sábado, 11 de junho de 2011

A CHANCELA – II

     Levantou-se e espreguiçou-se no gabinete minúsculo, que ligava directamente com a sala de audiências. A outra porta dava para o corredor, iluminado por janelas de guilhotina girando em redor do claustro. Arrumou os processos, dispôs os utensílios que estavam sobre a secretária, tirou da gaveta um tinteiro, em que mergulhou o bico da caneta accionando o êmbolo. Voltou a rolhar o tinteiro, limpou a caneta, guardou-a na algibeira interior do casaco, recolheu de novo o tinteiro na gaveta, encaminhando-se em seguida para o janelo e curvando-se a fim de observar o cais iluminado da outra banda, em cujo declive palpitavam anúncios de várias marcas de «vinho do Porto». Depois cerrou a cortina, desligou o aquecimento e a luz e saiu para o corredor mal iluminado, com as longas filas de portas já cerradas, a água a esgaravatar como ave em cativeiro no chafariz do claustro e no rio Douro o martelo compassado de um motor de explosão. Ao atingir o segundo piso, avistou, ao fundo, na saída a silhueta única do porteiro, que o esperava sempre àquela hora, sacudido por acessos de tosse.
     – São horas, – disse o juiz.
     – V. Ex.ª teve um mau dia.
     Respondeu-lhe sem parar:
     – Parece que é do tempo.
     O porteiro, alto e moreno, seguiu-o tapando a boca com um lenço:
     – Seis presos contei eu, que também me vi aqui em bolandas. O «Fístulas» bebeu ainda mais do que o costume e meteu-se com um gandulo que andava em cima do tejadilho de um automóvel. Foi o fim do mundo! Correram-no à pedrada e ele meteu-se cá dentro. O pai do rapazito andava com uma faca dia arte... Se não tivesse chamado os guardas...
     As ruelas serpenteantes estavam agora tranquilas e as pedras do pavimento brilhavam frouxamente na rampa nevoenta e funda como uma gruta. Cheirava a comidas e corpos, a excrementos e água choca. O Prado trepou até ao alto e aí tomou o carro eléctrico.
     Berta estava com a filha sentada no colo e perguntou logo: – «Há novidade?» Ele vestiu um casaco já muito usado e respondeu, sem pressa: – «Não». Ela, incrédula: – «Já te conheço.» Ele, vencido: – «Passa-se qualquer coisa no Ministério.» Ela, imediatamente: – «Não foste nomeado.» Ele confirmou com os olhos e acrescentou: – «Há qualquer coisa contra mim. Não sei bem porquê, mas há qualquer coisa contra mim... lá em cima.» Berta apresentou-lhe as pantufas, lamentando-se: – «Bem te tenho avisado, mas não adianta; por este caminho não chegas lá.» Respondeu-lhe, enquanto descalçava os sapatos: – «Apesar de tudo, continuo a acreditar. Tenho boas classificações e toda a gente sabe que vivo só para isto e para vocês. Eles acabarão por notar... Reconheço, no entanto, que há nisto qualquer coisa de obscuro.» – Levantou-se, olhou para a porta aberta e segredou à mulher: – «À cautela, vou inscrever-me; não tem importância nenhuma. Tenciono só pagar as cotas. Acho que isso não pode tocar a minha independência. E talvez seja por causa disso.» Berta disse que sim, que os outros estavam quase todos filiados na União Nacional. Mas para ela a solução não estava aí. – «Uma cunha – disse – isso sim; uma boa cunha.» Fechou a porta do quarto e descarregou: – «O resto, classificações, sacrifícios, reputação, nada significam. Sempre foste um homem sem experiência da vida. És demasiado recto. E aí tens o resultado.» Ele adiantou que tinha sido preterido por um colega de Lisboa. E a mulher, fitando-o: – «Certamente sem mérito.» Ele, justificando-se: – «Estão mais perto da fonte. Até já pensei em pedir a transferência, mas lá as rendas são caríssimas.» Berta insistiu: – «O que precisas é de uma cunha idónea.» E abriu-se: – «Eu previa isto. Porque tu nem sabes o que se passa cá em casa. O que tu ganhas é uma miséria e foi por isso que me vi obrigada a pôr-me em campo.» Ele, pronto e enérgico: – «Já te disse muitas vezes que não deves intrometer-te.» Ela, como se não tivesse ouvido: – «Ontem, na conferência, falei com uma pessoa que está dentro dessas coisas. Deixa isso comigo.»
     Berta frequentava a conferência onde conhecera a mulher de um capitão de infantaria. E foi aí que a mulher do tropa lhe disse: – «Ó filha, o teu homem pode ser um Salomão, que não sai da cepa torta se continuar com esses escrúpulos de juiz austero.» Respondeu-lhe: – «Não te digo isto por ser meu marido, mas é realmente uma pessoa muito direita lá no ofício. Fora disso, coitadito, só sabe fazer filhos. Filhos e sentenças.» A mulher do tropa, segundo afirmou, «conhecia muita gente de categoria». Tinha estado na Índia, em Angola. Privara com governadores. As mulheres dos juízes, acrescentou, eram umas «autênticas múmias». Bateu com os dedos na fronte: – «Espera lá, minha filha» – disse, interrompendo-se: – «A nossa cunha vai ser a D. Angelina. Não conheces? Uma jóia! É directora de várias obras e cunhada de um ministro qualquer.»
     O Prado sentou-se na beira da cama, fitando a mulher que se sentara ao seu lado: – «Deves ser mais prudente. Essa criatura talvez não seja capaz de guardar segredo.» Berta garantiu que sim, que era «uma senhora muito caritativa.» Procurou encorajá-lo: – «Vais ver, são favas contadas. A D. Angelina trem as melhores relações. Faz as toilletes em Paris e depois oferece-as quase novas às amigas. Tem chauffeur e parece que é aparentada com um bispo.» O Prado levantou-se: – «Com um bispo? Tu vê lá! É essencial que a tua amiga e essa D. Angelina não dêem com a língua nos dentes.» Berta respondeu tocando-lhe no ombro: – «Fica sossegadinho e deixa isso comigo.» E seguiu-o para o quarto de banho: – «Estas coisas, a nós mulheres, nunca ficam mal. Temos de ser práticos. Não podemos continuar a viver assim. Eles, no Ministério, devem saber. O teu ordenado não chega para nada. Está tudo a acabar: os lençóis e as toalhas; só tens o fato que levas para o tribunal, que o outro está no fio, os pequenos parecem filhos de um operário, é preciso comprar sapatos e roupas. Caso contrário, eu arranjo um emprego, quer queiras quer não. Não podemos continuar assim. Isto tem que levar um rumo. Está tudo combinado. A D. Angelina vai amanhã à conferência, para presidir à distribuição de roupas pelas crianças pobres.» Ele disse: – «Fala baixo» – e encostou a porta do quarto de banho. Madalena avisou do lado de fora: – «O comer está na mesa.» Ele, reabrindo a porta, disse alto: – «Já vamos» e inquiriu da mulher: – «Ela sabe alguma coisa?» Berta disse que não, que a irmã apenas sabia «umas coisas por alto». Ele começou a lavar as mãos e ela vincava, enquanto lhe oferecia a toalha: – «Tens vivido num mundo à parte, longe de todas as realidades. Julgas que são todos como tu.». Ele concordou: – «Isso é verdade. Mas não esqueças nunca que és mulher de um juiz.»
     À mesa, servindo-se, Berta quis confirmar uma suspeita repentina: – «Esse teu colega que vai para o tal lugar não é casado com a filha de um mestre-de-obras?» O Prado: – «É esse.» Ela: – «Vê lá se não tenho carradas de razão. A mulher do Pedras disse-me ontem que esse tipo é um grande azelha e que até consta que não é da situação.» Madalena interveio dizendo que assistira a essa conversa e ajuntou: – «É aquele tom que num grupo de amigos disse e teimou que as baleias não eram mamíferos porque tudo o que vive na água é peixe.» – «Foi colega do ministro» – esclareceu o Prado. O filho mais velho interveio também para dizer que «alguns juízes eram uma anedota» e ergueu os olhos para Berta, que, em frente dele, lhe piscou um sinal combinado de vitória. O rapaz sorriu, fixou a imagem de uma cantadeira que a televisão estava a apresentar e acompanhou-a na última estrofe: – «Tudo isto é vida, tudo isto é fado!»
     Na cama, Berta contou mais pormenores indicando os nomes das «pessoas influentes» que, segundo a mulher do tropa, tinham patrocinado as mais recentes nomeações de juízes para «postos de general». Ele escutava, sem fazer qualquer comentário. Ela perguntou: – «Estás a ouvir?» E ele respondeu, voltando-lhe as costas: – «Estou, mas deixa-me dormir, que ando cansado.»
     Foi a primeira vez que consentiu que a mulher se intrometesse em assuntos relacionados com a sua carreira.