terça-feira, 31 de janeiro de 2006

Juízes do Supremo têm acórdãos demais

«"Juízes do Supremo têm acórdãos demais"

“Em Portugal, um juiz do Supremo Tribunal tem, por semana, dois acórdãos para relatar e quatro para intervir como adjunto. Isto não dá possibilidade de ponderação séria: por ano, são cerca de 75 recursos para relatar e 150 para intervir como adjunto”.
Quem fala assim é Miguel Galvão Teles (na fotografia), que critica o facto de a qualidade das decisões não ter impacto na carreira dos juízes.»
Jornal de Negócios on line, 31.JAN2006

Esclareça-se que, em 2005, os juízes das secções criminais do STJ receberam 90 processos para relatar e tiveram intervenção em outros 250 como adjuntos

O Juiz e as Escutas


Se a intervenção substancial do juiz em todo o processo é, mais do que uma exigência de legalidade, uma fonte de legitimação absoluta do meio de obtenção de prova [escutas telefónicas], qualquer desvio a tal traçado implica inevitavelmente o inquinamento do processo (*). Sendo restritos - porventura como em nenhuma outra intervenção jurisdicional no âmbito processual penal - os requisitos de admissibilidade das intercepções, parece claro que o papel maximalista do juiz em todo o processo toma-o uma peça fundamental na valoração do conteúdo da consistência da hipótese de acusação que venha a ser formulada no inquérito. Assim, enfatizar o momento de escolha dos elementos recolhidos através da intercepção telefónica como relevantes para a prova é reconhecer um papel verdadeiramente dominial do juiz, no âmbito da fase de inquérito, no que respeita à sua intervenção neste meio de obtenção de prova. Ao contrário de outros sistemas, o juízo de relevância da prova que sustenta a hipótese de acusação que vier a ser, eventualmente, formulada, é apenas e só do juiz de instrução.
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(*) Não importando, aqui, tomar partido na querela sobre se se está no domínio de nulidades, sanáveis ou insanáveis, ou métodos proibidos de prova, sempre se dirá no entanto que não parece tal regime específico e restritivo de proibições de prova compatível com o sistema de irregularidades, sanáveis ou não, consoante o momento em que são arguidas, questão é bem mais profunda, pelos interesses que estão em causa, como se viu, e será certamente uma posição de absoluta proibição de utilização de prova aquela que mais se adequa ao regime (...)

José Mouraz Lopes, RMP 104

Tráfico menor


«A jurisprudência do STJ dos últimos anos tem vindo a alargar o campo de aplicação do aludido art. 25.º a tudo quanto seja pequeno tráfico, aos dealers ou "retalhistas" de rua, sem ligações a quaisquer redes e quase sempre desprovidos de quaisquer organizações ou de meios logísticos, e sem acesso a grandes ou avultadas quantidades de droga - enfim, os pequenos tentáculos situados na base da grande pirâmide do narcotráfico.
Apesar da pertinência da observação de que sem esses "tentáculos" ou vendedores de rua dificilmente a droga chegaria ao "mercado do consumo", e daí a necessidade de maior reprovação, ela não pode ser levada ao extremo de se pretender medir pela mesma bitola realidades substancialmente diversas - o grande e o pequeno tráfico -, sob pena de violação dos mais elementares critérios da proporcionalidade que devem estar presentes na definição dos crimes e das penas, para além de que a moldura do art. 25.º fornece uma ampla margem onde não será difícil encontrar a pena adequada e proporcionada ao caso concreto, não podendo ainda esquecer-se a circunstância de os vendedores de rua serem recrutados ou aliciados, na sua maioria, de entre toxicodependentes que, a troco de pouco mais do que o necessário para alimentar o vício, actuam, indiferentes aos riscos que correm e nem sempre com plena consciência da ilicitude»
Ac. do STJ de 18-05-2005 Proc. n.º 1003/05-3, Relator: Cons. Antunes Grancho

Julgar implica «compreender a natureza humana e as suas fragilidades»


I - Nos termos do art. 72.º, n.º 1, do CP, o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existam circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
II - A acentuada diminuição significa casos extraordinários ou excepcionais, em que a imagem global do facto se apresenta com uma gravidade tão específica ou diminuída em relação aos casos para os quais está prevista a fórmula de punição, que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em tais hipóteses quando estatuiu os limites normais da moldura do tipo respectivo.
III - A atenuação especial da pena só pode ser decretada (mas, se puder, deve sê-lo) quando a imagem global do facto revele que a dimensão da moldura da pena prevista para o tipo de crime não poderá realizar adequadamente a justiça do caso concreto, quer pela menor dimensão e expressão da ilicitude ou pela diminuição da culpa, com a consequente atenuação da necessidade da pena, vista a necessidade no contexto e na realização dos fins das penas.
IV - Se o arguido recebeu o produto estupefaciente de indivíduo não identificado, por conta de quem o vendia, a troco de vantagem não concretamente apurada, tendo a actividade ocorrido no contexto de grande desequilíbrio familiar (necessidade de cuidar do filho de tenra idade; companheira mergulhada no consumo de estupefacientes), para assegurar a subsistência do filho e também para «minimizar o descontrolo» da «carência adictiva» da companheira, a censura ética por ter agido como agiu revela-se, na compreensão da natureza humana e das suas fragilidades e circunstâncias, de menor grau do que em outras situações de tipicidade comportamental para a normalidade das quais o legislador pensou o tipo e a moldura penal do art. 21.°, n.° l, do DL 15/93, de 22-01, justificando a medida prevista no artigo 72.º do CP.
Ac. do STJ de 25-05-2005 Proc. n.º 1566/05-3, Relator: Cons. Henriques Gaspar

In dubio pro reo

I - Tendo-se apurado apenas que «por razões não concretamente apuradas mas que se prendem com o mau relacionamento existente entre eles, entraram ambos [arguido e ofendido] em discussão, discussão essa que ocorreu sensivelmente a meio do muro que separa ambos os quintais», mas ignorando-se quem iniciou tal discussão, não pode sufragar-se a tese do acórdão recorrido vertida na afirmação segundo a qual «a discussão, que precede a conduta do recorrente, não atenua a sua culpa pelo facto, na medida em que não se provou que tivesse sido vítima de qualquer ofensa imerecida que despoletasse aquela reacção por descontrolo emocional».
II - É que se não se provou que o arguido «tivesse sido vítima de qualquer ofensa imerecida», também se não provou que o ofendido o tivesse sido, ou, sequer, que tenha sido o arguido a dar início à discussão.
III - Daí que o basilar princípio processual probatório in dubio pro reo, como se sabe, reflectido no art. 32.º, n.º 2, da Constituição, imponha que o tribunal valorize este espaço de dúvida - o de saber quem iniciou a discussão e o porquê dela - em favor do arguido.
Ac. do STJ de 5.5.2005 Proc. n.º 237/05-5 Relator: Pereira Madeira

Pareceres

Calhou de ler, há dias, nos jornais, que o Professor Doutor Costa Andrade, num parecer adrede emitido para um caso muito badalado, sustenta uma tese que me deixou espantado e que, na altura, levei à conta de mais uma incorrecção jornalística.

Afinal, é bem verdade. Escrito, preto no branco, sustenta o ilustre catedrático, entre o muito mais, e em jeito de conclusão, que «No direito positivo português vigente não há recurso das decisões que não apliquem ou que revoguem as medidas de coacção». Mais: «Só à custa da inconstitucionalidade do artigo 219º – e reflexamente do artigo 399º – do Código de Processo Penal se poderia admitir que aquele preceito abrisse a possibilidade de o Tribunal Superior vir, contra decisão da primeira instância, ordenar a aplicação ou a continuação duma medida de coacção». E mais ainda: «Diferentemente do recurso da decisão de não aplicação ou revogação das medidas, o recurso da decisão de aplicação ou manutenção das medidas de coacção, mesmo reportado ao passado, mantém toda a utilidade e faz todo o sentido. Tem sempre uma eficácia reparadora no plano moral, enquanto no plano material [aí vai cutelo] pode determinar e sustentar a pretensão à indemnização do arguido». Vale a pena ler o resto.

Como diria o meu amigo Pancrácio de Oliveira, se o Bid Laden, um dia, fosse preso em Portugal e um juiz, simpatizante da Al Qaeda, o libertasse de seguida, deixando de impor a medida de prisão preventiva, o Ministério Público, intérprete por excelência do interesse público, não poderia recorrer dessa decisão. Ou, pela mesma lógica de tão douto parecer, também o MP jamais poderia recorrer de decisões absolutórias.

A mim, que não percebo nada de juridismos, parece-me é que a crise é bem mais profunda e extensa do que aparenta.