domingo, 3 de julho de 2011

Citius


Juízes e funcionários judiciais consideram "decepcionantes" os resultados das alterações ao sistema informático da Justiça (Citius) e manifestaram-se "preocupados" com a sua actual "segurança, eficácia e funcionalidade".
Comentando à agência Lusa um relatório interno do Instituto de Tecnologias de Informação da Justiça (ITIJ) que considera que a proposta da empresa Critical Software para o sistema informático da justiça não acrescenta segurança e mantém algumas das suas fragilidades, o presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) manifestou a insatisfação da classe face ao sistema, que os obriga a despender mais tempo para efectuar o mesmo trabalho.
António Martins considerou que a actual situação do Citius "é preocupante", pois "funciona mal", mantém a "falta de segurança" e "é ineficaz".
De acordo com o presidente da ASJP - que afirmou não conhecer ainda os pormenores do relatório do ITIJ a que a Lusa teve acesso -, com o actual sistema informático, os juízes gastam "mais 114 por cento" de tempo do que gastavam anteriormente a trabalhar nos mesmos processos.
"A informática tem de servir para facilitar e não para complicar", argumentou António Martins, sublinhando que "há muito tempo que os juízes alertam" para a resolução deste problema, mas até à data nada foi feito.
Por seu turno, o presidente da Associação Sindical dos Funcionários Judiciais, Fernando Jorge, manifestou-se preocupado com a segurança do Citius, mas mais preocupado ainda com a funcionalidade e com a eficácia daquele sistema.
DN, 03.Jul.2011

Criminalização do enriquecimento ilícito


Ministra da Justiça quer criminalizar enriquecimento ilícito
A ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, afirmou esta sexta-feira no Parlamento que a revisão do Código Penal e do Código de Processo Penal vai incluir a criminalização do enriquecimento ilícito.
Durante o debate do Programa do Governo no Parlamento, a seguir à intervenção da ministra da Justiça, o deputado do PCP João Oliveira criticou-a por não se ter referido ao combate ao enriquecimento ilícito.
“Quanto à criminalização do enriquecimento ilícito - e recordo também aqui, quanto ao crime urbanístico, eu não referi nesta intervenção, mas está no Programa - naturalmente que a revisão do Código Penal e do Código de Processo Penal vai acomodar essas soluções. Elas foram já claramente assumidas e, portanto, obviamente que assim será”, respondeu Paula Teixeira da Cruz.
A ministra da Justiça aproveitou para assinalar que o executivo PSD/CDS-PP se compromete, no Programa do Governo, a “estender aos autarcas o regime que já existe na Constituição para os deputados e para os membros do Governo” quanto à suspensão do exercício de funções.
“É uma questão de higiene política e de credibilização das instituições”, defendeu, recebendo palmas.
Em resposta a questões colocadas pelos deputados, Paula Teixeira da Cruz disse também que o Governo pretende “libertar meios para o judiciário, restringindo a enorme e brutal máquina administrativa” do Ministério da Justiça, considerando que isso permitirá “reforçar os meios de combate à corrupção”.
A ministra da Justiça apontou a necessidade de “clarificar legislativamente” a questão do visto prévio do Tribunal de Contas, “porque, em rigor, nos termos da actual lei, sem o visto prévio o acto ou contrato não produz efeitos jurídicos úteis”, mas “a prática depois tem desvirtuado a lei”.
Quanto ao acesso à justiça, segundo a ministra “há que rever de facto as custas, e mais, uniformizar as custas”, porque “não é necessária tanta tabela de custas”.
Ainda em resposta aos deputados, Paula Teixeira da Cruz observou que “ninguém sabe, neste momento, porque não há inventário, qual é o património do Ministério da Justiça” e questionou por que motivo há “tantas obras nalguns sítios e tão poucas noutros, onde elas são precisas”.
A ministra afirmou que se impõe “centralizar a gestão do património”, acrescentando: “Gostava que o Governo terminasse o seu mandato numa situação em que não fosse possível ver tribunais instalados em partes de edifícios de juntas de freguesia vivendo da boa vontade dos operadores judiciários”.
Jornal de Notícias, 02 de Julho de 2011


Justiça: reformas anunciadas pelo Governo


A ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, anunciou no Parlamento, uma revisão dos Códigos Penal e Processual Penal e Processo Civil. O objetivo é o de recuperar a confiança na Justiça, nas Instituições e nas pessoas. O novo paradigma da justiça deve ser eficiente, rápido e justo, com vista a acabar com as filas de espera na justiça.

No segundo dia do debate na generalidade do Programa do XIX Governo Constitucional, a recém-empossada ministra da Justiça estreou-se no Parlamento em funções executivas. A advogada que até 2009 exerceu a função de presidente da Assembleia Municipal de Lisboa, anunciou aos parlamentares a intenção do Governo plasmada no seu programa de proceder a uma profunda reforma dos processos penal e civil.

Realçando a perda de confiança generalizada na justiça e nas suas Instituições e operadores, a nova ministra considerou ser "tempo de virar a página" e recuperar a confiança na justiça. "Desbaratada a confiança nos tribunais, no Ministério Público, na advocacia, perante a indefinição de vários regimes, é tempo de virar a página e de voltar a criar confiança a partir de valores e princípios partilhados e de uma visão clara contra os direitos e interesses legítimos que o Direito deve satisfazer", sublinhou. 

Não se limitando a fazer o diagnóstico da situação, a responsável pela pasta da justiça aponta a solução. Mudar de paradigma é essencial sendo que o novo deve assentar na eficiência, rapidez e justiça. 

Aumentar a eficiência e acabar com as filas de espera 

Os tribunais "estão estrangulados com cargas insuportáveis de trabalho" sendo por isso necessário, do ponto de vista da advogada agora investida de poderes executivos, criar uma nova justiça de proximidade ajustada com as estruturas judiciárias reais, apostando claramente numa estratégia que ponha fim às listas de espera nos tribunais. Desiderato a que aliás, o Governo está obrigado na sequência da assinatura do memorando com a "troika" que abriu portas à concessão de ajuda ao nosso país pelo FMI, BCE e União Europeia.  "Há também que criar condições para que aumentem significativamente os ganhos de eficiência dos procedimentos judiciais e, para que tal seja alterado, importa criar mecanismos de celeridade, de simplificação e de maleabilidade processual", defendeu a governante. 

Para mudar o paradigma da justiça e cumprir os objetivos assumidos pelo Estado português e ao mesmo tempo melhorar o estado da justiça, Paula Teixeira da Cruz anunciou uma profunda reforma dos Processos Penal e Civil.  

O combate à corrupção, a independência do poder judicial e a autonomia do ministério Público "são objetivos estratégicos" do Governo. A realização da justiça e a reconquista da confiança pelos cidadãos "impõe um combate determinado à corrupção e aos conflitos de interesse". "A corrupção não mina só o Estado, mas a própria sociedade e empobrece-a ética, moral e economicamente", ressalvou. Assume por isso o caráter de objetivo estratégico, o aumento da eficiência, a diminuição dos desperdícios e a centralização de equipamentos para "libertar recursos para o judiciário", o que permitirá "reforçar o combate à corrupção" 

Paula Teixeira da Cruz anunciou estar disposta a "institucionalizar o diálogo estratégico com os órgãos representativos das várias profissões jurídicas".  

Reduzir as "disfunções" do processo penal 

A reforma de um Processo Penal é sempre muito sensível uma vez que se prende e se entrecruza com direitos do ser humano que a nossa Constituição à semelhança de Convenções internacionais a que o Estado português está obrigado, impõem. 

Constata-se no entanto, que na aplicação das leis processuais resulta que em grande número de casos o tempo que medeia a prática do crime e respetiva violação de um ou mais direitos e o momento em que o prevaricador é julgado e condenado, decorre um tempo que na generalidade dos operadores considera na maior parte das situações excessivo. Uma das consequências é uma sensação que geralmente se cria de que a justiça vem "tarde e a más horas" não cumprindo na íntegra as suas funções sancionatórias e reparadoras. 

O Governo pretende que a justiça reconquiste a confiança das pessoas e para isso tem de ser mais próxima, mais eficiente e mais justa.  Atendendo a esses objetivos, o Executivo de Passos Coelho pretende aproximar alguns institutos do direito processual penal ao seu congénere civil. Um deles é o da limitação de número de testemunhas. 

Limitar número de testemunhas a apresentar 

No processo civil, as partes que litigam vêm o Código Processual Penal limitar o número de testemunhas a apresentar quer em número total quer em termos de testemunha por quesito (facto a provar em audiência de tribunal).

Pelo contrário, em Processo Penal, quer os arguidos, quer os assistentes (em grande parte os ofendidos pelo crime) quer a acusação seja ela pública através do Ministério Público seja ela particular pelo Assistente, não há no momento presente qualquer limite ao número de testemunhas. Ora, do ponto de vista da responsável pela pasta da Justiça, esta ausência de limitação contribui decisivamente para "a sua disfunção". "Em definitivo acabar com a não limitação do número de testemunhas que permite eternizar os processos e inviabilizar a concretização da Justiça", é a intenção anunciada por Paula Teixeira da Cruz perante os deputados da Assembleia da República. "Se na justiça cível há um número limitado de testemunhas, o mesmo deve suceder no Processo Penal, porque essa é uma das razões da sua disfunção", acrescentou. 

Outra aposta importante na área penal é a do reforço da posição e da autonomia do Ministério Público ao mesmo tempo que se pretende reforçar a sua responsabilização.  

Grande reforma que poderá suscitar alguma polémica no seio da comunidade jurídica é a mudança de um paradigma atual e que proíbe o juiz que faz qualquer ato de instrução de um determinado processo penal vir a ser o responsável pelo futuro julgamento desse mesmo processo. "No exercício da ação penal, cabe-lhe dirigir toda a investigação num modelo em que o magistrado que acusa é o magistrado que deve assegurar o processo na fase de julgamento", anunciou Paula Teixeira da Cruz. Mas o programa do Governo não se limita às questões processuais, querendo entrar mesmo pela questão da tipificação dos crimes e aclaração legislativa. 

Enriquecimento ilícito tipificado 

A uma interpelação do PCP, Paula Teixeira da Cruz anunciou a intenção de tipificar o crime de enriquecimento ilícito. "Quanto à criminalização do enriquecimento ilícito - e recordo também aqui, quanto ao crime urbanístico, eu não referi nesta intervenção, mas está no Programa - naturalmente que a revisão do Código Penal e do Código de Processo Penal vai acomodar essas soluções. Elas foram já claramente assumidas e, portanto, obviamente que assim será", garantiu. Neste âmbito aproveitou a ocasião para relembrar que o programa do Governo se compromete a "estender aos autarcas o regime que já existe na Constituição para os deputados e para os membros do Governo" quanto à suspensão do exercício de funções.  "É uma questão de higiene política e de credibilização das instituições", defendeu. 

Uma reforma "profunda" do processo civil 

No âmbito civil, o Governo tenciona também introduzir aquilo que denomina de "profunda" reforma em todo o processo civil. "Não temos por hábito deitar fora o que de bom foi feito para trás porque há um trabalho de grande qualidade recentemente produzido no âmbito da comissão da reforma do processo civil, que o Governo propõe recuperar como ponto de partida para as respostas a fazer", afirmou Paula Teixeira da Cruz durante a discussão do programa de Governo. 

A governante especificou algumas das reformas que pretende introduzir no processo civil. Terão de ser consagradas novas regras de gestão e tramitação processual e tornar "obrigatória a audiência preliminar tendo em vista a fixação após debate das questões essenciais de facto carecidas de prova". 

Acelerar o processo de execução 

Outro grave problema para a justiça portuguesa é a da ação executiva. O modelo implementado deverá servir, para a governante, para "resolver as pendências e dar aos credores meios rápidos de satisfação dos seus créditos". "A solução deve passar pela extinção da ação executiva sempre que o título seja uma sentença, devendo a decisão judicial ser executada em liquidação de sentença ou tramitar como incidente da mesma". Se o título executivo não for uma sentença, então "deve ser criado um processo abreviado que permita a resolução célere dos processos sem prejuízo da reponderação dos títulos executivos".
 
"O problema das filas de espera nos tribunais terá de ser resolvido designadamente com a criação de juízes liquidatários, nomeadamente nos tribunais fiscais, impondo-se igualmente a reforma do processo tributário", referiu ainda a responsável pela pasta da justiça.

RTP, 01.06.2011

A Dignidade dos Juízes


A dignidade dos Juízes é um bem essencial e intemporal, não como ornamento dos Magistrados ou como privilégio pessoal, mas como penhor de administração de uma Justiça isenta e imparcial que é devida a todos os que dela carecem.

Em épocas de crise socio-económica, são de esperar frequentes afirmações que visam deliberadamente a dignidade da Magistratura Judicial, às vezes proferidas com leviandade surpreendente.
Não devem os Juízes deixar-se deprimir ou desmotivar por tais asserções, desde que, com elevação e serenidade, dêem o melhor de si próprios aos que demandam a Justiça em busca de sentenças isentas, céleres e devidamente estruturadas, fundamentadas em aquisições técnico-científicas consolidadas e actualizadas.
A fundamentação jurídica das decisões reveste-se de valor fundamental, pois ela é devida pelo Juiz à Sociedade, em nome de quem  exerce o difícil múnus de julgar.
Veritas non auctoritas facit judicium! É a fundamentação científica e técnica que legitima as decisões judiciais, não a autoridade soberana dos tribunais.
Isso nada tem a ver com uma concepção sacralizada ou anacrónica da Justiça. Pelo contrário, tem a ver, como dizia um grande Juiz Português, o saudoso Conselheiro Arala Chaves, «com o dever que se contrai com a Sociedade ao aceitar-se ser Juiz».
Conselheiro Álvaro Rodrigues, Correio da Manhã, 02.06.2011

A CHANCELA – V

A velha era já bem conhecida dos funcionários do tribunal. E levava muito chegada a si uma pequena cesta de vime, de cujo interior surdiam ruídos leves, uma espécie de arranhadelas espaçadas. Calçava tamancos pretos e vestia uma blusa com notinhas amarelas.
O oficial Pereira perguntou-lhe: – «O que traz aí?» Ela sorriu, sem responder, enristando contra ele o único dente amarelecido. O funcionário, ainda: – «Que quer vossemecê?». Ela sorriu outra vez e disse, com certo orgulho: – «Queria falar com ele. Só com ele.» O Pereira retorquiu-lhe: – «Julga que é assim tão fácil ser recebida por um senhor magistrado» Ela adiantou, então, uma justificação: – «Eles agora são meus amigos; é por isso que queria falar só com ele.»
Aproximou-se outro funcionário e ela cumprimentou-o familiarmente: – «Olá». Ele bateu-lhe no ombro e disse: – «É uma boa cliente; e hoje vem muito catita; se fosse mais nova... Ouça lá, como vai isso, agora?» E ela, prontamente: – «Agora tratam-me bem. É por isso que queria falar com sua excelência – «Com o senhor juiz – perguntou ele, justificando-se de imediato: – «Olhe que não sei; como vossemecê é uma cliente antiga, pode ser; mas não serei eu que vou anunciá-la». Ela: – «Queria falar com ele. Só os dois, mais ninguém». Ele, ainda: – «O que tem vossemecê ai no cabaz?» Ela, gozosa e sorrindo abertamente: – «Nada, meu senhor, nada; línguas de perguntador».
Esperou, sentada num dos bancos da sala de audiências, para onde a mandaram, cochichando a intervalos com um homem pouco mais novo, que estava à espera da sua vez para ser julgado. Disse-lhe então, ao ouvido: – «Não tenha medo; este juiz é muito justiceiro. Eu tive aqui uma questão e sei que ele é muito justiceiro». Olhou em redor e acrescentou, daí a pouco: – «Vossemecê não ouviu falar? Olhe que veio nos jornais». O homem disse: – «Esteja caladinha». Ela certificou-se de que o juiz e o oficial estavam absorvidos pelo julgamento e acrescentou: – «Este juiz é um santo». O homem fitou-a, espiou o juiz e segredou-lhe pelo canto da boca: – «Vossemecê está zaruca. Esteja caladinha».
No final, o Pereira, justificando-se, disse ao juiz que a mulher tinha permanecido na sala de audiências toda a tarde. – «O que é que ela quer?» – perguntou o Prado, a despir a beca. O oficial respondeu: – «Não consegui arrancar-lhe uma palavra». Voltou o Prado: – «Estou a ver que tenho de os castigar exemplarmente. Está bem; que entre».
O Pereira saiu do gabinete e foi dizer à mulher que o «senhor juiz» a recebia. Ela sorriu. – «Mas não pode levar a cesta», – condicionou o oficial, tentando tirar-lha. Ela recuou, chegando-a mais a si. – «Vossemecê levava a cesta para a igreja, diga lá? Não se podem levar essas coisas para certos lugares». Ela volveu-lhe: – «Tenha muita paciência», – e avançou para a porta do gabinete. – «Espere aí, santinha» – voltou o oficial –, «se não deixa a cesta, não pode entrar». Ela respondeu-lhe: – «Pois então, nada feito». O oficial mandou-a esperar, avançou para a porta do gabinete e hesitou. Depois disse: – «Vossemecê é teimosa. Deixe ficar a cesta, que ninguém lha rouba». Ela voltou com a mesma segurança: – «A cestinha vai comigo».
A maioria dos funcionários já tinha saído. O oficial de diligências aguardou na varanda do claustro, como sempre que alguém era por si introduzido no gabinete do juiz. A visita foi rápida. Quando a viu sair do gabinete, perguntou: – «Então» A mulher respondeu: – «Muito agradecida; vou-me daqui, que são horas». – «Correu tudo vem? – insistiu o Pereira. E ela, esquivando-se: – «Vou andando, que se faz tarde». O oficial colocou-se na frente dela: – «Mas diga lá, correu bem ou não?» Ela, sempre a caminhar: – «Nem bem nem mal; foi mais ou menos».
O Prado continuava no gabinete. O oficial remoeu a dúvida por alguns momentos, decidiu-se e reentrou: – «V. Ex.a não precisa de mais nada?» O juiz olhou-o rapidamente e disse: – «Não, nada; até amanhã». O Pereira estranhou e saiu logo com a intenção de alcançar a mulher, que descia a ruela para a banda do rio. Tocou-lhe no ombro, por trás: – «Então vossemecê foi aborrecer o senhor juiz?». Ela voltou-se um pouco, até ficarem de cara: – «Uma desfeita assim! Com a idade que tenho nunca recebi uma destas». Ele: – «Vossemecê disse-lhe alguma que o ofendeu». Ela, impávida: – «Eu nunca ofendi ninguém». O oficial não desarmou: – «Andei à volta dele para isto». Ela deu mais um passo: – «Foi uma grande desfeita. Vou indo, meu senhor». O oficial retrocedeu. Ao atingir de novo a portaria do convento, o Prado, que vinha a sair, chamou-o. Abeirou-se rapidamente tomando-lhe das mãos a pasta e o guarda-chuva. O porteiro curvou-se para o cumprimento habitual. O Pereira sentiu vontade de falar, mas entendeu que não o devia fazer, nem sequer insinuar. Pareceu-lhe, aliás, que o juiz o chamou para lhe «dar um raspanete», mas limitou-se a recomendar-lhe que acendesse sempre o aquecimento, logo de manhã, para encontrar o gabinete aquecido, quando lá entrasse.
Atrás do Prado surgiu entretanto o automóvel do Pedras. Entrou nele, sem falar. O carro esforçou-se, roncou nos sítios mais íngremes, afrouxando nas curvas mais acentuadas e nos pontos mais estreitos. – «Que tens tu, hoje?» – inquiriu o colega, já perto do Jardim da Cordoaria. Respondeu-lhe: – «Estes funcionários são uns azelhas; não sabem livrar-nos destas encrencas. Vais com pressa?» – «Não», disse o Pedras; queres que te leve a algum lado?» – «Não; encosta aí».
O Pedras apagou a luz, bateu-lhe uma palmada na coxa e disse:
– Desembucha lá.
O Prado remexeu-se no assento e abriu assim:
– A nossa carreira tem por vezes os seus lances teatrais. Agora mesmo, antes de sair, me aconteceu uma coisa um tanto rocambolesca. Há uma velhota que pôs dois processos seguidos contra a filha e o genro, acusando-os de a maltratarem. Acusava-os de pretenderem ver-se livres dela, depois que lhes fez doação de uma casita, onde viviam os três, e que era a única coisa que tinha neste mundo. Coitada, não tinha advogado, nem nada, as testemunhas começaram a gaguejar e eu absolvi-os, mas fiquei com a impressão de que a mulher tinha apanhado. O certo é que as testemunhas, na verdade, não deviam ter assistido e, sem provas, nada feito. Absolvi-os.
Aquilo passou. Correu algum tempo. Voltaram segunda vez e aí eu acreditei que os bandalhos espancavam a mulher. Mas continuava sem provas. A velhota não podia pagar a um advogado. As testemunhas não deviam ter assistido. Diziam que a ouviram chamar «aqui d'el rei contra a filha e o genro», mas, de resto, nada, porque a coisa era feita debaixo das telhas. Pensei então comigo: «Estes patifes são capazes de dar cabo da velha e nada se consegue provar contra eles.» Então resolvi intimidá-los: «Seus desalmados, vocês espancam a pobre da criatura sem sequer pensar que ela vos deu tudo o que possuía?» e, voltando-me para a ré, disse-lhe as últimas: «Porque você é uma filha desnaturada, um ser repugnante, etc., etc. Se voltam aqui pelo mesmo motivo, eu mando-vos para o chilindró, como dois e dois serem quatro». E absolvi-os outra vez.
Decorreram vários meses, talvez mais de um ano. E hoje aparece-me a velhota outra vez. Eu não gosto de receber ninguém, mas estava com uma certa curiosidade. Mandei-a entrar. Tinha esperado por mim toda a tarde, sentada na sala de audiências. Entrou a sorrir e pousou a giga que levava, na minha secretária. – «Então, – perguntei – eles deixaram de lhe chegar?» Ela respondeu: – «Sim, meu senhor; agora são meus amigos; até me deram esta blusa que trago». – «Ainda bem – disse eu; – Você agora já pode morrer descansada. Mas, se houver qualquer coisa, venha cá». – «Não, meu senhor; não há mais nada. A minha filha pediu-me perdão e eu perdoei-lhe, porque é minha filha. A culpa não é dela, não». Depois desta conversa, eu disse-lhe: – «Pronto, foi bom assim. Vá com Deus». Nessa altura, ela soltou uma espécie de gargalhadinha, abriu a tampa do gigo e que vejo eu? Calcula, uma franga, uma franga no meu gabinete com a cabeça de fora, a cacarejar. Fiquei parvo e ela disse então: – «Trago-lhe aqui esta pitinha. Foi criada por mim, desde que saiu do ovo. É muito limpinha; não tem qualquer doença. Fui eu que a criei».
– Essa é inédita, – exclamou o Pedras. – Já estou a ver: correste com ela.
– Que havia de fazer? Já pensaste numa situação destas? O que podia eu fazer? Levar o frango para casa, debaixo do sobretudo?
– Ofendeste a mulher e dessa gente não é que vem o perigo. Devemos guardar-nos é dos de cima.
– Mas então diz lá, o que ia eu fazer da «pitinha», como ela dizia?
– Atirava-la ao rio, pá, quando a velha saísse.
– Rai's parta esta vida! – lamentou-se o Prado.
– A coisa é realmente original.
– Sabes o que mais me custou? Foi ouvi-la dizer e a lamentar-se: «porque eu sou pobre, porque o senhor não aceita a pitinha porque... é por ser pouquinho, não é?». Foi uma autêntica batalha. A franga soltou-se, esvoaçou, cagou-me nos processos. E a mulher a teimar comigo. Não compreendia que eu não aceitasse. Aí irritei-me: – «Ponha-se já fora da porta!»
– Fizeste mal. Essa foi a menor ofensa que ela te pôde fazer. Não compreendeu verdadeiramente o motivo da tua recusa. Se ela tivesse entendido, talvez tivesse dó de ti.
– Que estás para aí a dizer?
– Olha, menino, – voltou o Pedras, e tremeu-lhe o lábio inferior; – o que tu recusaste não foi a pitinha da velhota. Agiste por medo.
– Medo de quê?
– Do que pudessem pensar de ti. Ao mesmo tempo satisfizeste uma necessidade que todos sentimos, continuamente: mostrar a nós próprios e aos outros o que não somos na realidade.
– Lá estás tu com as tuas subtilezas.
– O nosso povo sabe muito bem que os poderosos se aplacam com ofertas. Para eles, tudo o que é bom acontece por milagre.
– É necessário educá-los.
– Vivemos aterrados com o peso do nosso poder, que aliás não tem justificação.
– Enganas-te. Vivo tranquilo; perfeitamente tranquilo com a minha consciência.
– Nesse caso, és um anormal, a pedir exame psiquiátrico.
– Tu é que andas a exigi-lo, há muito, – rematou o Prado, enfurecido. – Deixas-me em casa?
O Pedras accionou o motor e ligou a luz.
– Claro que te deixo em casa, menino. Vamos lá. – E arrancou.
– Queria ver-te na minha situação, – voltou o Prado, já depois de percorrida uma boa distância, em silêncio.
– Mas tu não andaste bem.
– Que querias que eu fizesse? Diz lá, raio!
– Ofendeste a velha.
– E então?
– Foste longe de mais.
– Se não tinha outra saída...
– Podias ter-lhe explicado.
– Tu próprio disseste que o povo não compreende.
– Não devias irritar-te. Mas acabou-se. Cá estás. Cumprimentos em casa.