domingo, 6 de janeiro de 2013

O inferno dos funcionários públicos



Trabalhadores da Segurança Social, do Fisco, dos tribunais, assistentes sociais e médicos queixam-se de agressões diárias, culpa da crise. O i revela quatro histórias de funcionários públicos ameaçados e perseguidos
Dina R. tocou à campainha e uma mulher de meia-idade, em roupão, convidou-a a entrar. A funcionária judicia! de um tribunal do Norte explicou ao que vinha: uma dívida de 300 euros por pagar ao Ministério Público obrigaria a fazer uma avaliação dos bens que o casal tinha em casa para que, futuramente, caso não liquidassem o montante em falta, fossem penhorados. "A senhora foi simpática e disse-me que não havia nada para pagar, porque tinha pedido apoio jurídico", recorda.
A mulher encaminhou-a para a cozinha da casa. E foi então que apareceu o marido. Seguiram-se insultos, palavrões, murros na mesa. Minutos depois, Dina R. estava com uma caçadeira apontada à cabeça. Suplicou que a deixassem ir embora. "Parece um cliché, mas vi a minha vida inteira passar-me à frente. Tive a certeza que ia morrer por causa de uma quantia absurda de 300 euros."
Nada fazia prever que a manhã daquele dia de Novembro terminasse de forma tão violenta: Dina R. tinha dezenas de diligências em mãos – muitas delas, penhoras da ordem dos milhares de euros: "Nunca imaginei ter uma arma apontada à cabeça e muito menos por causa de 300 euros." Os minutos que se seguiram foram de absoluto desespero. "Supliquei à mulher dele que o fizesse parar e me deixassem ir embora, para ao pé do meu filho. Jurei que não lhes ia penhorar rigorosamente nada."
Assim que conseguiu sair da vivenda, numa zona rural a três quilómetros da sede da comarca, a funcionária do tribunal meteu-se num táxi. Demorou mais de cinco minutos a marcar os nove dígitos do telefone do trabalho. Os colegas chamaram a GNR c o processo-crime ainda está na fase de inquérito. "Sinceramente estava à espera de mais apoio por parte do tribunal. A lei não nos protege, apesar de, ironicamente, estarmos ao serviço da Justiça", conta.
Três meses depois, ainda é difícil driblar o medo: "Sempre que vou fazer uma diligência, e vou quase sempre sozinha, quando toco a uma campainha tenho medo." A insegurança é alimentada todos os dias pela percepção, no terreno, de que os portugueses andam cada vez mais nervosos. "Nota-se uma perda crescente de respeito pelas instituições. Há penhoras em cima de penhoras e as pessoas partem muito mais para o confronto." A culpa, tenta justificar, talvez seja da crise, agravada pela falta de funcionários nos serviços. "Acumulamos processos e mais processos, além das funções de colegas que entretanto foram transferidos. É cada vez mais difícil dar respostas em tempo útil."
PERSEGUIÇÕES O trabalho de Vera S., assistente social, é andar no terreno. Integra uma equipa que faz o levantamento das condições de vida de crianças sinalizadas como estando em risco. É chamada quando todas as tentativas de corrigir as famílias já foram esgotadas e cabe-lhe, muitas vezes, retirar os filhos aos pais. A responsabilidade e o perigo são "enormes", mas mesmo assim é quase sempre destacada para o terreno sozinha. Por conta própria e sem direito a subsídio de risco. Nos últimos quatro anos teve dois processos-crime a correr no tribunal por ameaças e perseguições. Processos pagos do próprio bolso. "Os serviços e o Estado não se responsabilizam caso queiramos apresentar queixa." Um dos casos acabou com a condenação de um homem que a perseguiu semanas a fio. Vera diz que nem se lembra da pena. "Tive de me distanciar do assunto para manter a sanidade mental." Mudou de concelho e de local de trabalho, com medo de represálias, e temeu pela família: "Era um homem com problemas de esquizofrenia e alcoolismo, a quem era preciso tirar a guarda do filho de seis anos." Insatisfeito com a intenção do tribunal, o homem fez-lhe esperas, seguiu-a, investigou-lhe a família e os hábitos. "Sabia tudo sobre mim: onde ia, com quem, a morada dos meus pais."
"Estamos sempre no fio da navalha. O número de solicitações à Segurança Social disparou de forma exponencial, para o dobro, no último ano", queixa-se a assistente social que diz ter a cargo mais de uma centena de processos ao mesmo tempo. "É evidente que as instituições não conseguem dar respostas adequadas e em tempo útil, o que só reforça a irritação dos utentes."
MURROS E PONTAPÉS Há quase um ano, Luís C, funcionário judicial, foi espancado dentro do tribunal da Covilhã, depois de sair em defesa de duas colegas do Ministério Público (MP) que estavam a ser insultadas por um arguido, revoltado com uma decisão do tribunal. "Isto é tudo uma cambada de putas", gritou o homem, em plena secretaria do MP.
"Hoje, as pessoas não têm qualquer tipo de respeito pelas instituições. Estão no tribunal como se estivessem numa tasca. Não há menor solenidade ou respeito", desabafa Luís C, recordando que depois de ter acalmado a discussão, o homem virou costas e saiu. Minutos mais tarde, ao descer as escadas para o rés-do-chão do tribunal, deu de caras com ele. Levou murros e pontapés. O agressor foi imediatamente detido, julgado e condenado ao pagamento de uma multa. "O juiz nem sequer considerou tratar-se de um crime agravado. Somos agredidos em serviço, mas aos olhos dos tribunais somos iguais aos outros."
Um ano antes, já tinha passado por outra experiência, também no tribunal da Covilhã: um outro homem, inconformado por perder a guarda dos filhos, barricou-se numa sala de audiências, sentou-se na cadeira do juiz e apontou uma arma à cabeça.
NEM OS BALCÕES ESCAPAM 
Nem os funcionários atrás dos balcões de atendimento dos serviços escapam aos insultos c às agressões. Margarida J., funcionária da Segurança Social, levou com um telefone em cima. As piores situações, conta, são sempre as que envolvem beneficiários do rendimento social de inserção ou, mais recentemente, do subsídio de desemprego. "A legislação está constantemente a mudar, por vezes demoramos muito tempo a resolver problemas ou a saber responder. As pessoas perdem a cabeça", admite a funcionária. Depois há também as intermináveis. Quando chega ao trabalho já há gente à espera desde as cinco da manhã. Às nove e pouco, as senhas acabam e o stresse acumula-se. Margarida J. já levou puxões de cabelos e cuspidelas em cima. Foi num desses dias especialmente caóticos que um utente irritado lhe atirou com o telefone. "E ainda teve o descaramento de escrever no livro de reclamações depois de me ter agredido." Tudo por causa do tempo de espera, que já ia longo.
"As pessoas ficam ansiosas e andam amedrontadas porque o dinheiro não chega ao fim do mês e por vezes as prestações sociais atrasam-se. Quando não há dinheiro para as coisas mais básicas, descarregam nos funcionários, que são quem dá a cara pelas instituições." No fim de tudo, quem paga as irritações constantes no trabalho são as filhas de Margarida: "Chego nervosa a casa, ralho, não tenho paciência. Há dias em que me apetece desistir de tudo."
SEGURANÇA SOCIAL POUCO SEGURA 
À boleia da crise, as agressões aos funcionários da Segurança Social (SS) têm aumentado. E não são só os que fazem o controlo de subsídios como o Rendimento Social de Inserção em bairros problemáticos que enfrentam dificuldades. As agressões, agora, também acontecem nos balcões de atendimento ao público. O coordenador da Federação Nacional dos Sindicatos, Luís Pesca, diz ter feito chegar vários casos ao Instituto da Segurança Social: "Numa situação de crise em que há uma redução do rendimento disponível das pessoas, geram-se situações que acabam por sobrar para os funcionários, que são quem dá a cara pela instituição."
Os serviços públicos são agora uma espécie de "bomba-relógio", avisa o sindicalista: "Há casos de funcionários que são provocados com linguagem imprópria, tentativas de agressão física, ameaças e até cenas de autêntico pugilato." Um dos principais problemas, para o sindicato, é o aumento da afluência de pessoas aos serviços da SS, sem que o número de funcionários acompanhe essa subida da procura. "Há um avolumar de solicitações, mas os trabalhadores estão a diminuir, essencialmente devido às centenas de aposentações", diz.
Das finanças aos hospitais 
O fenómeno não é exclusivo da SS. O Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos, por exemplo, garante que as agressões aos trabalhadores do Fisco são "quase diárias". No ano passado, em Viseu, uma funcionária foi espancada quando fotografava uma casa que iria ser penhorada. E as perspectivas, segundo o vice-presidente do sindicato, não são animadoras no que toca à segurança dos trabalhadores do fisco. "Os casos estão a aumentar devido ao agravar das dificuldades, ao corte dos subsídios, ao aumento dos impostos e do desemprego", acredita José Manuel Anjos. A falta de funcionários nos serviços agrava o problema. "Estamos em situação de ruptura em matéria de recursos humanos e quando se geram filas de centenas de pessoas é natural que o stresse se acumule", acrescenta o representante dos Trabalhadores dos Impostos, que garante que a qualidade dos serviços "está em causa".
Os sindicatos dos médicos também já denunciaram agressões em instituições de saúde. "À medida que se acentuam os problemas sociais, as pessoas tornam-se mais agressivas, bebem mais, têm maiores problemas económicos, grande stresse e mais rapidamente recorrem à violência", contou recentemente à Lusa Pilar Vicente, dirigente sindical e médica no Hospital de São José, em Lisboa. Num inquérito a quase 900 profissionais de saúde familiar, realizado no ano passado, metade disse notar um aumento nas manifestações de insatisfação dos utentes, desde protestos a ameaças, passando pela violência. O principal motivo de irritação dos utentes, segundo o mesmo estudo, divulgado pelo Observatório Português dos Sistemas de Saúde, é o aumento das taxas moderadoras.
Rosa Ramos
Ionline, 05-01-2013

“O problema não está na Constituição, está nos políticos”


Entrevista a Jorge Bacelar Gouveia. Constitucionalista considera que governo "desrespeita" a Constituição e que "há margem para fazer diferente" no Orçamento do Estado: «Há um discurso na opinião pública de que é necessária uma quarta república e uma nova Constituição. Eu compreendo a irritação de quem tem esse discurso e a fúria de alguns comentadores que querem fazer um restart do sistema político português. Mas, infelizmente, o problema não está na Constituição. O problema está nos políticos e nas práticas políticas, que têm de ser profundamente revistas, com novos valores e novos princípios. O problema está nas pessoas, que não estão, em grande medida, à altura das necessidades do país».
Ponto de partida da conversa: o Presidente da República (PR) esteve mal, quando decidiu promulgar o Orçamento e só depois enviá-lo para o Tribunal Constitucional (TC). Jorge Bacelar Gouveia sublinha que, com essa opção, "matava-se o mal à nascença", não entrando em vigor um Orçamento ferido de inconstitucionalidade. Ao mesmo tempo, o TC ficaria "amarrado", porque não poderia adiar as consequências da decisão, como fez no ano passado. Mas, no final de contas, defende o constitucionalista e ex-deputado do PSD, "mais vale a sucessiva que nenhuma".
- Qual poderá ser a posição do Tribunal Constitucional (TC) em relação ao pedido de fiscalização sucessiva feito pelo Presidente da República e pelos deputados?
- O Presidente da República pôs o dedo na ferida ao requerer a fiscalização daquela que, a meu ver, é a questão principal: a suspensão do subsídio de férias de funcionários públicos e pensionistas. A questão suscitada tem uma natureza idêntica à que foi declarada inconstitucional em Julho do ano passado, apesar de algo ter mudado: a suspensão não é de dois subsídios, mas apenas de um. Mas do ponto de vista do respeito pelo princípio da igualdade, a violação continua a ser manifesta e evidente. Há um grupo de pessoas que não vai receber um subsídio quando todos os outros recebem. Para haver um sacrifício, teria de haver um sacrifício que todos suportassem e que não fosse apenas uma parte da população a suportar e a ficar privada do subsídio. Se há uma crise financeira nacional, essa crise deve ser suportada por todos e não apenas por uma minoria dos cidadãos.
- Que consequências pode acarretar o Constitucional considerar estas medidas inconstitucionais?
- Penso que a questão mais importante vai ser a de perceber se, perante a decisão de inconstitucionalidade, haverá novamente o adiamento do subsídio de férias para o ano seguinte, ou se há outra solução intermédia. Há três posições possíveis. A primeira posição poderá ser a decisão ter efeitos retroactivos, a partir do dia 1 de Janeiro; uma solução intermédia, que passará por não ser inconstitucional até ao momento em que o tribunal decide, mas sê-lo a partir desse momento e até ao fim do ano – se não for em Maio ou Junho, será no segundo semestre; e uma terceira solução – uma solução mínima ou solução nenhuma -, a de ser inconstitucional mas o tribunal adiar os efeitos para 2014, à semelhança do que fez em 2012.
- Qual poderá ser a opção escolhida?
- Penso que nunca será a terceira, mas pelo menos a solução intermédia, de ser inconstitucional a partir do momento em que o TC decida Ou, então, ser inconstitucional desde o princípio do ano. Atendendo ao facto de ser uma reincidência, penso que o tribunal não deve decidir da mesma forma que decidiu no ano passado. Porque, se não se retirarem efeitos práticos dessa fiscalização, isso estaria a beneficiar um poder legislativo infractor e estaria a reincidir na mesma inconstitucionalidade. Penso que o tribunal vai decidir de outra maneira.
- Reincide-se porque não há margem para fazer diferente ou porque há um simples desrespeito pela Constituição?
- Há um desrespeito pela Constituição e há margem para fazer diferente. O governo errou em insistir e em repetir numa medida que foi objectivamente declarada inconstitucional pelo TC. Há muitas medidas alternativas que poderiam ser tomadas, e algumas o governo tomou – como o aumento generalizado dos impostos -, mas em relação aos funcionários públicos e pensionistas insistiu numa fixação, numa obsessão de privar do subsídio, tratandoos de uma forma desigualitária em relação a todos os trabalhadores e dos outros cidadãos.
- Como interpreta essa insistência?
-Temo que tenha por trás de si uma ideologia contra a Função Pública ou um pressuposto errado de considerar que os funcionários do Estado ganham demais, que os funcionários públicos não trabalham ou que são em número excessivo. Até admito que as coisas não estejam bem na Função Pública, mas cada funcionário não pode ser culpado de um conjunto de opções políticas tomadas ao longo de anos, que não permitiram que a Função Pública se tomasse mais eficiente e organizada. Não se pode generalizar e, sobretudo, há que respeitar as expectativas das pessoas. O Estado tem que agir de boa fé, e este tipo de medidas não traduz esse princípio de boa fé no relacionamento com os funcionários públicos.
- Como vê os comentários da Comissão Europeia, quando fala em rendimentos dos funcionários públicos portugueses 20% mais elevados que no resto da União?
- Vejo mal. Os países têm diferentes tradições nas suas administrações públicas e essa é uma matéria que diz respeito à gestão interna dos países. Muitas vezes, esses técnicos da Comissão Europeia não têm conhecimento da realidade interna dos diferentes países e limitam-se a fazer comentários superficiais, que não podem ser levados a sério. Há um déficit de conhecimento real das situações em relação ao modo como a FP está organizada.
- Não há demasiados funcionários públicos?
- Portugal não tem um excesso de funcionários públicos, tendo em conta a média europeia, como também não há ordenados exagerados em relação à média europeia. Tudo isso são opiniões que nunca são assumidas politicamente pelos órgãos da União Europeia, mas são veiculadas à socapa por uns pseudo-burocratas que lançam, muitas vezes, a confusão. Se a União Europeia acha que a Função Pública portuguesa está mal organizada, que o diga frontalmente através dos seus órgãos legítimos. Não utilize este subterfúgio de uns porta-vozes, pseudo-técnicos da matéria que dão uns palpites. Não pode ser assim.
- Justificava-se o pedido de fiscalização de outros artigos?
- Penso que a questão dos subsídios é uma questão importante, mas há mais questões que podem ser colocadas. Uma delas é a da diminuição dos escalões de IRS. A Constituição não tem uma indicação precisa, diz apenas que o IRS deve ser progressivo. Claro que quando reduzimos os escalões, a progressividade diminui e a receita fiscal aumenta, porque os escalões mais baixos vão encaixar em taxas mais altas, mas isso não é inconstitucional. Traduz uma opção política de crise, mas não fere nenhum princípio da Constituição.
- E sobre o aumento de impostos?
-Há a questão sobre se a carga fiscal não terá ultrapassado um limite máximo. O que tem uma dificuldade acrescida, porque esse limite máximo não está na Constituição. Falamos que os impostos não podem ser confiscatórios – quando ultrapassem um máximo acima do qual não poderiam ir -, mas a Constituição não tem esse limite. E mesmo que fosse objectivável de alguma maneira, não teríamos ainda chegado a esse limite, porque não estamos na casa dos 80% de tributação. Há o exemplo do TC em França, em relação a um imposto que Hollande operacionalizou, de 75% sobre os rendimentos dos mais ricos, que foi considerado inconstitucional. Estamos ainda muito longe de uma tributação de 75% para os rendimentos mais altos.
- Mesmo com os mais de 50% sobre os rendimentos mais elevados?
-Admito que a questão seja controversa, mas eu, se fosse juiz, não consideraria inconstitucional. É, de resto, uma questão associada a uma das propostas do CDS para a revisão constitucional, que se frustrou, em que o próprio CDS estabelecia um limite máximo para a carga fiscal. E há um outro problema, da diminuição severa da autonomia das autarquias locais, porque há uma série de receitas que já não podem ser deliberadas no âmbito autárquico, aliadas a uma redução das transferências. Aí, penso que poderá haver um problema de inconstitucionalidade. Um outro ponto tem que ver com a diminuição severa dos descontos que os contribuintes podem fazer no âmbito das despesas com a Saúde e a Educação, que também pode criar um problema de inconstitucionalidade. A Constituição, no artigo 104°, diz que no IRS deverão considerar-se as condições concretas do agregado familiar. A partir do momento em que os agregados não podem descontar estas despesas, necessárias à vida familiar, essas famílias estão a ser prejudicadas porque vão ter um tratamento igual às famílias que não têm filhos ou idosos a seu cargo.
- Ao aumento de impostos junta-se um corte de quatro mil milhões de euros nas funções do Estado que o governo terá de fazer...
-É necessário. Vivemos uma situação de crise, mas é algo que tem de ser visto com cuidado porque tem que ver com a reforma do Estado Social. Não podemos confundir medidas conjunturais e medidas estruturais. Admito que o Estado Social sofra uma redução drástica num curto prazo, para resolvermos o equilíbrio das contas públicas, mas para o futuro certas medidas não podem continuar.
- Não se corre o risco de que se transformem em medidas permanentes?
- Há esse risco, mas do ponto de vista do discurso político tem de haver a percepção de que há uma reforma do Estado Social de curto prazo e uma outra de longo prazo. No curto prazo, as medidas têm de ser aceites. Não gostamos delas, sofremos todos os dias com essas medidas, mas têm de ser aceites desde que sejam temporárias, equitativas e proporcionais. Se o sacrifício for para todos, e se for temporário, a generalidade dos portugueses deve compreender a sua necessidade. Mas não podem ser perpétuas, devem desaparecer a partir do momento em que voltarmos a uma situação de normalidade financeira.
- E no longo prazo?
- As grandes questões têm que ver com o financiamento da Saúde e da Educação, áreas que ocupam quase 70% da despesa pública. Tem de haver um novo modelo de financiamento que passe pela eliminação de uma gratuitidade cega que a Constituição ainda estabelece em relação ao ensino básico e que é injusta mesmo para aqueles que pagam menos ou que não pagam nada. Neste momento, uma família rica, que está no escalão mais alto do IRS, não paga nada, tal como uma família pobre que está no escalão mais baixo. A solução seria deixar de ter um sistema automaticamente gratuito para passar a um que fosse financiado de acordo com a capacidade económica de cada agregado familiar. Neste caso, a igualdade absoluta da gratuitidade é uma desigualdade.
- A Constituição é incompatível com o estado de emergência do país?
- A Constituição não bloqueia nem o desenvolvimento do país, nem a eficiência da economia, nem a legitimidade do poder político. Pelo contrário, a Constituição Portuguesa, desde 1976, tem sido um motor de desenvolvimento e um calibrador de crises políticas em vários momentos. Há um discurso na opinião pública de que é necessária uma quarta república e uma nova Constituição. Eu compreendo a irritação de quem tem esse discurso e a fúria de alguns comentadores que querem fazer um restart do sistema político português. Mas, infelizmente, o problema não está na Constituição. O problema está nos políticos e nas práticas políticas, que têm de ser profundamente revistas, com novos valores e novos princípios. O problema está nas pessoas, que não estão, em grande medida, à altura das necessidades do país.
- Faltam os políticos?
- Falta um político de uma nova geração. As sociedades têm vindo a evoluir e hoje temos um mundo internacionalizado, mas precisamos de pessoas que saibam interpretar de uma outra forma as necessidades dos portugueses. É necessário um novo discurso e uma nova prática política e isso poderá passar por mudanças nos partidos políticos e no reequilíbrio de forças político-partidárias. Temos um sistema partidário muito envelhecido, sempre com os mesmos partidos, com poucas alterações e começa a aparecer uma necessidade de mudança profunda na sociedade partidária.
- Abrindo-se mais à sociedade civil?
- O 15 de Setembro foi uma demonstração disso mesmo. As pessoas já não se revêem nos partidos e muito menos se revêem nas ideologias, querem a resolução das suas necessidades concretas, mas querem mais do que isso: querem políticos competentes, honestos, que não mintam constantemente e que possam fazer cedências e compromissos, independentemente do seu partido ou do seu modo de ver o mundo. E que não seja sectários. O grande problema de muitos partidos portugueses é o sectarismo de não acolherem sugestões que venham de outros quadrantes. Esse é também um problema de incompetência profissional, de pessoas que não têm uma vida profissional prévia, que não têm mundo, não sabem qual é a realidade, cresceram nos aparelhos partidários e nunca perceberam muito bem quais são as realidades concretas das pessoas. É necessária uma nova geração de políticos, com outras características.
- O facto de ter sido o Presidente a pedir a fiscalização sucessiva pode resultar numa apreciação mais rápida?
- O tribunal trata de maneira igual qualquer pedido que seja apresentado. Claro que o Presidente tem, protocolarmente, mais importância que os partidos da oposição. Como os deputados devem apresentar os pedidos dias depois, penso que o processo será um único, os vários pedidos vão ser tratados em conjunto. Mas é importante que o chefe de Estado tenha feito o pedido logo no primeiro dia útil do ano, e julgo que seria importante o TC decidir o mais rapidamente possível, cumprindo os prazos. Não é habitual que o faça, mas julgo que desta vez terá oportunidade de respeitar esses prazos e em três meses tomar uma decisão.
- Que consequências deve o governo tirar, no caso de haver normas consideradas inconstitucionais?
- O governo tem o dever de respeitar a decisão do TC e não deve amuar por causa dessa decisão. Um governo responsável não vai amuar quando o TC decide a inconstitucionalidade de uma norma que ele promoveu. Em democracia não há amuos, há respeito pelas instituições e pelo poder judicial. O governo deve propor à Assembleia da República um Orçamento rectificativo e arranjar uma alternativa de captação de receitas ou diminuição da receita correspondente. Sem cair numa chantagem, que me parece que já começou, em relação ao TC, dizendo que se vai demitir ou que isso vai criar uma crise política. Mas, felizmente, o TC não se vai deixar pressionar. Era só o que faltava, num Estado de direito democrático, que o poder legislativo que faz leis inconstitucionais ameaçar o poder judicial e os poderes em geral de que vai haver uma crise política, que o país vai ficar ingovernável e vai entrar na banca rota se o TC considerar uma norma inconstitucional. O governo tem de ter preparado um plano B.
- E o Presidente deve retirar consequências políticas de um chumbo consecutivo do OE?
- Acho que não. O TC tem independência na decisão e o Presidente da República deve estar vigilante no sentido de que o governo e o parlamento vão respeitar a decisão do tribunal de que os subsídios venham a ser devolvidos aos portugueses. Mas não creio que daí nasça nenhuma crise política. Nem a demissão do governo nem a dissolução da Assembleia da República. O chefe de Estado tem uma missão importante de defesa da Constituição. É o único órgão de soberania que jura sobre a Constituição. Mas normas inconstitucionais há em todos os governos e todos os parlamentos. É verdade que há uma maior gravidade porque é uma reincidência, mas ainda assim não penso que seja motivo para qualquer sanção de demissão do governo ou dissolução da Assembleia da República.
- Que factores podem promover essa crise política?
- A grande questão que se coloca é saber se esta orientação económica e financeira do governo é a certa para levar Portugal a sair da crise em que se encontra. Mas, sobre isso, só posso subscrever as palavras do Presidente, que diz preto no branco que o caminho não é este, que este caminho iria conduzir a uma crise ainda maior. Será decisivo este primeiro semestre, para ver os resultados desta política económica.
- Na quinta-feira, o presidente da RTP terá dito que a privatização ficaria resolvida dia 10, em reunião de Conselho de Ministros. Em que moldes pode ser feita essa privatização?
- A Constituição ocupa-se muito do problema da Comunicação Social, porque há uma série de normas que visam garantir a sua transparência e independência, porque é um poder social muito importante e onde há uma ideia de interesse público, sobretudo o dever de informar. Em relação à televisão, a Constituição é expressa, ao dizer no artigo 38, número cinco, que o Estado assegura a existência e o funcionamento de um serviço público de rádio e televisão. Não de jornais, mas de televisão. Há várias interpretações possíveis, mas penso que esta norma está sobretudo preocupada com a substância das coisas, não com a forma das coisas.
- Em que se traduz essa substância?
- Em haver uma actividade televisiva, isto é, a transmissão de televisão em canal aberto, em que haja informação e entretenimento que possam ser enquadrados nessa ideia de serviço público. Terá de ser em canal aberto, senão não estaria aberto ao público, mas a Constituição não fala no número de horas e não se compromete especificamente com o número de certo tipo de programas emborainclua informação e entretenimento -, mas também não fala no número de canais nem da forma jurídica da empresa, o modo como isso se operacionaliza, nem tinha que falar. A meu ver, este serviço público deve ser garantido, mas não tem de ser através de uma empresa 100% pública.
-A porta está aberta a qualquer modelo?
- Penso que está
Pedro Raínho
I online, 5-01-2013

Decisão à Francesa


Fernanda Palma - O Conselho Constitucional francês considerou inconstitucional, em fiscalização preventiva, uma taxa de imposto de 75% sobre os rendimentos superiores a um milhão de euros. Mas o fundamento não foi a desproporcionalidade dessa contribuição extraordinária de solidariedade social pedida por dois anos aos titulares dos rendimentos mais elevados.
O Conselho Constitucional entendeu apenas que o método de cálculo do imposto violaria o princípio da igualdade. Com efeito, o projeto legislativo – que teve, entre outras consequências, a atribuição da nacionalidade russa a Gérard Depardieu – previa para os rendimentos sujeitos a imposto uma base estritamente pessoal, não tendo em conta o agregado familiar.
Assim, mesmo que um dos membros do casal não auferisse quaisquer rendimentos, os elevados rendimentos auferidos pelo outro justificariam a aplicação da taxa de 75%. Porém, se num agregado familiar ambos os cônjuges ultrapassassem (até perto do dobro) aquele rendimento, mas nenhum o atingisse singularmente, já não poderia ser aplicada a referida taxa.
Nunca esteve em causa, num Conselho Constitucional a que pertence o próprio Nicolas Sarkozy, a proporcionalidade da altíssima taxa de imposto aplicável a rendimentos muito elevados ou a lógica de solidariedade social em que se baseia. Apenas se discutiu a igualdade entre muito ricos e muito ricos, em nome da equidade fiscal e da sua capacidade contributiva.
Os problemas que o nosso Tribunal Constitucional deverá analisar são de natureza quase inversa. Na verdade, questiona-se a discriminação dos rendimentos do trabalho, em geral, dos funcionários públicos e dos reformados, em particular, e a contribuição extraordinária de solidariedade que incide sobre reformas que em pouco excedem os mil euros mensais.
O Tribunal Constitucional não pode, assim, decidir à francesa, abstendo-se de confrontar a estrutura do Orçamento com princípios constitucionais tão básicos como a igualdade e a confiança. Estará de novo em causa, como já evidenciou o Acórdão relativo ao Orçamento de 2012, a discriminação negativa dos salários e das reformas quanto a outros rendimentos.
E se chegar a ser colocada pelos Deputados a questão da progressividade do imposto (associada à supressão de escalões), o Tribunal Constitucional deverá precisar ainda o significado do princípio da equidade fiscal. Terá de esclarecer qual é o grau de exigência que resulta da previsão constitucional de um imposto sobre o rendimento "único e progressivo".
Correio da Manhã, 6-01-2013