sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Magistrados pedem a Rui Rangel que suspenda funções de juiz

Justiça

Magistrados pedem a Rui Rangel que suspenda funções de juiz
Por Pedro Sales Dias
Bastonário da Ordem dos Advogados considera que candidatura à presidência do Benfica é incompatível com o Estatuto dos Magistrados. Conselho Superior da Magistratura recomenda suspensão de funções

O juiz desembargador Rui Rangel, candidato à presidência do Sport Lisboa e Benfica (SLB), deve suspender as funções de magistrado judicial enquanto decorre o período eleitoral. Esta é a opinião de vários juristas consultados pelos PÚBLICO. Alguns defendem mesmo que esta é a única forma de impedir prejuízos à imagem da magistratura e ao prestígio do juiz desembargador. 

Aliás, o Conselho Superior da Magistratura (CSM), órgão superior de gestão e disciplina dos juízes, resolveu fazer essa sugestão a Rangel. Numa decisão tomada terça-feira à noite, em plenário, o CSM recomenda ao juiz que suspenda o exercício das suas funções durante a campanha eleitoral do clube, segundo uma notícia do Correio da Manhã confirmada ontem pelo PÚBLICO. 

"Só posso partilhar" essa recomendação, refere o presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), Mouraz Lopes, recusando, contudo, comentar a decisão por não a conhecer. Para o representante dos juízes, "a questão da imparcialidade de um juiz é um ponto fundamental" e "o Estatuto dos Magistrados Judiciais impede o exercício de actividades privadas". 

Mouraz Lopes ressalva, sem se referir ao caso concreto, que nem tudo estará plasmado no estatuto, mas que "está sempre implícita uma ética e um bom senso fundamentais" e que "há cargos que, para se assumirem, tem de se ter a noção que não são compatíveis com os deveres e o ónus de ser juiz". O também desembargador lembra que, em 2008, a ASJP aprovou o Compromisso Ético dos Juízes Portugueses, segundo o qual os juízes devem-se "abster de exercer qualquer tipo de actividade, ainda que totalmente gratuita, em associações desportivas ligadas a qualquer forma de modalidade de desporto profissional, nomeadamente o futebol".

O Estatuto dos Magistrados Judiciais, por seu lado, estabelece que os juízes no activo "não podem desempenhar qualquer outra função pública ou privada de natureza profissional, salvo as funções docentes ou de investigação científica de natureza jurídica não remunerada, e ainda funções directivas em organizações sindicais da magistratura judicial". 

Rangel não comenta

Rangel não quis ontem comentar a recomendação do CSM por ainda não ter sido notificado, mas lembrou que existe "o princípio do livre associativismo na Constituição". O juiz já pediu escusa num caso relacionado com membros da claque benfiquista No Name Boys que estava em recurso no Tribunal da Relação de Lisboa, onde está colocado. No tribunal, aliás, a decisão de concorrer ao SLB está a provocar grande polémica.

Também o bastonário da Ordem dos Advogados e colega de painel de Rui Rangel no programa da RTP Justiça Cega, Marinho e Pinto, defende que o juiz deve "suspender de imediato as suas funções". "Não é correcto continuar a exercer funções. O Estatuto do Magistrado exige exclusividade. O juiz exerce funções soberanas. Deve suspender para evitar que a imagem da magistratura e o seu prestígio próprio fiquem prejudicados por uma refrega eleitoral como esta", sublinha. Marinho e Pinto admite que Rangel - que preside à Associação Juízes pela Cidadania - tem muitos direitos como cidadão, mas lembra que estes estão "restringidos pelo facto de ter deveres como juiz". 

O constitucionalista Pedro Bacelar de Vasconcelos também não tem dúvidas. "Parece-me óbvio que essa recomendação [do CSM] seja auscultada. É uma actividade incompatível com a actividade de juiz. Essa decisão deve ser tomada em nome da independência judicial e por consciência dos deveres deontológicos. A independência e a imparcialidade têm de ser preservadas. Aliás, o próprio deve proteger-se dos efeitos negativos", salienta ao PÚBLICO.

Recomendação "absurda"

António Cluny, ex-presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, lembra mesmo que os "juízes estão proibidos de ocuparem cargos em sociedades comerciais" e que, se Rangel ganhar as eleições, terá um cargo na SAD do SLB. "A recomendação do CSM parece-me avisada e moderada", diz o agora presidente da MEDEL - Magistrados Europeus pela Democracia e pelas Liberdades, que, contudo, sublinha falar apenas a título individual. 

Não é a primeira vez que o CSM se pronuncia sobre esta matéria. Numa recomendação feita por aquele órgão em 2008, e que reitera outra datada de 2006, o CSM considera "desaconselhável" a participação de juízes "nos órgãos de disciplina do futebol profissional, dadas as consequência negativas que, com frequência, daí resultam para a imagem dos magistrados junto dos cidadãos". A recomendação refere-se apenas a órgãos de justiça desportiva e não a órgãos de direcção. 

Mas também há quem considere a recomendação do CSM "absurda". Um antigo membro do conselho considera que "dificilmente uma actividade nos órgãos de desporto profissional é incompatível com a de juiz". "Isso não está previsto nos Estatutos. Uma coisa é o que se considera em abstracto, outra é que o realmente a lei prevê. E nisso não é clara", refere. O mesmo ex-conselheiro lembra que Rangel está apenas a candidatar-se e "não está, para já, a exercer qualquer cargo incompatível".

Colado de Jornal

O Tribunal Constitucional e o Orçamento do Estado

Escrever direito

O Tribunal Constitucional e o Orçamento do Estado

O Orçamento do Estado (OE) para 2013, para além de ser uma tragédia para os portugueses, vai ser um difícil teste para o Tribunal Constitucional (TC). 

Este tribunal é, fatalmente, um tribunal especial com legitimidade política, característica que, convém lembrar, não é um pecado mas sim uma virtude. Na base de um tribunal deste tipo está exactamente a intenção de conseguir que numa superstrutura jurídica/judicial se encontrem as mais relevantes correntes de pensamento político existentes na sociedade, permitindo consensos e entendimentos sobre questões fundamentais. O papel essencial dos tribunais constitucionais é o de garantir um Estado de direito democrático, através da fiscalização do respeito da Constituição, tendo surgido, normalmente, na sequência da queda de regimes autoritários/ditatoriais.

Como é evidente, só por ingenuidade ou cegueira, se pode pretender que um tribunal constitucional não seja político. O que não quer dizer que não tenha de fundamentar juridicamente, e de forma convincente, as suas decisões. Basta atentar na recente decisão do Supremo Tribunal norte-americano sobre o Obamacare que foi, evidentemente, uma decisão política, com um enorme impacto, mas nem por isso deixou de ser uma decisão de uma enorme densidade jurídica. 

É, pois, bastante primária a posição daqueles que, sendo grandes defensores da política governamental, entendem que o TC não deve fazer política e só tem que aceitar o OE, já que este consagra as opções políticas e económicas de um Governo que está legitimamente em funções. Mas se a posição da inevitável constitucionalidade do OE é uma ilusão dos crentes na política governamental, também a posição da inequívoca inconstitucionalidade do OE corre o risco de pecar por um apriorismo e um simplismo inaceitáveis. 

O constitucionalista, professor de Direito e pai da Constituição Jorge Miranda, numa entrevista à revista Advocatus deste mês, sublinhou a complexidade da questão: "O Tribunal Constitucional é o órgão de garantia de Constituição mas deve observar-se que tem uma posição muito difícil porque, por um lado, tem de defender os grandes princípios, mas, por outro, tem de atender às realidades de facto. (...) Não é um órgão de governo, é um órgão de controlo da constitucionalidade, que só quando tem a certeza de que uma norma é inconstitucional a deve declarar como tal. É uma questão de grande equilíbrio, muito difícil evidentemente". 

Uma questão muito difícil, com profundas implicações políticas mas que não deve ser evitada, antes pelo contrário, deve ser suscitada pelo Presidente da República. É essencial que o OE que venha a ser aprovado seja o mais legitimado possível, e o crivo do TC, nas actuais circunstâncias, é essencial. Até porque os tribunais, em geral, têm a obrigação de não aplicar as leis que considerem inconstitucionais. E alguns magistrados já começaram a lembrá-lo. 

Por um lado, o juiz desembargador Mouraz Lopes, na qualidade de presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), já assegurou que aquela associação irá pedir a fiscalização do aumento de impostos pelo Tribunal Constitucional por se tratar de um "desmesurado e brutal aumento da carga fiscal dos portugueses", que "ataca de modo feroz" a população. Mais afirmou ser "inaceitável não se cumprir uma decisão do TC", considerando que o Governo não a está a cumprir com esta proposta de Orçamento.

Embora seja claro que não se trata de uma posição individual de um juiz, mas sim do representante de uma associação sindical, e se possa entender que não está mais do que a afirmar uma opinião jurídica, ainda assim, entendo que é excessiva tal intervenção. Na verdade, uma associação sindical não tem poderes para requerer a intervenção do Tribunal Constitucional e, muito naturalmente, haverá deputados suficientes para o fazerem por vontade própria. 

Parece-me que os juízes, para salvaguarda da sua credibilidade, para além de se deverem manter afastados do mundo do futebol, não deveriam assumir na arena pública uma posição de combate, salvo se estiveram em causa os fundamentos da nossa democracia. Será essa a situação que estamos viver? Será que as leis que se avizinham gozam de uma presunção de inconstitucionalidade?

O procurador-geral adjunto António Cluny assim o sugere quando, num artigo publicado no jornal i, a propósito do regime de Vichy, fala da "missão dos juízes" em situações de "soberania limitada", apontando que devem saber distinguir o que valem as leis impostas do exterior "face aos interesses do país, que só podem, afinal, ser aferidos pela legitimidade dos princípios constitucionais que o povo, quando soberano, quis que fossem os seus".

Neste ambiente de crispação, o TC tem pela frente um difícil teste. Espera-se que seja convincente e saia reforçado na sua autoridade.