O Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade da norma do artigo 381º nº 1 do Codigo de Processo Penal que determina o julgamento em processo sumário de arguidos acusados de crimes abstratamente puniveis com penas de prisão superiores a cinco anos, desde que tenham sido detidos em flagrante delito. A decisão do TC foi proferida no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade das normas legais, ou seja, foi proferida num processo que corre termos num tribunal e onde um arguido era acusado de tentativa de homicídio.
Com base nas recentes alterações processuais introduzidas pela ministra da Justiça, o Ministério Público requereu o julgamento do arguido em processo sumário, mas o juiz recusou essa pretensão com o fundamento de que essa alteração era inconstitucional, o que motivou a chegada do processo ao TC.
Esse acórdão do TC fere de morte uma das medidas mais demagógicas e populistas do atual Governo, que era, precisamente, a de julgar crimes graves em processo sumário desde que os suspeitos tivessem sido detidos em flagrante delito. O processo sumário é usado para crimes pouco graves e os julgamentos são feitos por um só juiz, geralmente mais novo, com menos experiência e muito mais rapidamente, pois não há inquérito. A essa forma de processo contrapõe-se o processo comum com julgamento em Tribunal Coletivo para os crimes mais graves.
O que espanta na alteração legislativa que o TC agora inviabilizou não é o facto de ela refletir a falta de cultura jurídica de quem a concebeu - a atual ministra da Justiça. O que espanta não é ainda o facto de essa medida atentar contra um dos mais relevantes avanços civilizacionais em matéria de administração da justiça. O que verdadeiramente espanta é que um tal retrocesso tenha sido acolhido acriticamente pelo Conselho de Ministros e, mais do que isso, tenha sido aprovado obedientemente pela Assembleia da República. O nosso Parlamento, os nossos deputados, muitos deles advogados em exercício simultâneo da profissão, aprovaram sem corarem de vergonha uma medida populista e primária que não iria diminuir em nada os atrasos da justiça (eles não derivam da forma de processo), mas, pior do que isso, iria fazer com que os julgamentos de muitos crimes graves fossem realizados sem respeito pelas adequadas garantias processuais.
A opção por um julgamento sumário ou comum coletivo não decorre da facilidade de obtenção dos meios de prova necessários à condenação, mas sim da criação de condições para que todas as ponderações a efetuar pelo julgador se façam com objetividade e em condições de serenidade. O julgamento de um crime grave não pode ser efetuado em cima dos factos criminosos, no calor das emoções e exaltações que o crime provoca na sociedade. O julgamento de um crime grave não pode efetuar-se sem uma investigação exaustiva de todas as circunstâncias em que o delito ocorreu - quer as circunstâncias que deponham contra o seu presumível autor quer as que deponham a favor dele. A investigação de um crime não se faz apenas para recolha das provas e das circunstâncias que sirvam apenas para a condenação; ela faz-se também para recolher as provas e todas as circunstâncias que atenuem a culpa e/ou a ilicitude da conduta do arguido . A administração da justiça penal num Estado civilizado deve ser feita por homens e mulheres experientes, ponderados, insensíveis a pressões, incluindo as mediáticas.
A alteração legislativa que a ministra da Justiça tinha promovido e que os domesticados deputados da maioria aprovaram sem qualquer respeito pelos valores da justiça num estado de direito iria conduzir a que os julgamentos de alguns crimes graves passassem a ser efetuados sem o adequado distanciamento temporal dos factos, no calor, portanto, das exaltações individuais e coletivas que os crimes graves sempre provocam; iriam ser feitos, pois, em arenas com multidões a gritar nos órgãos de informação ou às portas dos tribunais a exigir as penas máximas ou a tentar fazer justiça pelas próprias mãos. Deputados que por carreirismo partidário aprovam tais medidas não são dignos da função que exercem e não merecem o respeito dos cidadãos.
Jornal Notícias | 05-08-2013