Tendo ele concluído que não tinha a confiança do ministro, tomou a decisão lógica.

P. - A sua saída da magistratura tem algo que ver com o facto de lhe ter caído nas mãos o processo da Casa Pia?
R. - Não, já tive outros processos envolvendo problemas jurídicos e humanos talvez mais graves e complexos e não virei costas à luta.