Público
- 08/02/2013 - 00:00
O Renato nasceu com os braços e pernas muito pouco
desenvolvidos, faltando-lhe dedos, com a cara irreversivelmente deformada, o
nariz largo, as orelhas implantadas mais abaixo do que é habitual, sem fenda
palatina e com muitas outras deficiências. Por si só nunca poderá tratar da sua
higiene pessoal, fazer as suas necessidades fisiológicas, vestir-se,
alimentar-se e falar. Nunca terá capacidade de expressão gestual, nem poderá
escrever. O seu rosto nunca adquirirá capacidade expressiva perceptível, não
conseguirá deslocar-se, ler, estudar e instruir-se. Não poderá brincar, sozinho
ou com meninos da sua idade. A consciência das suas limitações - dado que o seu
desenvolvimento mental é aparentemente normal - causará desequilíbrios
emocionais profundos, com grande tendência para a criação de quadros
psiquiátricos graves.
Este o quadro trágico que é vivido
pelo Renato e pela sua família, nomeadamente a mãe Júlia que, durante a
gravidez, fora acompanhada medicamente, tendo feito as ecografias que devia
fazer. Os relatórios médicos das ecografias tinham sido sempre
tranquilizadores: a gravidez era normal e tinha uma evolução favorável com a
visualização dos membros, coluna e cabeça, existência de mãos e a visualização
de pés, bem como do lábio superior. A distância entre aquilo que lhe tinha sido
dito e aquilo que vivia era incomensurável e irremediável. A vida de Júlia
nunca mais seria a mesma e a vida do Renato iria ser sempre uma enorme tragédia
cheia de dificuldade e limitações. E com custos económicos imensos.
Seria o médico radiologista que acompanhou
Júlia na sua gravidez e a sossegou quanto à evolução do seu feto responsável
pelo que sucedera? E responsável perante quem? Perante o Renato? Perante Júlia?
Perante Júlia, não houve muitas
dúvidas que existia responsabilidade, tanto do médico como da clínica: no
entender dos tribunais, onde o caso foi definitivamente decidido no passado dia
17 de Janeiro no Supremo Tribunal de Justiça, tinham sido violados os mais
elementares deveres de cuidado no que respeita à elaboração do diagnóstico,
tendo Júlia, pela errada informação que lhe fora prestada, sido impedida de
recorrer à interrupção voluntária de gravidez, o que, segundo se apurou, teria
feito atentas as circunstâncias. E daí decorria o dever de a indemnizarem.
E quanto ao Renato? Tinha ele o direito
a ser indemnizado? Convém ter presente que a situação de Renato não resultava
de qualquer intervenção ou omissão do médico. Sempre sofreria das limitações
que apresentava, quer o médico as tivesse detectado como devia, quer não as
tivesse detectado como sucedeu. Eram irreversíveis e incuráveis. Mas teria o
direito a ser indemnizado porque podia não ter nascido, não sofrendo o que
sofria e não gastando o que tinha de gastar para sobreviver? Teria um direito
indemnizável a não ter existido?
A questão não é simples. Nem
nacional, nem internacionalmente. Na maioria dos casos, os tribunais têm
reconhecido o direito à indemnização da mãe, mas não da criança deficiente, o
que, não obstante se fundamentar em importantes razões jurídicas, é chocante
face à situação da criança. As decisões no caso do Renato não foram unânimes:
no tribunal de 1.ª instância, médico e clínica foram condenados a pagar a
Júlia, a título de danos morais, a quantia de € 200.000,00, mas absolvidos
quanto ao pedido efectuado em nome do Renato, nomeadamente para suportarem
todas as despesas que a sua sobrevivência exigia. No Tribunal da Relação, para
onde recorreram ambas as partes, o entendimento dos juízes desembargadores foi
mais justo e, ainda assim, juridicamente fundamentado: embora não reconhecendo
qualquer direito ao Renato a não existir e, portanto, a ser indemnizado por ter
nascido nas condições em que nasceu, condenaram o médico e a clínica a pagar à
Júlia todas as despesas futuras relativas ao acompanhamento clínico permanente
de que o Renato necessita e continuará a necessitar: tratamento e
acompanhamento técnico, próteses, educação e instrução especial com técnicos e
material adaptados ao seu estado clínico.
O STJ, não obstante os três juízes
conselheiros do STJ, Ana Paula Boularot, Pires da Rosa e Maria dos Prazeres
Pizarro Beleza, não terem sido unânimes em todos os aspectos da decisão, veio,
agora, confirmar a decisão do Tribunal da Relação: não existe um direito do
Renato a ser indemnizado pela vida que lhe calhou, mas a mãe deve ser
indemnizada não só por ter sido impedida de poder pôr termo à gravidez, como
pelos danos que lhe foram causados ao ver-se obrigada a educar/sustentar um
filho profundamente deficiente. No fundo, está-se a reconhecer, ainda que
indirectamente, um direito ao Renato a ser indemnizado pelas suas especiais
condições de vida ...
Advogado. Escreve à
sexta-feira ftmota@netcabo.pt