quarta-feira, 5 de outubro de 2005
"O Meu Monte"
Um blogue hoje criado, da autoria do juiz de direito no Círculo Judicial de Beja, Vítor Sérgio Sequinho dos Santos. Promete.
Palavras
Por Manuel António Pina, no JN de ontem
Até o leitor. Se pensar bem há-de ter em qualquer sítio alguma coisa que lhe pode ser tirada para pagar o défice. Talvez, quem sabe?, a colecção de moedas ou a colecção de calendários. Já se coleccionar acções, ou conselhos de administração, pode estar sossegado que a política de austeridade não chega a tanto. Está mais virada para luxos como reformas, assistência médico-social, medicamentos, emprego e coisas do género.
Na campanha maccarthista de denúncias de "privilégios" que por aí vai, soube-se outro dia por um advogado que escreve nos jornais (ou um jornalista que exerce advocacia) que até a taxa de justiça que os portugueses pagam nos tribunais vai para os bolsos dos juízes. A ideia era, fazendo jus à injustificada fama que os advogados têm de meter as mãos nos bolsos alheios, metê-las no por assim dizer bolso judicial e tirar de lá a taxa para a entregar ao défice. Ora não se veio a apurar que, afinal, a taxa de justiça vai, em boa parte, para a Caixa de Previdência dos advogados? Só no ano passado, por exemplo, os advogados foram lá buscar 8,6 milhões de euros e, a crer nas declarações de IRS de muitos deles, bem devem ter precisado da ajuda.
E os deputados? Afinal também beneficiam (sabe-se lá porquê) dos "privilégios" dos Serviços Sociais do Ministério da Justiça, e recebem senhas de presença, ajudas de custo, subsídios de residência, viagens em 1.ª classe, reformas, eles e os autarcas, antes dos 65 (e até, como recentemente Santana Lopes, antes dos 50 ou dos 40).
Somos todos "privilegiados", ou ainda menos...
Várias Notas
Costuma-se dizer, em jeito de sentença popular, que há males que vêm por bem. Tenho pensado nisso a propósito do que se tem passado entre o governo e as magistraturas. Nem tudo, neste afrontamento de posições, deve ser contabilizado em negativo. A meu ver há muito de positivo a extrair de toda esta dura experiência por que passamos. Assim se saibam colher os ensinamentos necessários sem qualquer espécie de complexos.
Em primeiro lugar, os magistrados, em Portugal, a começar pelos juízes, ainda se não habituaram bem à ideia de viverem fora da órbita dos outros poderes e, nomeadamente, do poder executivo. É um resquício que vem de trás, de longos anos de subalternização e que não foi banido com o «25 de Abril», tal como o poder judicial também não foi verdadeiramente beliscado com a revolução, só nesta última década tendo vindo a ser «posto em causa» com o incremento dos media na área dos tribunais e com a irrupção da «crise de justiça», que muito embora não seja específica do nosso país, tem factores próprios que vêm de todo o nosso clássico atraso, da cultura de submissão e de falta de cidadania, por um lado, e de arrogância dos poderes instituídos, por outro, que foi alimentada durante décadas, e por fim das forças libertadas com a Revolução, que se traduziram numa outra vivência da realidade judiciária. Se o paradigma em que assentava todo o edifício judiciário se vinha revelando desajustado em grande parte dos países da Europa Ocidental, como não haveria de manifestar-se com particular intensidade e desconcerto no nosso país, por força de anomalias disfuncionais de toda a ordem, que a aceleração provocada pelo 25 de Abril, uma ou duas décadas depois, viria contribuir par pôr em evidência?
Ora, este afrontamento, com muitos aspectos de acinte, pode ao menos servir para se colherem as lições de uma outra forma de estar. Os representantes do poder judicial devem aprender finalmente a comportar-se responsavelmente e de uma forma verdadeiramente independente, sem enquistamentos corporativos e sem «cumplicidades» comprometedoras com os outros poderes, nomeadamente com o poder executivo. Destes só há que reclamar o que deles pode e deve ser exigido: o estabelecimento das condições necessárias ao exercício eficaz e independente (também do ponto de vista económico e financeiro) do poder judicial, o que não significa alheamento à prestação de contas à comunidade dos cidadãos, que detém a totalidade da soberania, de que o poder judicial é uma parcela.
E não tenhamos dúvidas: se o sector da administração da justiça é um dos mais resistentes à mudança, como se diz, também outros importantes sectores da sociedade, onde se contam as chamadas «elites», resistem arrogantemente à independência do poder judicial. Como, de resto, se tem visto ao longo dos últimos anos. Ora, é preciso que cada um tenha a noção do seu lugar e que os representantes do poder judicial aprendam de uma vez por todas a ocupar o que lhes compete, sem servilismos de nenhuma espécie, com dignidade institucional, e não temendo as críticas que lhes façam chover sobre as cabeças (venham as que forem bem intencionadas, ainda que contundentes e, quanto às mal intencionadas, deixemo-las com os seus autores, que, mais cedo ou mais tarde, se deslustrarão com elas) e muito menos as ameaças e as pressões, sejam elas explícitas ou camufladas, directas ou em forma de aviso retorcido. É reconfortante cumprirmos o nosso papel com isenção e independência, sem devermos nada a ninguém. Mas temos de reconhecer que esse papel é difícil, sobretudo porque exige uma maturidade cívica e um espírito crítico capaz de forjar independência mesmo em relação às formas mais subtis e refinadas de pressão – os pequenos recados, mandados muitas vezes por vozes «autorizadas», as pequenas insinuações, os elogios de conveniência, etc.
*
Numa assembleia da Ordem dos Advogados, em Coimbra, o oficioso crítico da Justiça em Portugal, António Marinho e Pinto (dizem que a sua formação é anarxista), estilhaçou o ambiente de concórdia que, pelos vistos, se estava pacatamente estabelecendo, quando ele entrou. Na sequência do seu decisivo discurso, relataram as gazetas que se levantaram vozes de apoio. E António Manuel Arnaut falou, a propósito dos juízes, na incapacidade técnica de muitos, aí residindo uma das feridas que era preciso pôr a sangrar, nem que fosse com a ponta feroz de uma unha. Pois bem! O que me pergunto é se a incapacidade técnica dos juízes é algo de saliente em relação à incapacidade técnica de quaisquer outros profissionais, nomeadamente dos advogados. Será que a referida incapacidade técnica se concentrou nos juízes, a ponto de não sobrar nenhuma para as outras profissões forenses? Será ela tão gritante, nesse corpo profissional, que ultrapasse escandalosamente aquela quota de incompetentes que há em todas as profissões e também, naturalmente (peço a devida vénia para o dizer), no seio dos advogados? No meu juízo, isso afigurava-se como evidente, lendo e analisando, por dever de ofício, tanta motivação de recurso e tanto requerimento, muitas vezes salvos – pensava eu – à conta da complacência do tribunal e de uma jurisprudência que só não é taxada de permissiva por estarem em causa direitos fundamentais dos arguidos. No meu modesto entender, haveria uma escassíssima percentagem de peças excelentemente argumentadas, uma fatia maior de peças razoáveis e um número considerável de peças que estão no limiar do tolerável ou abaixo desse nível, tanto mais que qualquer licenciado pode advogar no Supremo, certamente por força da presunção de que todos os advogados estão em pleno gozo da capacidade técnica.
«Que trabalhem! Que trabalhem!» - exaltaram-se algumas vozes nessa assembleia. Como se esses exaltados trabalhassem noite e dia. Como se fossem uns mouros de trabalho. Vistas, porém, as coisas pelo lado fiscal esses esforçados facturam pouco, ou porque realmente trabalhem em permanente abnegação, ou porque o seu trabalho não é devidamente recompensado.
*
Miguel Sousa Tavares escreveu, entre outras pérolas, na sexta-feira passada, que os juízes e magistrados do Ministério Público, em dez anos, desbarataram todo o capital de confiança que neles a população depositava, segundo as sondagens. Porém, Miguel de Sousa Tavares esquece aqui o papel da comunicação social, de que ele é um brilhante (e convictamente brilhante) profissional. Esquece o papel, nem sempre coerente, da comunicação social no condicionamento da opinião pública. Na verdade, a comunicação social, na primeira metade da década de 90, não fez outra coisa que não fosse exaltar os novos juízes (cultos, brilhantes, desinibidos, arrojados) e os novos magistrados do Ministério Público, que desencadeavam processos contra gente poderosa, bem colocada e normalmente imune à acção da justiça. Não se lembram das entrevistas aos magistrados nas salas de audiências?; em casa, na sala de jantar ou no escritório, em frente de recheadas bibliotecas?; em férias, no areal de uma praia? Não se lembram da curiosidade da comunicação social pelas vidas privadas dos juízes e magistrados do Ministério Público?, de como glorificavam a sua grande cultura, o seu espírito desempoeirado, a sua audácia a cortar direito pelos interesses instalados? Pois eu lembro-me. Foi uma fase de casamento feliz entre as magistraturas e a comunicação social. Foi aquela fase em que um grupo de deputados da maioria então no governo trouxe ao Parlamento Alain Mainc para falar da conjunção sinistra entre a comunicação social e os magistrados. Não se lembram? Então, as sondagens traduziam o enorme apreço da opinião pública pelos juízes e magistrados do Ministério Público.
Como é que, a partir de 1995, a comunicação social inverteu essa posição para encher a boca e o ecrã com a «crise da justiça»? Como? Porque a crise começou a ser instalada, umas vezes a partir de factos reais, que reflectiam um desajustamento evidente, e outras vezes, a partir de factos induzidos, como manifestações de altas personalidades contra presumidas perversidades do sistema – e mais do que isso: dos próprios magistrados. Não se lembram das manifestações em prol de Leonor Beleza? Pois! Depois vieram as prescrições das grandes fraudes comunitárias, as acusações sistemáticas ao Ministério Público por parte de personalidades envolvidas em processos- crime (o Ministério Público chegou a ser a nova PIDE!), o processo Otelo, e por aí fora até aos dias de hoje. Como é que a comunicação social passou da referida posição encomiástica para uma posição completamente inversa? É que o que caracteriza a comunicação social nos nossos dias, como se fartou de dizer o sociólogo Pierre Bourdieu, é uma amnésia permanente. Passam bruscamente de um acontecimento a outro como se nada fosse. E às vezes criam mesmo o acontecimento. Como diz o mesmo sociólogo, «Encaminhamo-nos cada vez mais para universos em que o mundo social é descrito-prescrito pela televisão, em que esta se transforma no árbitro do acesso à existência social e política.» Daí que esta seja cada vez mais «um instrumento de criação de realidade» (Sobre a Televisão, Celta Editora, p. 15). E o jornalismo escrito está irremediavelmente prisioneiro dessa lógica, devido à supremacia da televisão, como também refere o citado autor.
As flutuações da opinião pública não terão nada a ver com este comportamento típico da comunicação social?
*
O António Marinho e Pinto voltou à carga com os ataques descabelados aos magistrados. A sua cegueira é de tal ordem que, como D. Quixote, viendo en su imaginación lo que no veía ni había, fantasma coisas mirabolantes a propósito dos magistrados, transformados nos moinhos de vento em cujas velas vai espadeirando a torto e a direito com a sua pena. Desta vez, para além do habitual chorrilho de impropérios, é o «escândalo» das custas judiciais, que segundo ele vão para os bolsos dos magistrados, porque vão enriquecer os cofres dos seus serviços de saúde. Mas, tal como sucedia a D. Quixote, a cutilada que o António Marinho e Pinto desferiu volveu-se em dano próprio. É que foi a maneira de toda a gente ficar a saber que parte das custas cíveis vão, afinal, em maior percentagem do que para os Serviços Sociais do Ministério da Justiça, para os cofres da Caixa de Previdência da Ordem dos Advogados. Assim, o Ministro já disse que ia acabar com esse «desvio» e o António Marinho e Pinto prestou, como se vê, um grande serviço à sua classe.
*
É evidente que os ataques sistemáticos que têm vindo a ser feitos aos magistrados, acentuando injustamente a ideia de que não trabalham e não fazem nada (esta tecla foi batida também pelo Miguel de Sousa Tavares e está a generalizar-se na opinião pública) têm uma consequência imediata (e por mim falo): vão fazer com que os magistrados (pelo menos os que trabalhavam no duro) olhem mais pela sua vida e a encarem também numa perspectiva licitamente lúdica (fins-de-semana, feriados, férias). Ao menos isso. «Se não podem ser beneficiados, também não podem ser prejudicados», foi mais ou menos isto que disse o Procurador-Geral da República, já não sei em que programa televisivo. Às mudanças que se impõem, incluindo o que o presidente da República uma vez designou de «fim do temor reverencial», tem de corresponder um outro figurino de magistrado, menos inspirador de reverência, mas também mais homem comum.
Na prossecução desse objectivo, penso que nos devemos deixar de floreados teóricos nas decisões, de erudição jurídica e de grandes relatórios, assim como é preciso ser mais rigoroso no exame preliminar dos recursos (no caso dos tribunais superiores), deixando prosseguir os que devem prosseguir, mas rejeitando os manifestamente improcedentes (e não estou a falar de expedientes para evitar trabalho), pois tem havido um critério muito lasso nesta apreciação. De contrário, chegaremos às férias com uma porção de processos por decidir e teremos depois, de uma assentada, os que ficaram retidos nas mesmas férias.
*
O debate televisivo sobre a justiça no programa «Prós e Contras» de ontem correu melhor do que o primeiro. Fátima Campos Ferreira é muito interventora, gosta de brilhar pessoalmente e de ser a protagonista do programa, quando os protagonistas deveriam ser os convidados dela. É uma inversão de valores muito comum na comunicação social, em especial na televisão. Os jornalistas ou animadores de programas querem «levar a água ao seu moinho», como se estivessem implicados na defesa de uma causa, e às vezes estão mesmo, e até pior do que isso: estão conluiados politicamente com certas forças partidárias.
Fátima Campos Ferreira, cedendo a esse seu arreigado hábito, tentou na primeira parte do programa instrumentalizá-lo a favor dos seus objectivos, interrompendo constantemente, esvoaçando como é seu costume e metendo aqueles seus apartes que mostram logo de que lado é que ela está (quando não devia estar em lado nenhum). Porém, a segunda parte foi menos má, por força da intervenção do representante dos funcionários judiciais, primeiro, e sobretudo pela intervenção de João Pedroso, que ela escutou sem interromper e que teve o mérito de separar as águas, inibindo-a de prosseguir na senda de questiúnculas secundárias, mas muito rendosas em termos de audiência, que é muito próprio dela. Assim, alguma coisa se salvou.
O Cluny esteve abaixo das expectativas e começou por cometer aquela «gafe» indecorosa de se demarcar do sentimento da classe, ao mesmo tempo que atirou para o ar a acusação (alheia, das bases) de que o governo estaria a retaliar por causa da acção dos magistrados em certos processos que tinham como alvo pessoas de relevo. Depois, teve a preocupação excessiva de piscar o olho ao ministro, exibindo uma espécie de cumplicidade que já se vinha notando nas entre-linhas dos seus discursos.
O presidente da Associação Sindical dos Juízes, a que não pertenço, teve melhor «prestação», como agora se diz, embora caindo em contradições de princípio, que têm a sua raiz na necessidade sentida de mascarar reinvidicações de estatuto sócio-económico (mal assumidas) com nobres objectivos pertinentes ao estatuto funcional. O governo, por seu turno, mascara a sua política com o nobre objectivo da vinculação ao interesse geral, ao interesse dos utentes. Mas sempre assim foi. É o trabalho da ideologia.
Artur Costa (entre os dias 1 e 4 de Outubro)
Em primeiro lugar, os magistrados, em Portugal, a começar pelos juízes, ainda se não habituaram bem à ideia de viverem fora da órbita dos outros poderes e, nomeadamente, do poder executivo. É um resquício que vem de trás, de longos anos de subalternização e que não foi banido com o «25 de Abril», tal como o poder judicial também não foi verdadeiramente beliscado com a revolução, só nesta última década tendo vindo a ser «posto em causa» com o incremento dos media na área dos tribunais e com a irrupção da «crise de justiça», que muito embora não seja específica do nosso país, tem factores próprios que vêm de todo o nosso clássico atraso, da cultura de submissão e de falta de cidadania, por um lado, e de arrogância dos poderes instituídos, por outro, que foi alimentada durante décadas, e por fim das forças libertadas com a Revolução, que se traduziram numa outra vivência da realidade judiciária. Se o paradigma em que assentava todo o edifício judiciário se vinha revelando desajustado em grande parte dos países da Europa Ocidental, como não haveria de manifestar-se com particular intensidade e desconcerto no nosso país, por força de anomalias disfuncionais de toda a ordem, que a aceleração provocada pelo 25 de Abril, uma ou duas décadas depois, viria contribuir par pôr em evidência?
Ora, este afrontamento, com muitos aspectos de acinte, pode ao menos servir para se colherem as lições de uma outra forma de estar. Os representantes do poder judicial devem aprender finalmente a comportar-se responsavelmente e de uma forma verdadeiramente independente, sem enquistamentos corporativos e sem «cumplicidades» comprometedoras com os outros poderes, nomeadamente com o poder executivo. Destes só há que reclamar o que deles pode e deve ser exigido: o estabelecimento das condições necessárias ao exercício eficaz e independente (também do ponto de vista económico e financeiro) do poder judicial, o que não significa alheamento à prestação de contas à comunidade dos cidadãos, que detém a totalidade da soberania, de que o poder judicial é uma parcela.
E não tenhamos dúvidas: se o sector da administração da justiça é um dos mais resistentes à mudança, como se diz, também outros importantes sectores da sociedade, onde se contam as chamadas «elites», resistem arrogantemente à independência do poder judicial. Como, de resto, se tem visto ao longo dos últimos anos. Ora, é preciso que cada um tenha a noção do seu lugar e que os representantes do poder judicial aprendam de uma vez por todas a ocupar o que lhes compete, sem servilismos de nenhuma espécie, com dignidade institucional, e não temendo as críticas que lhes façam chover sobre as cabeças (venham as que forem bem intencionadas, ainda que contundentes e, quanto às mal intencionadas, deixemo-las com os seus autores, que, mais cedo ou mais tarde, se deslustrarão com elas) e muito menos as ameaças e as pressões, sejam elas explícitas ou camufladas, directas ou em forma de aviso retorcido. É reconfortante cumprirmos o nosso papel com isenção e independência, sem devermos nada a ninguém. Mas temos de reconhecer que esse papel é difícil, sobretudo porque exige uma maturidade cívica e um espírito crítico capaz de forjar independência mesmo em relação às formas mais subtis e refinadas de pressão – os pequenos recados, mandados muitas vezes por vozes «autorizadas», as pequenas insinuações, os elogios de conveniência, etc.
Numa assembleia da Ordem dos Advogados, em Coimbra, o oficioso crítico da Justiça em Portugal, António Marinho e Pinto (dizem que a sua formação é anarxista), estilhaçou o ambiente de concórdia que, pelos vistos, se estava pacatamente estabelecendo, quando ele entrou. Na sequência do seu decisivo discurso, relataram as gazetas que se levantaram vozes de apoio. E António Manuel Arnaut falou, a propósito dos juízes, na incapacidade técnica de muitos, aí residindo uma das feridas que era preciso pôr a sangrar, nem que fosse com a ponta feroz de uma unha. Pois bem! O que me pergunto é se a incapacidade técnica dos juízes é algo de saliente em relação à incapacidade técnica de quaisquer outros profissionais, nomeadamente dos advogados. Será que a referida incapacidade técnica se concentrou nos juízes, a ponto de não sobrar nenhuma para as outras profissões forenses? Será ela tão gritante, nesse corpo profissional, que ultrapasse escandalosamente aquela quota de incompetentes que há em todas as profissões e também, naturalmente (peço a devida vénia para o dizer), no seio dos advogados? No meu juízo, isso afigurava-se como evidente, lendo e analisando, por dever de ofício, tanta motivação de recurso e tanto requerimento, muitas vezes salvos – pensava eu – à conta da complacência do tribunal e de uma jurisprudência que só não é taxada de permissiva por estarem em causa direitos fundamentais dos arguidos. No meu modesto entender, haveria uma escassíssima percentagem de peças excelentemente argumentadas, uma fatia maior de peças razoáveis e um número considerável de peças que estão no limiar do tolerável ou abaixo desse nível, tanto mais que qualquer licenciado pode advogar no Supremo, certamente por força da presunção de que todos os advogados estão em pleno gozo da capacidade técnica.
«Que trabalhem! Que trabalhem!» - exaltaram-se algumas vozes nessa assembleia. Como se esses exaltados trabalhassem noite e dia. Como se fossem uns mouros de trabalho. Vistas, porém, as coisas pelo lado fiscal esses esforçados facturam pouco, ou porque realmente trabalhem em permanente abnegação, ou porque o seu trabalho não é devidamente recompensado.
Miguel Sousa Tavares escreveu, entre outras pérolas, na sexta-feira passada, que os juízes e magistrados do Ministério Público, em dez anos, desbarataram todo o capital de confiança que neles a população depositava, segundo as sondagens. Porém, Miguel de Sousa Tavares esquece aqui o papel da comunicação social, de que ele é um brilhante (e convictamente brilhante) profissional. Esquece o papel, nem sempre coerente, da comunicação social no condicionamento da opinião pública. Na verdade, a comunicação social, na primeira metade da década de 90, não fez outra coisa que não fosse exaltar os novos juízes (cultos, brilhantes, desinibidos, arrojados) e os novos magistrados do Ministério Público, que desencadeavam processos contra gente poderosa, bem colocada e normalmente imune à acção da justiça. Não se lembram das entrevistas aos magistrados nas salas de audiências?; em casa, na sala de jantar ou no escritório, em frente de recheadas bibliotecas?; em férias, no areal de uma praia? Não se lembram da curiosidade da comunicação social pelas vidas privadas dos juízes e magistrados do Ministério Público?, de como glorificavam a sua grande cultura, o seu espírito desempoeirado, a sua audácia a cortar direito pelos interesses instalados? Pois eu lembro-me. Foi uma fase de casamento feliz entre as magistraturas e a comunicação social. Foi aquela fase em que um grupo de deputados da maioria então no governo trouxe ao Parlamento Alain Mainc para falar da conjunção sinistra entre a comunicação social e os magistrados. Não se lembram? Então, as sondagens traduziam o enorme apreço da opinião pública pelos juízes e magistrados do Ministério Público.
Como é que, a partir de 1995, a comunicação social inverteu essa posição para encher a boca e o ecrã com a «crise da justiça»? Como? Porque a crise começou a ser instalada, umas vezes a partir de factos reais, que reflectiam um desajustamento evidente, e outras vezes, a partir de factos induzidos, como manifestações de altas personalidades contra presumidas perversidades do sistema – e mais do que isso: dos próprios magistrados. Não se lembram das manifestações em prol de Leonor Beleza? Pois! Depois vieram as prescrições das grandes fraudes comunitárias, as acusações sistemáticas ao Ministério Público por parte de personalidades envolvidas em processos- crime (o Ministério Público chegou a ser a nova PIDE!), o processo Otelo, e por aí fora até aos dias de hoje. Como é que a comunicação social passou da referida posição encomiástica para uma posição completamente inversa? É que o que caracteriza a comunicação social nos nossos dias, como se fartou de dizer o sociólogo Pierre Bourdieu, é uma amnésia permanente. Passam bruscamente de um acontecimento a outro como se nada fosse. E às vezes criam mesmo o acontecimento. Como diz o mesmo sociólogo, «Encaminhamo-nos cada vez mais para universos em que o mundo social é descrito-prescrito pela televisão, em que esta se transforma no árbitro do acesso à existência social e política.» Daí que esta seja cada vez mais «um instrumento de criação de realidade» (Sobre a Televisão, Celta Editora, p. 15). E o jornalismo escrito está irremediavelmente prisioneiro dessa lógica, devido à supremacia da televisão, como também refere o citado autor.
As flutuações da opinião pública não terão nada a ver com este comportamento típico da comunicação social?
O António Marinho e Pinto voltou à carga com os ataques descabelados aos magistrados. A sua cegueira é de tal ordem que, como D. Quixote, viendo en su imaginación lo que no veía ni había, fantasma coisas mirabolantes a propósito dos magistrados, transformados nos moinhos de vento em cujas velas vai espadeirando a torto e a direito com a sua pena. Desta vez, para além do habitual chorrilho de impropérios, é o «escândalo» das custas judiciais, que segundo ele vão para os bolsos dos magistrados, porque vão enriquecer os cofres dos seus serviços de saúde. Mas, tal como sucedia a D. Quixote, a cutilada que o António Marinho e Pinto desferiu volveu-se em dano próprio. É que foi a maneira de toda a gente ficar a saber que parte das custas cíveis vão, afinal, em maior percentagem do que para os Serviços Sociais do Ministério da Justiça, para os cofres da Caixa de Previdência da Ordem dos Advogados. Assim, o Ministro já disse que ia acabar com esse «desvio» e o António Marinho e Pinto prestou, como se vê, um grande serviço à sua classe.
É evidente que os ataques sistemáticos que têm vindo a ser feitos aos magistrados, acentuando injustamente a ideia de que não trabalham e não fazem nada (esta tecla foi batida também pelo Miguel de Sousa Tavares e está a generalizar-se na opinião pública) têm uma consequência imediata (e por mim falo): vão fazer com que os magistrados (pelo menos os que trabalhavam no duro) olhem mais pela sua vida e a encarem também numa perspectiva licitamente lúdica (fins-de-semana, feriados, férias). Ao menos isso. «Se não podem ser beneficiados, também não podem ser prejudicados», foi mais ou menos isto que disse o Procurador-Geral da República, já não sei em que programa televisivo. Às mudanças que se impõem, incluindo o que o presidente da República uma vez designou de «fim do temor reverencial», tem de corresponder um outro figurino de magistrado, menos inspirador de reverência, mas também mais homem comum.
Na prossecução desse objectivo, penso que nos devemos deixar de floreados teóricos nas decisões, de erudição jurídica e de grandes relatórios, assim como é preciso ser mais rigoroso no exame preliminar dos recursos (no caso dos tribunais superiores), deixando prosseguir os que devem prosseguir, mas rejeitando os manifestamente improcedentes (e não estou a falar de expedientes para evitar trabalho), pois tem havido um critério muito lasso nesta apreciação. De contrário, chegaremos às férias com uma porção de processos por decidir e teremos depois, de uma assentada, os que ficaram retidos nas mesmas férias.
O debate televisivo sobre a justiça no programa «Prós e Contras» de ontem correu melhor do que o primeiro. Fátima Campos Ferreira é muito interventora, gosta de brilhar pessoalmente e de ser a protagonista do programa, quando os protagonistas deveriam ser os convidados dela. É uma inversão de valores muito comum na comunicação social, em especial na televisão. Os jornalistas ou animadores de programas querem «levar a água ao seu moinho», como se estivessem implicados na defesa de uma causa, e às vezes estão mesmo, e até pior do que isso: estão conluiados politicamente com certas forças partidárias.
Fátima Campos Ferreira, cedendo a esse seu arreigado hábito, tentou na primeira parte do programa instrumentalizá-lo a favor dos seus objectivos, interrompendo constantemente, esvoaçando como é seu costume e metendo aqueles seus apartes que mostram logo de que lado é que ela está (quando não devia estar em lado nenhum). Porém, a segunda parte foi menos má, por força da intervenção do representante dos funcionários judiciais, primeiro, e sobretudo pela intervenção de João Pedroso, que ela escutou sem interromper e que teve o mérito de separar as águas, inibindo-a de prosseguir na senda de questiúnculas secundárias, mas muito rendosas em termos de audiência, que é muito próprio dela. Assim, alguma coisa se salvou.
O Cluny esteve abaixo das expectativas e começou por cometer aquela «gafe» indecorosa de se demarcar do sentimento da classe, ao mesmo tempo que atirou para o ar a acusação (alheia, das bases) de que o governo estaria a retaliar por causa da acção dos magistrados em certos processos que tinham como alvo pessoas de relevo. Depois, teve a preocupação excessiva de piscar o olho ao ministro, exibindo uma espécie de cumplicidade que já se vinha notando nas entre-linhas dos seus discursos.
O presidente da Associação Sindical dos Juízes, a que não pertenço, teve melhor «prestação», como agora se diz, embora caindo em contradições de princípio, que têm a sua raiz na necessidade sentida de mascarar reinvidicações de estatuto sócio-económico (mal assumidas) com nobres objectivos pertinentes ao estatuto funcional. O governo, por seu turno, mascara a sua política com o nobre objectivo da vinculação ao interesse geral, ao interesse dos utentes. Mas sempre assim foi. É o trabalho da ideologia.
Subscrever:
Mensagens (Atom)