Sessão
Solene de Abertura do Ano Judicial 2013
A dimensão simbólica e real de rituais, como o que hoje aqui nos reúne,
assume uma importante relevância na construção e no reforço da identidade das
instituições, contribuindo, por forma decisiva, para o seu reconhecimento
social e político pelas comunidades em que se inserem.
Esta cerimónia solene de abertura do ano judicial parece-nos, pois, ser
o momento adequado para “prestar contas” pelo que conseguimos, ou não, alcançar
e para apresentar o que nos propomos fazer, ousando acreditar que está, também,
nas nossas mãos a possibilidade de ultrapassar muitas das idiossincrasias
negativas, características de um sistema de justiça, cujo prestígio urge
retomar, para a reconquista da confiança do cidadão.
Sabemos, porém, como se torna imprescindível, numa reflexão conjunta, a
partilha assumida das responsabilidades respectivas de cada uma das instituições
judiciárias e dos seus actores, no respeito mútuo pelas funções próprias de
cada um, todos elas essenciais à realização da justiça e à concretização dos
direitos do cidadão. Na procura de consensos e de compromissos, sem os quais
não será possível atingir tal desiderato.
Há cerca de quatro meses, ao tomar posse como Procuradora-Geral da
República, tive oportunidade de afirmar o meu compromisso para com o estatuto
constitucional do Ministério Público.
Hoje, quero reafirmar a importância do princípio da autonomia enquanto
corolário da independência dos tribunais e do funcionamento do próprio Estado
de Direito Democrático, mantendo-me decisivamente afastada dos que vêm
defendendo, mais ou menos explicitamente, a possibilidade de o Ministério
Público depender do executivo. Como, igualmente, me mantenho afastada dos que,
por qualquer forma, advogam a possibilidade de limitar a autonomia desta
magistratura, atribuindo àquele princípio, falaciosa e erradamente, a causa do
mau funcionamento da justiça.
Daremos, assim, uma especial atenção às alterações ao Estatuto do Ministério
Público, que necessariamente decorrerão da Lei de Organização do Sistema
Judiciário, cujo processo legislativo se encontra em curso. Admitindo, nesse
âmbito, a possibilidade de repensar estruturas organizativas capazes de
responder às novas exigências, mas sempre nos limites do respeito e do reforço
da autonomia.
A defesa do princípio da autonomia pressupõe, também, a existência de
condições que permitam o seu efectivo exercício. Parecenos, assim, essencial
que a Lei de Organização do Sistema Judiciário venha a consagrar uma maior e
mais clara participação do Ministério Público no modelo de gestão das futuras
comarcas.
Do mesmo modo, nos parece importante consagrar, na legislação relativa à
gestão dos Tribunais Superiores, uma maior participação do Ministério Público.
Também as restantes alterações legislativas, como a relativa ao Código
do Processo Civil, mas principalmente as respeitantes aos Códigos Penal e
Processual Penal, suscitarão a necessidade de o Ministério Público preparar articulada
e estruturadamente as adequadas respostas organizativas e de recursos humanos.
Estamos, ainda, disponíveis para colaborar com a comissão que procede à
reforma do Código do Procedimento Administrativo, do ETAF e do Código do
Processo dos Tribunais Administrativos, apresentando contributos para o que
pensamos dever ser o papel do Ministério Público em tais matérias, atendendo à
relevância de que essa jurisdição se reveste nas relações do cidadão com o
Estado e a Administração.
As exigências que se levantam ao Ministério Público, enquanto uma
magistratura de iniciativa que exerce a acção penal, defende a legalidade e
interesses de natureza pública de relevância comunitária, aumentaram
significativamente com a profunda crise em que vivemos, cujos graves reflexos
sociais, a colocam perante um conjunto de novos fenómenos a exigir respostas
diferenciadas, qualificadas e eficazes.
Sendo uma magistratura dotada de autonomia, interna e externa, de responsabilidade
e de hierarquia, dispõe o Ministério Público dos instrumentos legais e
institucionais que lhe permitem responder a tal desafio.
A autonomia interna garante aos magistrados capacidade decisória no caso
concreto, no respeito dos ditames da legalidade estrita, da sujeição a
critérios de objectividade e, bem assim, às directivas, ordens e instruções
hierárquicas, permitindo a uniformização de procedimentos, como factor
essencial de eficácia e de eficiência e instrumento do cumprimento da igualdade
do cidadão face à lei. Neste sentido, a autonomia interna constitui uma
garantia dos cidadãos, enquanto pressuposto fáctico e jurídico que assegura a
isenção necessária da intervenção processual, e não um privilégio dos
magistrados. De resto, a sua actuação sempre se desenvolverá no âmbito de uma
relação hierárquica responsabilizante, sujeita a avaliações periódicas de desempenho.
O que pressupõe e exige uma hierarquia que assuma claramente as suas
responsabilidades de exercício, coordenando e orientando, prestando apoio
técnico e humano, definindo estratégias e objectivos de actuação, planeando a
sua actividade de acordo com as necessidades específicas da realidade sócio
económica em que se insere, mas sempre em conformidade com as linhas gerais de
orientação que periodicamente devem ser definidas pelos órgãos superiores do Ministério
Público.
Tem sido preocupação da Procuradoria-Geral da República, constituindo um
dos seus objectivos principais, nesta fase, promover a unificação de procedimentos
processuais e administrativos, numa articulação necessária entre a
Procuradoria-Geral da República e as quatro Procuradorias-Gerais Distritais, estudando
e criando os instrumentos necessários que nos permitam ultrapassar as
divergências organizativas e procedimentais actualmente existentes, as quais se
revelam totalmente inexplicáveis aos olhos dos cidadãos, destinatários primeiros
das nossas funções.
Para o que não será despiciendo o estudo de uma necessária reorganização
e modernização dos serviços técnicos e administrativos da Procuradoria-Geral da
República.
E para o que se mantém essencial o reforço do investimento na informatização
de todo o sistema, como factor determinante da modernização e capacidade de
resposta do mesmo.
Na procura de definição de orientações comuns, vem-se revelando essencial
uma análise cuidada das realidades existentes ao nível dos diversos órgãos e
departamentos do Ministério Público, mediante uma auscultação dos respectivos
magistrados e profissionais envolvidos, através de contactos, visitas e
reuniões de trabalho, que nos permitem detectar deficiências e encontrar
caminhos conjuntos e participados para a sua resolução.
Esforço que vem sendo partilhado com o Conselho Superior do Ministério
Público, cujo bom funcionamento importa defender e promover, assegurando
melhores e mais organizados serviços de apoio.
Conscientes da importância que tem para o prestígio das instituições um
conhecimento próximo das suas funções e do modo como as desempenham, designadamente
como as colocam ao serviço da comunidade, propomo-nos trabalhar a definição de
uma estratégia de comunicação para o Ministério Público, para uma mais adequada
concretização dos direitos à informação e à liberdade de expressão constitucionalmente
consagrados. Pensando a relação da comunicação social não só com a
Procuradoria-Geral da República, mas também com os restantes órgãos e
departamentos, nomeadamente os mais afastados da centralidade de Lisboa.
Contamos, aqui, com a cooperação, o profissionalismo e o rigor deontológico
dos profissionais da comunicação social.
Mas o reconhecimento e a redignificação do Ministério Público passa,
essencialmente, pelo escrutínio constante a que está sujeita a sua actividade
concreta e directa, quotidianamente desenvolvida pelos Magistrados do
Ministério Público das diversas instâncias, que aqui saúdo.
Importará, pois, explicitar as principais linhas de orientação para as diversas
áreas de intervenção do Ministério Público, que nos permitimos realçar, ainda
que de forma sucinta e reduzida, de acordo com algumas das principais
preocupações que se nos colocam.
As exigências da luta contra a criminalidade organizada e violenta, designadamente
contra a criminalidade económico-financeira, a corrupção e a
cibercriminalidade, impõem respostas tecnicamente qualificadas, coordenadas e
planificadas com os diversos órgãos de polícias criminal, bem como com as
demais instituições que asseguram as necessárias perícias e demais apoio
técnico.
Assumindo, aqui, sinais de menor eficiência e demasiada morosidade, há
que investir na formação especializada dos magistrados e no repensar de formas
organizativas que promovam a efectiva assunção da direcção do inquérito pelo
Ministério Público, que incentivem o trabalho de equipa, com o envolvimento de
diversos magistrados, e que pressuponham como metodologia de trabalho uma
abordagem multidisciplinar dos fenómenos criminais e a articulação com os magistrados
de outras jurisdições, cujas respectivas matérias se entrecruzam. Há,
igualmente, que repensar a ligação entre os DIAPs e o DCIAP, numa tentativa de
planeamento de trabalho que, redefinindo competências próprias de cada um dos
departamentos e conjugando sinergias, consiga potenciar as respectivas
capacidades no exercício da luta contra a criminalidade. Há, ainda, que
promover a participação, na fase do julgamento, dos magistrados que dirigem a
investigação, principalmente nos casos mais complexos, através de estruturas simplificadas
de organização e de intercomunicação, que permitam a resposta mais adequada
para cada caso concreto.
No que concerne à pequena e média criminalidade importa realçar a
melhoria geral do tempo de resposta dos inquéritos, cujo prazo de duração média,
em 2012, se cifrou pelos seis meses, ficando, assim, aquém do prazo máximo de
oito meses previsto na lei processual penal.
Contribuiu, para tal, a utilização cada vez mais frequente de processos de
forma simplificada – processo sumário, abreviado e sumaríssimo e o instituto da
suspensão provisório do processo – sob a qual foi tramitado mais de 50% do
volume processual relativo a esta forma de criminalidade.
Mantemos, pois, como objectivo o aumento do recurso a estas formas
processuais, em todo o país, por modo a responder por uma forma cada vez mais
célere e adequada às expectativas da comunidade e das vítimas em particular,
contribuindo, assim para a manutenção do sentimento de segurança e de coesão
social.
Importa, contudo, nesta área, identificar fenómenos criminais específicos,
como a violência doméstica, a violência contra os idosos, os abusos sexuais e
todos os crimes contra as crianças, e estudar respostas e procedimentos comuns,
em abordagens sistémicas, que permitam uma adequada resposta integrada.
No que toca à intervenção cível, administrativa e fiscal, impõe-se reafirmar
a importância da função do Ministério Público na defesa dos interesses do
Estado e dos interesses do cidadão face a práticas abusivas da Administração.
O mesmo acontecendo no que respeita à relevância da acção do Ministério
Público na jurisdição do trabalho, tanto mais necessária, quanto em momentos de
crise se tornam mais frágeis os direitos dos trabalhadores.
Também na área de família e menores os tempos de crise se reflectem por
forma intensa, exigindo magistrados cada vez mais especializados, com forte
empenhamento e sentido de responsabilidade comunitária. Nesta matéria, para
além do reforço da formação, é objectivo desta Procuradoria-Geral dar uma
especial atenção ao papel do Ministério Público no funcionamento do sistema de
promoção e protecção, incentivando o seu papel de interlocutor efectivo das Comissões
de Protecção de Crianças e Jovens, essencial para o cumprimento da legalidade e
para a concretização dos direitos das crianças.
Permitam-me que termine com uma referência à temática da violação do
segredo de justiça.
Como é do conhecimento público a Procuradoria-Geral da República
determinou a realização de uma auditoria tendo em vista, principalmente,
analisar o modo como tais violações vêm ocorrendo, de modo a que nos seja
permitido estabelecer um conjunto de boas práticas processuais, que evitem as
violações e que permitam a vir a identificar os seus autores, no caso de as
mesmas se verificarem.
A violação do segredo de justiça reveste o grau de gravidade criminal
que lhe é atribuída pelo Código Penal.
No entanto, a importância de que se reveste a violação do segredo de
justiça não advém da sua tipificação penal, mas sim dos prejuízos que daí
resultam para a investigação criminal e das consequências fortemente negativas
para o prestígio e para a credibilidade da justiça.
Os magistrados, os advogados, bem como todos os profissionais do foro,
têm especiais obrigações éticas e deontológicas no escrupuloso cumprimento do
dever de segredo e de reserva.
É, pois, uma verdadeira cultura de reserva que se impõe cultivar.
A determinação desta auditoria é o primeiro dos contributos que a Procuradoria-Geral
se propõe apresentar para a concretização dessa cultura.
Mas todos sabemos que as violações do segredo de justiça e do dever de
reserva têm origem, também, no âmbito da intervenção dos restantes
profissionais forenses.
Ouso, assim, desafiar os mais altos responsáveis das instituições judiciárias
a juntarem-se ao Ministério Público com os contributos que considerem mais
adequados no âmbito das instituições que dirigem, que permitam o aprofundamento
de uma cultura de reserva a que todos estamos obrigados, na assunção pública de
um compromisso contra a violação do segredo de Justiça.
Bom Ano e
Muito Obrigada.
Lisboa, 30 de Janeiro de 2013
A
Procuradora-Geral da República
Joana
Marques Vidal