terça-feira, 25 de julho de 2023

Casus belli

 

25 de Julho de 2014, 19:15

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Oprofessor Viriato Soromenho Marques e eu temos feito um casus belli da “almofada financeira” do Estado (vide  1 e 2) que, no final de 2013, ascendia a 17,3 mil milhões de euros (óptica de compromisso) e 20,1 mil milhões (óptica de caixa, i.e., saldo em contas) sendo 15,3 mil milhões de euros geridos pelo IGCP (Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública). Em maio de 2014, o saldo em contas das Administrações Públicas cresceu para 25,6 mil milhões de euros.

Não discordando da necessidade de uma almofada financeira das Administrações Públicas, defendo que, nos termos da Constituição, deve ser a Assembleia da República – e não o Ministério das Finanças ou o IGCP – a definir o que é a almofada financeira, o seu montante e a despesa com a mesma. Sobretudo porque os montantes envolvidos em operações sobre a dívida são muito elevados e sujeitos a muito poucas restrições, quando comparados com os constrangimentos impostos à restante despesa pública. Acresce que, a despesa com juros que resulta da dívida contraída para criar a almofada financeira, é muito mais elevada do que o indicado pelo anterior presidente do IGCP no Parlamento.

O caso BES traz novamente à berlinda a questão da almofada financeira. É que, IGCP, Segurança Social, Administração Regional e Local e Administração Central depositavam, em maio de 2014, cerca de 42% da almofada financeira, aproximadamente 10,8 mil milhões de euros, na banca comercial. Esses depósitos não estão seguros – só depósitos até 100.000 euros são seguros.

Por outro lado, o BES – e provavelmente a globalidade da banca nacional – enfrentou ao longo das últimas semanas uma fuga de depósitos (as estatísticas serão divulgadas em Agosto e Setembro). Por isso, é muito provável que o BES concorra aos próximos leilões para depósitos do IGCP e restante Administração Pública oferecendo taxas muito atractivas e, portanto, é possível que uma parte crescente da almofada financeira venha a ser depositada junto do BES. Se isso ocorrer, o Estado passaria a apoiar o BES indirectamente ao depositar mais fundos junto dessa instituição, o que representaria um risco para o Estado.

Mas não cabe ao IGCP nem à restante Administração Pública utilizar a almofada financeira para apoiar o BES ou outro qualquer banco comercial. O BES pode, para esse efeito, recorrer ao Eurosistema, que cede liquidez, mas exige em contrapartida garantias, ou pode ainda recorrer à recapitalização pública, nos termos de legislação recentemente aprovada na Assembleia da República.

Na minha perspectiva, a Assembleia da República deveria determinar o depósito, junto do Banco de Portugal, da quase totalidade dos fundos públicos tutelados pelo IGCP e restante Administração Pública, uma vez que o objectivo da almofada financeira não é obter juros, mas sim, permitir às Administrações Públicas dispor de um fundo de maneio razoável, em situação de emergência.

 Republicado a 27.7.2014, 09:00: Corrige palavra traz.


Obiang e o Acordo Ortográfico

 

25 de Julho de 2014, 19:04

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Durante a Cimeira em Dili da CPLP, o presidente Obiang da Guiné Equatorial terá balbuciado três palavras em português: sim, sim e sim. O país, entretanto, anunciou a sua adesão à Comunidade de Países de Língua Oficial Portuguesa, na página oficial do seu Governo na Internet em três línguas: espanhol, inglês e francês. Parece que a ausência da língua portuguesa se deveu a uma dúvida metódica do ditador: a de se deveria ou não utilizar o chamado Acordo Ortográfico. Compreensível, não acham? É que, por exemplo, Obiang queria escrever já em escrita acordista “A partir de agora, ninguém para a Guiné Equatorial!”. Mas alguém lhe terá explicado que em versão não acordista o que ele queria anunciar se escreve “A partir de agora, ninguém pára a Guiné Equatorial!”. Uma mera questão de um acento que muda. Ou será de um assento que, para Teodoro, não muda desde o longínquo ano de 1979?

A Mannschaft

 

25 de Julho de 2014, 16:27

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Ainda não me iniciei em posts desportivos, eu que sou um acompanhante atento da maioria da actualidade de várias modalidades. Embora com algum atraso, estreio-me agora e ainda a pretexto do Mundial de futebol. “A selecção brasileira é uma selecção sem vícios: não fuma, não bebe e não joga”, li, um dia, de um humorista brasileiro. Não sei quando esta frase surgiu, mas no Mundial 2014 aplicou-se em cheio, claro está quanto ao facto de nada jogar.

A Alemanha venceu e bem. Foi a selecção que melhor combinou o colectivo com o individual. Sem vedetismos inconsequentes e sem essa praga endémica de tatuagens, penteados e acessórios. E venceu porque tirou ilações de erros passados. Investiu na formação, sem a impaciência do tempo. Fez reformas de fundo na estrutura do seu futebol, sem alardes. Esta mannschaft é o resultado de muita disciplina, qualidade, formação, coesão, profissionalismo, rigor. São alemães … com tudo o que isso transporta de uma relação de “amor-ódio”. Com ou sem a Chanceler.

Já em termos vaticanistas, o Papa Emérito mais profundo na teologia venceu o Papa Francisco mais profundo no carisma. Utilizando o jargão futebolístico, terá havido nesta final “uma mãozinha” táctica luteranista?

Mas não sabiam mesmo nada do Espírito Santo?

25 de Julho de 2014, 13:50

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BES 1

Um dos traços mais espantosos do dia de ontem foi o silêncio daquela avalanche de comentadores que, mesmo ao longo dos últimos dias, tinha vindo a manifestar confiança na estabilidade do Grupo, na capacidade de entendimento da Família e até na superior argúcia de Ricardo Salgado. Agora que as holdings do GES faliram e em plenas aventuras judiciais do ex-presidente do BES, a culpa foi evidentemente dos outros: os testes de stress do BCE não funcionaram, a troika não cuidou de estudar os bancos como devia, o Banco de Portugal faz o que podia coitado, mas admitir que há poderes financeiros que produzem lixo tóxico porque é assim que absorvem riqueza, isso nem se pode sequer imaginar.

Ao longo dos últimos quinze anos, pelo menos, tenho vindo a alertar para cada um dos sintomas desta epidemia. Todos estavam à vista desarmada. O relatório do Senado norte-americano sobre o BES Cayman e o BES Miami e a fortuna de Pinochet, não se sabia? Os trânsitos de dinheiros da Portucale ou dos submarinos, não estavam registados? O gigantesco dossier Escom, ninguém o conhecia? O dinheiro do Mensalão, onde é que aterrou? As comissões angolanas, não tinham dado aquele problemita no IRS? O dossier de Queiroz Pereira, não estava em cima da secretária? O testemunho do contabilista do polvo do Luxemburgo e de Miami, não foi lido por ninguém?

Foi porque sabia que disso falei ao longo dos anos. Avisando e procurando evitar vergonhas como a amnistia fiscal. A insistência não era justificada? Tanto que era que Ricardo Salgado mandou publicar em 2009 um comunicado em que, a propósito dos 4 milhões de euros de Pinochet nas contas do BES, me acusava de “estranha e patológica obsessão”. Repetiu essa acusação numa entrevista (veja o vídeo aqui). Esta frase de Salgado é uma das saborosas medalhas que me ficam para a vida.

Por isso, em afável homenagem aos comentadores que garantiam religiosamente a solidez do Espírito Santo, aqui deixo duas páginas de um livro simples, para jovens, que publiquei com Mariana Mortágua no início de 2013 (“Isto é um Assalto”, ilustração de Nuno Saraiva, edição da Bertrand, basta clicar na imagem para ver com maior resolução), que registava como andavam as coisas da Família

Fica então a pergunta: se qualquer pessoa podia perceber os riscos da Família, porque é que a justiça, o Banco de Portugal e os poderes nacionais ignoraram a evidência? Veja-se como procedeu Queiroz Pereira: quando entrou em guerra com Salgado, montou uma equipa de 16 pessoas, trabalharam um ano e juntaram provas sobre a marosca. Bastava rigor e vontade. Portugal não se protegeu da maior fraude financeira da sua história porque faltou rigor e vontade aos seus mandantes. E não é difícil perceber porquê, como expliquei aqui ainda ontem.

Ernestina, para conhecer o tempo dos nossos avós

 

25 de Julho de 2014, 08:30

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rentes

Rentes de Carvalho, que tem hoje 84 anos, foi obrigado pela ditadura a exilar-se e fez uma longa carreira como escritor na Holanda, depois de percorrer outras paragens, antes de ser descoberto em Portugal. A sua magnífica biografia romanceada, Ernestina, descreve os anos entre 1930 e 1950, um país sorumbático, onde tudo ficava tão longe, mas mostra-nos também o esforço de sobrevivência e de dignidade daquela gente condenada. Rui Lagartinho, aqui no Público, chamou-lhe “uma aguarela de gentes , costumes e tradições das paisagens da aldeia, da vida no Porto ou em Gaia”.

Havia um encanto parado: “As casas e as pessoas, os animais, os cheiros, a música dos chocalhos, os sinos a tocar à reza, o gemer dos carros de bois, os montes coroados de pinhos e as encostas que ao longo do dia mudam de cor, ela era um todo harmonioso, aconchegado, imutável”. E havia carinho e havia violência.

Mas havia sobretudo pobreza, tanta pobreza: “Casa não é bem o termo. Por ser grande demais também não se lhe poderia chamar casebre. Nem palheiro, embora fosse coberta de colmo. Mais tarde, quando a percorri com vagar, iria dar-me conta de que era uma construção baixa, duma porta só, duas ou três janelas sem vidraças, aqui e além frestas estreitas por onde entrava um pouco de ar e um pouco de luz. Para a esquerda ficava a cozinha, atrás dela uma enfiada de alcovas, a adega, as tulhas, a arrumação. À direita havia um curral para as ovelhas, seguia-se o estábulo para a junta de vacas e, separadas delas por um tabique, estavam duas parelhas de mulas. Ao fundo ouvia-se o grunhir dos porcos. Tudo sob o mesmo tecto.”

Com Ernestina, olhamos para os nossos avós e é assim que conhecemos Portugal.