sábado, 9 de fevereiro de 2013

Outro direito fundamental em risco: o direito à língua

JORGE MIRANDA 

Público - 09/02/2013 - 00:00
1. A par das liberdades culturais (arts. 37.º, 38.º, 42.º e 43.º) e dos direitos de acesso aos bens de cultura (arts. 73.º e segs.), pode falar-se, na nossa Constituição, de direitos à identidade cultural, desdobrados em três categorias:
- o direito à identidade cultural como componente ou expressão do direito à identidade pessoal ou, mesmo, do direito ao desenvolvimento da personalidade (art. 26º, n.º 1), pois a pertença a um povo com uma identidade cultural comum [art. 78º, n.º 2, alíneac)] faz parte também da individualidade de cada pessoa;
- o direito de uso da língua, sabendo-se como a língua materna, por seu turno, é o primeiro ou um dos primeiros elementos distintivos da identidade cultural;
- o direito de defender, mesmo em tribunal, o património cultural [art. 52.º, n.º 3, alínea d)].
2. O relevo particularíssimo da língua resulta não só de o português ser declarado língua oficial (art. 11.º, n.º 3), mas também de constituir uma das "tarefas fundamentais" do Estado "assegurar o ensino e a valorização permanentes, defender o uso e promover a difusão internacional da língua portuguesa [art. 9º, alínea f)].
E a isso acrescem os "laços privilegiados de amizade e cooperação com os países de língua portuguesa" [arts. 7.º, n.º 4 e 78.º, n.º 2, alínea d)] e a equiparação, em certos termos, dos direitos dos seus cidadãos aos direitos dos cidadãos portugueses (art. 15.º, nº 3), bem como o ensino da língua aos filhos de emigrantes [art. 74.º, n.º 2, alínea i)].
3. Serão, porém, cumpridas as obrigações constitucionais e respeitado o direito à identidade linguística dos cidadãos portugueses? A pergunta, infelizmente, justifica-se porque:
- Se tem admitido o registo de nascimento com nomes próprios não portugueses;
- Se espalham denominações de sociedades e cartazes publicitários em língua estrangeira;
- Se admitem primeiras denominações de escolas universitárias em língua estrangeira (até contra o disposto no art. 10.º, n.º 1 do Regime Geral das Instituições de Ensino Superior);
- Se impõe outra língua a alunos portugueses, em violação do seu direito fundamental à língua, em aulas ministradas por professores portugueses em escolas universitárias portuguesas (coisa diferente, claro está, será o caso de aulas dadas por professores estrangeiros);
- Muitas vezes, não se incentivam os alunos do programa Erasmus a aprender português, quando este programa, pelo contrário, visa a interculturalidade e não a uniformização linguística;
- Se observa o uso em público de línguas estrangeiras por titulares de órgãos de soberania nessa qualidade;
- Os sucessivos memorandos de entendimento com o FMI, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu não têm tradução oficial e não têm sido publicados no Diário da República;
- Se verifica a degradação do português como língua de trabalho na União Europeia.
Apenas um provincianismo antipatriótico e uma prática de subserviência pode explicar estes e outros factos, esquecendo-se que a língua é quase o único domínio de independência que hoje nos resta, que é língua oficial de mais sete Estados e que é falada por mais de 200 milhões de pessoas em todos os continentes.
4. O Acordo Ortográfico tem sido fortemente criticado por muitos especialistas e não especialistas da língua como atentatório do português.
Não vou discutir o assunto, até porque não sou especialista, embora não esconda a minha preferência por ele na medida em que possa contribuir para a afirmação internacional da língua portuguesa (que é uma só, apesar das variantes portuguesa, brasileira, africanas e asiáticas - não estamos numa situação semelhante à do latim aquando das invasões bárbaras).
Mas gostaria que aqueles que estão tão preocupados com a nova ortografia oficial, boa ou má, se manifestassem ainda mais inquietos com os problemas que acabo de lembrar.
Professor da Universidade de Lisboa e da Universidade Católica Portuguesa

Garzón diz que os populares não têm "vontade política" para investigar a corrupção

ANA GOMES FERREIRA 

público - 09/02/2013 - 00:00
Aguirre, a presidente dos populares de Madrid, ficou isolada ao atirar-se à cúpula do partido devido ao Caso Bárcenas
O juiz espanhol Baltasar Garzón defendeu ontem na televisão Cadena SER que há "indícios "claros de "corrupção" no Partido Popular (PP) e que os casos Bárcenas e Gürtel deveriam ser investigados pela mesma instância judicial, a Audiência Nacional.
Este tribunal nacional tem nas mãos a investigação sobre o escândalo de corrupção ligado ao PP espanhol conhecido por Caso Gürtel. Mas o relativo ao ex-tesoureiro dos populares, Luis Bárcenas, está nas mãos do departamento anticorrupção do Ministério Público. O ex-tesoureiro do PP, através de uma contabilidade paralela, receberia avultadas verbas de empresas, distribuindo parte delas pela cúpula do partido através de pagamentos mensais.
Garzón era o juiz da Audiência Nacional que, em 2009, mandou realizar escutas a suspeitos no Gürtel com o objectivo de provar que se tratava de "um delito continuado". Foi acusado de abuso de poder e condenado a 11 anos sem exercer a profissão.
O antigo juiz disse que nas investigações Gürtel surgiu-lhe o nome de Bárcenas, que foi imputado em 2009. Explicou que os indícios de crime são evidentes, mas, concluiu, há "falta de vontade política" para fazer avançar os dois processos.
O Caso Bárcenas, que está a desgastar a imagem do PP e a credibilidade de Mariano Rajoy, o presidente do Governo, já abriu uma guerra interna no Partido Popular (direita). Ontem, elementos da cúpula do partido disseram ao jornal El País que a líder dos populares madrilenos, Esperanza Aguirre, "passou todos os limites" da "deslealdade".
Aguirre era a grande rival de Rajoy, mas, no ano passado, anunciou que se retirava da política activa por motivos de saúde. Manteve-se, porém, na liderança em Madrid e, agora, decidiu atacar o presidente do Governo devido a Bárcenas.
Em público, Aguirre apelou à "regeneração urgente da democracia". Em privado, numa reunião partidária, fez duras críticas à forma como o partido está a gerir o escândalo, atacando a secretária-geral, Dolores de Cospedal. E defendeu o despedimento da ministra da Saúde, Ana Mato, suspeita no caso Gürtel.
De acordo com as fontes do El País, na reunião partidária, onde Rajoy não esteve, Aguirre enfrentou a presidente da Câmara de Madrid, Ana Botella (mulher do ex-presidente de um anterior Governo, José María Aznar), que tem defendido Mato.
A direcção nacional do partido, que começou a ser ouvida pela imprensa espanhola, disse estar furiosa com Aguirre, que foi ministra da Educação e da Cultura de Aznar e, depois, a primeira mulher a presidir ao Senado.
Os "marianistas", como são conhecidos os fiéis ao primeiro-ministro (que dominam as estruturas mais altas do partido), puseram em marcha um plano para isolar Aguirre. Não houve, no seio dos populares, quem a defendesse. Até o homem mais bem posicionado para substituir Rajoy (caso este caia), que não é considerado um "marianista", Alberto Núñez Feijóo, presidente da Junta autonómica da Galiza, disse: "Não há um presidente que acredite mais na regeneração do que [Rajoy]".
A guerra está, pois, aberta com Aguirre que, recentemente, se manifestou contra uma reforma na forma como as listas eleitorais são feitas (ela controla-as e quem não mostra obediência, diz o El País, é imediatamente posto fora). Quem sabe se a hostilidade aberta pela ex-ministra não é uma forma de as hostes de Rajoy tomarem, finalmente, conta do partido em Madrid.

Juízes do Constitucional abrem a porta à repetição do julgamento Casa Pia

ANA HENRIQUES 

Advogado de Carlos Cruz não acredita no sucesso de recurso extraordinário, que, a ter provimento, pode originar indemnização
O acórdão do Tribunal Constitucional que rejeita os recursos de quatro dos condenados do processo Casa Pia, obrigando-os assim a cumprir as penas de cadeia a que foram sentenciados, abre a porta à repetição de todo o julgamento.

Em causa está uma possibilidade legal a que os advogados de Carlos Cruz e de vários outros implicados do caso já tencionavam recorrer caso não conseguissem evitar a prisão dos seus clientes, que deverá ocorrer a partir do final deste mês: a utilização de um tipo de recurso só possível depois de a sentença transitar em julgado, o que neste caso se relaciona com a detenção para cumprimento de pena.

Quando aceite pelo Supremo Tribunal de Justiça, o chamado recurso extraordinário de revisão permite a realização de um novo julgamento, no qual são apreciados novos factos desconhecidos no momento em que a sentença de primeira instância foi proferida. Já depois de os arguidos terem sido sentenciados, alguns dos ex-casapianos cujos depoimentos haviam sido fundamentais para a condenação vieram a público desdizer-se e negar terem sido alguma vez alvo de abusos sexuais por parte de Carlos Cruz, Carlos Silvino (já a cumprir pena), Manuel Abrantes, Jorge Ritto, Ferreira Diniz e Hugo Marçal.

São estas declarações, proferidas em entrevistas e num dos casos também na repetição do julgamento dos factos ocorridos em Elvas que os advogados de defesa nunca conseguiram até hoje juntar ao processo, por a lei não o permitir nas fases que decorreram até hoje. Mas são os juízes do Constitucional a recordar a possibilidade que se abre a partir de agora: "O nosso sistema processual penal prevê um expediente que admite a revisão da sentença transitada em julgado quando se descobrirem novos factos que (...) suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação".

O advogado do apresentador televisivo, Ricardo Sá Fernandes, mostra-se no entanto pouco esperançado no sucesso de um recurso extraordinário - que, a ser aceite, pode implicar a libertação temporária dos condenados até ser proferida a nova sentença: "É muito raro o Supremo Tribunal de Justiça aceitar este tipo de recursos, a não ser que seja obrigado a isso através do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem", instituição para a qual o defensor do Carlos Cruz também já apelou.

Para Sá Fernandes, os constitucionalistas apenas se debruçaram sobre esta hipótese "para lavarem a consciência do mal que fizeram", ao rejeitarem os derradeiros recursos que os condenados podiam interpor enquanto estivessem em liberdade. Caso o arguido seja absolvido depois da repetição do julgamento, diz o acórdão, os juízes encarregues do caso devem estipular-lhe "uma indemnização pelos danos sofridos e ordenar a restituição das quantias relativas a custas e multas que ele tiver suportado".

Outra linha da defesa de Carlos Cruz para a qual Sá Fernandes também não conseguiu acolhimento no Tribunal Constitucional relaciona-se com a pretensão de confrontar as declarações que os ex-casapianos prestaram às autoridades durante a fase de inquérito com aquelas que eles fizeram em tribunal, uma vez que se registaram discrepâncias quer sobre as pessoas que acusaram dos crimes, quer sobre os locais onde eles ocorreram. Mas também aqui os juízes das diferentes instâncias, incluindo os constitucionalistas, invocaram a lei para impedir este procedimento. Nova legislação ainda por publicar vai alterar em parte esta disposição legal.

Se nenhum dos advogados invocar a nulidade do acórdão do Constitucional nem pedir a sua aclaração, o seu trânsito em julgado cumpre-se a 26 de Fevereiro, diz Sá Fernandes.