Este Governo entrou em funções sob o signo da discrição, ou até mais do que isso: da lei do silêncio em relação aos meios de comunicação social – uma atitude geralmente bem aceite pelos comentadores políticos como sinal de uma outra atitude de governar, avessa ao espavento mediático. Era chegada a hora da madura reflexão, da conspicuidade política, muito consonante com a gravidade das mudanças que se impunha realizar. O tempo das obras e das acções, do rigor e da verdade, dir-se-ia.
Vieram, então, as primeiras medidas que poderiam ser lidas como ataque a interesses de certas corporações (as farmácias, na venda de medicamentos; os magistrados – vulgo: «juízes» -, no caso das férias judiciais). Estava marcado o tom de luta contra os privilégios corporativos, em nome, finalmente, de uma igualização social, de que este governo seria o paladino. As outras medidas – o pacote mais drástico – abolindo os «privilégios» do funcionalismo público, viriam mais tarde, envoltas num vasto programa de contenção e sacrifício, ainda não conhecido por inteiro e que aparentemente afecta todas as classes sociais na devida proporção.
Não contesto a gravidade da situação, na qual os governos PS também tiveram a sua quota de responsabilidade, e a necessidade de tomar medidas severas. Também não ponho em causa a necessidade de abolir privilégios injustificáveis, o que não significa que eu esteja de acordo com todas as medidas tomadas, principalmente no que respeita às chamadas regalias da função pública. O que contesto, e veementemente, e confessando-me desapontado, é a encenação e a demagogia com que certas dessas medidas têm sido apresentadas, na mira de obter adesão popular, a pretexto de um combate aos privilégios. Uma espécie de ressuscitação da luta de classes, naquilo que, do proscrito marxismo, parece ter remanescido de velhas cartilhas que teorizavam o modo de chegar à «linha justa», através da exploração das contradições – aqui trabalhadores do sector privado e do sector público.
No que concerne à área da justiça – e essa é a parte que me interessa agora - o que se fez avultar, como não podia deixar de ser, foi a famosa morosidade, para debelar a qual foram apresentadas algumas medidas, que, diga-se, já vinham, nas suas linhas gerais, do governo anterior. São medidas óbvias na sua maior parte, mas ficam muito aquém do relevo com que se as fez avultar, sobretudo no que diz respeito à área criminal, cujo impacto será insignificante ao nível das instâncias e praticamente nulo ao nível do Supremo Tribunal de Justiça. Mas, de todas, a medida mais emblemática foi a anunciada (com acintosa animosidade) e já decidida redução das férias judiciais. Inserida habilmente no contexto da morosidade, a mensagem que lamentavelmente se fez passar foi a de que os magistrados trabalham pouco. De resto, nos dias seguintes, não se falava noutra coisa: no pouco ou nada que os «juízes» fazem. E o ministro da Justiça, no programa «Prós e Contras», disse mesmo que os «juízes» deixavam sempre para o fim os processos complicados e só despachavam as bagatelas. Talvez por isso mesmo, de entre as medidas anunciadas, há uma que dá que cismar e só pode ser compreendida nesse contexto: a prioridade que deve ser dada a processos por crime de homicídio sobre os processos por crime de injúria. A não ser entendida assim, a medida é risível.
Ora, na minha perspectiva, não é tanto o problema das alongadas férias dos magistrados que está em causa. Já defendi a sua redução, como forma de clarificar as coisas e acabar com situações equívocas. É a forma como a investida a esse «privilégio» aparece demagogicamente associada a um conjunto de factores negativos, que se imputam dolosa ou negligentemente a profissionais que, na sua maioria, trabalham arduamente, muitos deles até ao limite das suas forças e até aos limites da capacidade de tolerância das suas famílias. Eu sei que isto não é crível para a maior parte das pessoas e, pelos vistos, também o não é para o governo. Esse é o drama para quem dá de si o melhor esforço e começa a culpabilizar-se por um dispêndio tão inglório de energias . Ver-se assim desacreditado e sem possibilidade de inverter o descrédito gerado na opinião pública por quem devia reconhecer esse esforço, embora apontando as excepções, só pode desencadear atitudes radicais e de revolta.
É que é preciso ter cuidado com as hostilizações que se fazem a toda uma corporação profissional. E se a corporação dos «juízes» pode e deve ser afrontada em certas situações, nem todos os meios valem para atingir os fins, sobretudo quando nisso pode estar implicado, por arrastamento, o descrédito de um dos tão afirmados pilares da democracia, que é o poder judicial. Porque pode correr-se o perigo de se estar a contribuir para a «deslegitimação» de um tal poder, a coberto da luta contra privilégios corporativos e na mira de uma mais do que duvidosa adesão popular. A breve trecho, ver-se-á o resultado dessa política.
quarta-feira, 20 de julho de 2005
A corporação dos juízes
Artigo de Artur Costa, Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, no Expresso de 16 de Julho de 2005:
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