quinta-feira, 10 de novembro de 2005

Depois da greve dos magistrados

Por Rui do Carmo, no Público de 10.Nov.2005

A forte adesão à greve realizada por juízes e magistrados do Ministério Público nos dias 24 a 27 de Outubro foi um importante sinal de protesto contra uma política de afrontamento indiscriminado dos profissionais que exercem funções nos tribunais, podendo ter contribuído para a abertura do caminho à compreensão de que só pelo diálogo se podem mobilizar aqueles de quem depende o funcionamento do sistema de justiça para as profundas reformas de que necessita.
O processo que conduziu à convocação da greve não foi, contudo, isento de erros, cuja identificação e debate são necessários para que o futuro possa ser encarado de forma diferente.
A verdade é que as associações sindicais se deixaram fazer reféns da agenda política do Governo, respondendo sempre e da forma por este esperada a cada nova acha que era lançada para alimentar o discurso do "combate aos privilégios". A verdade é que foi feita, desde início, a opção por formas de reacção que sublinham o estatuto de funcionário dos magistrados. A verdade é que houve um claro menosprezo pela necessidade de esclarecimento dos cidadãos, tendo a comunicação sido desenvolvida quase exclusivamente para o "interior do conflito". A verdade é que se assistiu à secundarização da reflexão, debate e divulgação sobre o diagnóstico e as necessárias reformas da justiça.
E estes erros pagam-se caro, na medida em que são susceptíveis de poderem lançar a dúvida na opinião pública quanto ao que é prioritário nas preocupações de juízes e procuradores.
Procurar, pela via da negociação, o reequilíbrio possível entre estatuto sócio-profissional e deveres e incompatibilidades estatutários continua a ser um objectivo legítimo, cabendo ao Governo, nesta matéria, avançar no cumprimento do seu programa, abrindo o debate sobre "a consagração do princípio da carreira plana dos magistrados judiciais e do Ministério Público, permitindo uma progressão profissional não condicionada pelo grau hierárquico dos tribunais e conferindo maior liberdade de escolha dos magistrados segundo critérios de competência e vocação profissional" (do Programa do Governo). Mas, o enquistamento nas questões sócio-profissionais distrai as atenções da política de justiça propriamente dita e subestima a urgência desse debate, que o Governo não quer promover com a sua política de constante provocação do conflito.
O combate central terá de ser o da implementação das medidas necessárias à resolução, do ponto vista da satisfação dos direitos dos cidadãos, dos problemas de funcionamento da justiça que assenta, neste momento, numa estrutura organizativa anquilosada, em que não faz sentir falar genericamente de trabalhar mais mas sim de trabalhar melhor, que só não é mais lenta e mais ineficaz pelo empenho, responsabilidade e dedicação profissional da grande maioria dos que nela exercem funções. Medidas que contribuam de forma séria para superar os factores que geram insatisfação, como sejam os problemas do acesso à justiça, a lentidão, a complexidade e a dificuldade no tratamento das novas realidades. E a crítica pública à prática judiciária reforça a nossa obrigação de participar, de pleno direito, nesse debate, que terá de ser também um exercício de autocrítica mas não de autoflagelação.
Olhando para o sistema de justiça como cidadão e como magistrado do Ministério Público, entendo serem questões centrais que devem merecer, com igual prioridade, atenção:
- A plena efectivação do direito constitucional de acesso ao direito e aos tribunais por parte de todos os cidadãos;
- O(s) processos(s) de ingresso na magistratura, o plano de formação desenvolvido pelo Centro de Estudos Judiciários, a formação contínua, a formação especializada e sua relação com a carreira profissional;
- A modernização do processo e dos métodos de trabalho e condições de funcionamento dos tribunais, associada a uma reorganização da estrutura judiciária e à qualificação e transparente gestão de recursos humanos;
- O funcionamento dos Conselhos Superiores da Magistratura e do Ministério Público e o cabal cumprimento das suas atribuições constitucionais e legais;
- A lei de definição da política criminal e todas as questões respeitantes à sua filosofia e execução;
- A ponderação sobre as condições existentes e as necessárias para uma efectiva afirmação do interesse público na actividade judiciária, representado pelo Ministério Público, em especial nas áreas penal e administrativa.