domingo, 6 de agosto de 2006

Sim, há reforma do Processo Penal...

Por Rui Pereira
Coordenador da Unidade de Missão para a Reforma Penal (in DN)

A dr.ª Fátima Mata-Mouros, juíza pela qual tenho genuína consideração, acaba de sustentar que o Projecto de Revisão do Código de Processo Penal apresentado pela Unidade de Missão que coordeno é tímido. Como "meio de prova", invoca um artigo da minha autoria sobre a crise de identidade dos sujeitos e sublinha que algumas das ideias que aí defendi não foram acolhidas. A título de exemplo, refere o fim das delegações genéricas nos órgãos de polícia criminal e a recorribilidade do despacho de pronúncia concordante com a acusação do Ministério Público. Ironicamente, acusa de falta de "garantismo" uma revisão que já foi criticada por ser "garantista" em excesso.

Não creio que a crítica proceda. O que está em jogo é uma reforma, embora não uma ruptura com o modelo consagrado na Constituição de 1976 e no Código de 1987 - com o qual, aliás, concordo no essencial.

A demonstração de que está em causa uma verdadeira reforma (e não clarificações supérfluas) é fácil de fazer.

O Ministério Público, que possui hoje um domínio quase fictício do inquérito, passa a intervir em alguns momentos cruciais. Se agora se pode limitar a arquivar ou acusar no termo do inquérito, terá de validar a constituição de arguido e tomar conhecimento das escutas telefónicas para posterior entrega, em 48 horas, ao juiz de instrução. Por razões de exequibilidade, não foi possível acabar com a constituição de arguido pelos órgãos de polícia criminal ou com as delegações genéricas, mas as alterações preconizadas são da maior relevância.

Os órgãos de polícia criminal, muitas vezes entregues a si próprios, manterão um contacto mais frequente com o Ministério Público. Assim, prevê-se um prazo máximo para comunicarem notícias de crimes, denúncias manifestamente infundadas ou a constituição de arguido (dez dias), bem como para entregarem os materiais das escutas ao Ministério Público (15 dias). Deste modo, põe-se cobro à insegurança reinante, em benefício da investigação e da validade da prova recolhida.

O juiz singular vê reforçado o seu papel, tanto no julgamento, através do alargamento dos processos sumário e abreviado, como nos recursos, mediante a atribuição de competências ao juiz relator para julgar os casos mais simples e aos juízes-presidentes para julgarem matérias como os conflitos de competências. Além disso, os regimes dos impedimentos e recusas deixarão de constituir pretextos para o atraso do processo. De resto, é a preocupação de celeridade que leva a que se eliminem recursos interlocutórios e se continue a prescrever a irrecorribilidade do despacho de pronúncia concordante com a acusação do Ministério Público (apesar de eu considerar que seria outra, em teoria, a solução correcta). É a própria Constituição que associa, no n.º 2 do artigo 32.º, a celeridade à presunção de inocência.

O arguido beneficiará do direito de informação sobre os factos e, na medida em que não haja prejuízo para a investigação ou para os direitos fundamentais, sobre os meios de prova. A Constituição já manda que se faça assim, mas a jurisprudência constitucional recomenda o esclarecimento legislativo.

Por outro lado, o despacho de aplicação das medidas de coacção será fundamentado circunstanciadamente. A previsão de um limite máximo de duração dos interrogatórios (quatro horas), para os compatibilizar com os direitos humanos, está longe de ser um "pormenor". E contempla-se, pela primeira vez, um direito de indemnização para arguidos inocentes que tenham estado privados da liberdade, mas não se estende esse direito a quem tenha sido absolvido por outras razões (como a prescrição ou a amnistia).

O defensor, considerado com frequência um intruso, vê ampliada a sua actuação. Assim, é obrigatória a sua presença no interrogatório de arguidos detidos ou presos, dada a situação de vulnerabilidade destes. Dando cumprimento ao artigo 20.º da Constituição e tendo até em conta que as testemunhas podem ser transformadas em arguidos, admite-se que elas sejam acompanhadas de advogado.

Por fim, a vítima não é esquecida. Por exemplo, ela será avisada da fuga ou libertação de arguido ou condenado que possa pôr em perigo a sua segurança.

Todavia, para evitar a "privatização" do Processo Penal, exclui-se a passagem ao julgamento nos crimes particulares quando o Ministério Público entender que não há indícios suficientes. Nesses casos, o assistente terá de requerer a instrução, em homenagem ao direito do arguido de não ser julgado quando não há indícios contra ele.

Estas e muitas outras alterações (sobre segredo de justiça, segredo profissional, protecção de testemunhas, reconhecimentos, perícias, buscas, escutas, prisão preventiva, documentação da audiência, recursos e aplicação retroactiva da lei mais favorável) permitirão melhorar o desempenho dos sujeitos processuais. Porém, as alterações legislativas são condição necessária mas não suficiente de um processo mais justo e funcional. É nas mãos dos advogados, dos magistrados do Ministério Público e dos juízes que repousa o futuro da reforma.

Entrevista do juiz-conselheiro Fernando Pinto Monteiro

A "falta de humildade" dos magistrados em início de carreira e o acesso "viciado" ao Supremo são algumas das questões que preocupam o juiz-conselheiro Fernando Pinto Monteiro, mais que provável candidato à Presidência do Supremo Tribunal de Justiça, expressas em entrevista hoje inserida no Público.

A esfera íntima, de Rui Pereira

Opções religiosas e de consciência, preferências sexuais e até simpatias desportivas não têm de ser manifestadas.

A Assembleia da República acaba de decidir (através da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias) que os deputados serão obrigados, na próxima legislatura, a discriminar, no registo de interesses, todas as suas actividades, exceptuando ligações a movimentos religiosos, como o Opus Dei, ou a Maçonaria.

Haverá, porventura, quem ache a excepção injustificada, na medida em que a pertença a tais instituições pode gerar cumplicidades que influem nas decisões políticas. Indo mais longe, haverá até quem entenda que as próprias opções sexuais deveriam ser esclarecidas, a pretexto de que, por exemplo, o facto de alguém ser homossexual cria nele a propensão para favorecer pessoas com a mesma orientação.

Num contexto completamente diverso, a propósito dos Serviços de Informações, ouvi uma vez o Professor Faria Costa distinguir entre “transparência” e “vitrificação”. Numa sociedade democrática, a transparência é desejável, mas não é admissível que se ponha em causa, por exemplo, o núcleo essencial do direito à intimidade e à reserva da vida privada ou da liberdade de consciência. Em nome da democracia, o eleitorado não tem o direito de conhecer as preferências sexuais do Presidente da República, salvo se estas implicarem a prática de crimes. Tão-pouco é legítimo questionar um deputado sobre a sua filiação religiosa e, aliás, a Constituição proíbe-o expressamente.

Não é claro, porém, que o regime previsto para a liberdade da religião se aplique, por exemplo, à Maçonaria. Na verdade, a nossa Constituição apenas proíbe que se questione qualquer cidadão sobre convicções e prática religiosa (artigo 41º, n.º 3). Mas o legislador constitucional consagra mais amplamente a liberdade de consciência, a par da liberdade de religião (artigo 41º, n.º 1). Por isso, a pertença à Maçonaria ou os seus rituais (desde que não incluam iniciativas ilícitas que lhes sejam estranhas) estão cobertos por uma liberdade fundamental. A única diferença que o texto constitucional autoriza é entre fazer perguntas e obter respostas. Em matéria de religião, nem sequer é admissível perguntar; em matérias de consciência que extravasem a liberdade religiosa, pode-se perguntar, mas não impor o dever de responder.

Por todas estas razões, é de aplaudir a decisão da Assembleia da República. Opções religiosas e de consciência, preferências sexuais e até simpatias desportivas não têm de ser manifestadas ‘urbi et orbi’. Sob pena de, qualquer dia, nem ser necessário recorrer ao ‘Big Brother’ de George Orwell, porque a vida íntima dos cidadãos se terá transformado num impresso oficial.

Rui Pereira, Professor de Direito e presidente do OSCOT, no Correio da Manhã de hoje