A morosidade da justiça ou as violações do segredo da mesma não são, como todos sabemos, um exclusivo do nosso país. Em França, por exemplo, há advogados que são punidos criminalmente por terem violado o seu segredo profissional na vertente do segredo de justiça e que justificam a sua actuação com, entre outros motivos, a lentidão da justiça e a necessidade de defender os seus clientes.
Como todos estaremos de acordo, sempre algum segredo de justiça terá de existir, sob pena de total ineficácia das investigações criminais, para o que basta pensar na possibilidade de uma busca ser divulgada com antecedência permitindo a destruição ou ocultação de provas; mas nem por isso o segredo de justiça deve ser convertido numa barreira inultrapassável, quando estão em causa valores tão ou mais relevantes para a sociedade.
No passado dia 15 de Dezembro, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) pronunciou-se sobre o caso Mor contra a França, em que uma advogada tinha sido condenada por ter dado uma entrevista a uma revista sobre um relatório de um perito que constava de um processo judicial em fase de instrução e, por isso mesmo, sob segredo de justiça.
A questão prendia-se com um caso que dera grande escândalo, já que estava em causa a actuação das autoridades sanitárias francesas relativamente a um plano de vacinação contra a hepatite B. Segundo os queixosos, alguns deles representados pela advogada em causa, a vacinação não só não era necessária, como se tinha revelado particularmente gravosa para a sua saúde e, em alguns casos, mortal para seus familiares. Os factos já remontavam há mais de dez anos e a queixa criminal há mais de quatro, quando foi junto ao processo um relatório de mais de 400 páginas elaborado por um prestigiado médico que vinha denunciar a conivência das autoridades sanitárias com as agressivas práticas comerciais da indústria farmacêutica. O relatório era de uma contundência inaudita, denunciando desde a manipulação dos números dos contaminados pela hepatite B, que passavam de 1000 casos por ano para 100.000 para promover o plano de vacinação até à promiscuidade de interesses entre os médicos do Comité Técnico de Vacinas e os laboratórios produtores das vacinas.
Diversos meios de comunicação social tiveram acesso ao relatório e publicaram excertos do mesmo, tendo a advogada em causa sido entrevistada por uma revista e por uma rádio. A advogada afirmou aquilo que entendia ser relevante, nomeadamente que o relatório mostrava a ligeireza com que tinham actuado as autoridades sanitárias, seja na elaboração do plano de vacinação, seja na sua implementação e acompanhamento. Para a advogada, era natural que os laboratórios procurassem o máximo de lucro, mas era inaceitável que o Estado tivesse colaborado com tais objectivos, esquecendo o interesse comum. Para além dos eméritos professores de medicina que não confessavam as suas ligações aos laboratórios e iam emitindo as suas doutas opiniões. E resultava do relatório que os efeitos indesejáveis das vacinas, em alguns casos insuficientemente testadas, tinham sido dissimulados e ocultados aos cidadãos franceses. Além disso, a advogada comentou o facto, referido no próprio relatório, de os laboratórios terem exercido as mais diversas pressões sobre o autor do mesmo, que viu cancelados diversos contratos profissionais e se viu obrigado a defender-se em numerosos processos judiciais.
Um dos laboratórios queixou-se criminalmente contra a advogada por violação do segredo profissional e esta foi condenada no pagamento de uma indemnização de um euro e dispensada de pena criminal, tendo em conta a fraca perturbação da ordem pública resultante das entrevistas, o facto de as mesmas já terem ocorrido há cerca de cinco anos, quando a advogada foi julgada e, ainda, pelo facto de haver repetidas violações do segredo de justiça na sociedade francesa que não eram punidas. Mas, de qualquer forma, para os tribunais franceses, o facto de o relatório já estar nas mãos da comunicação social não exonerava a advogada do seu dever de não se pronunciar publicamente sobre o mesmo.
A advogada recorreu então ao TEDH, queixando-se que tinha sido violada a sua liberdade de expressão, já que actuara em defesa do seus clientes, sendo importante comentar o relatório do perito que, embora estivesse coberto pelo segredo de justiça, já era do conhecimento da comunicação social, para além de que o segredo de justiça já durava há mais de quatro anos. E a denúncia pública das pressões exercidas sobre o perito era igualmente relevante para evitar o seu afastamento.
Para o TEDH, como repetidamente tem afirmado, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem deixa um espaço muito reduzido para as restrições à liberdade de expressão no domínio do discurso político ou no caso do debate de questões de interesse geral. E no caso concreto era por de mais evidente o interesse público da matéria em causa. Por outro lado, embora o segredo de justiça deva merecer protecção legal, tanto para assegurar a boa administração da mesma, como para garantir a presunção de inocência, no caso concreto a advogada tinha-se limitado a comentar o relatório e a denunciar as pressões sobre o perito, assim assegurando os interesses dos seus constituintes, pelo que para o TEDH não se justificava a condenação. A França foi, assim, pela violação de liberdade de expressão, condenada a indemnizar a advogada em 5000€. Os laboratórios queriam intimidá-la e silenciá-la, o Estado francês colaborou com eles, mas o TEDH defendeu-a. E a nós todos.
Francisco Teixeira da Mota (Advogado)
Público de 13-01-2012