Entrevista a João Correia, líder da comissão de
reforma do processo civil: Em Setembro, a reforma do processo civil deverá
estar pronta para o Parlamento. Deverá acelerar processos e, espera-se, reduzir
substancialmente as pendências.
A reforma do processo civil, preparada ao milímetro
pela comissão liderada por João Correia, está pronta e nas mãos da ministra da
Justiça. Há ainda, porém, decisões que Paula Teixeira da Cruz terá de tomar,
relacionadas com sugestões dadas pela troika. Esta, preocupada com as
pendências, preconizava uma "privatização da acção executiva" e
sugeriu que todos os portugueses passassem a ter uma residência legal
obrigatória
- A reforma do Processo civil
está pronta a ir ao Parlamento?
- O trabalho da comissão está pronto e entregue. Não sei se é a proposta
definitiva, porque há uma interacção entre a troika e a ministra e, em função
dos pareceres emitidos por váriasentidades,comoaassociação sindical dos juizes,
Ministério Publico, Ordem dos Advogados, há ali uma tendência para se dizer que
se podia ou devia ter ido mais longe.
- É a troika que diz isso?
- Também a troika, mas não só a troika. E não é propriamente a troika que manda
Há uma sintonia entre aquilo que é preconizado pela troika e pela ministra O
que está a ser ponderado agora é se se deve e pode ou não ir mais longe.
- A troika não manda, mas dá
opiniões.
- Sim, e mais na acção executiva
- E ai, até onde é que a troika
queria ir?
- Queria uma quase absoluta privatização da acção executiva, o modelo holandês,
que não é possível em Portugal, porque temos um princípio de reserva de juiz –
há certos actos que só ele pode praticar, como a entrada no domicílio ou a
própria ordem para proceder à penhora Depois, porque há que ter em conta a
natureza dos títulos executivos. E os que são fiáveis, como as injunções,
cheques, letras, livranças, escrituras públicas em certas circunstâncias, podem
dar origem a um processo sumário, que vai ao tribunal, mas não ao juiz e depois
vai directamente para o agente de execução. Ai é que a troika diz –
verbalmente, porque ainda não escreveu – que não é necessário registar o
processo em tribunal, que é um acto paralisante. Nos títulos executivos menos
fiáveis, como documentos particulares, o processo segue a forma ordinária, em
que o juiz tem de fazer uma verificação.
- E que outras sugestões
apresentou a troika?
- Foi também avançada sempre em termos verbais, a necessidade de criar uma
residência legal obrigatória para facilitar a localização dos devedores, como
no modelo alemão, em que, se mudarem, as pessoas são obrigadas a avisar os
serviços de identificação. E nós tentámos explicar que somos um país de
emigração, mas que somos mais portugueses lá fora do que cá dentro e que é
difícil ter um país tão organizado como os alemães ou os suecos. Nós temos uma
residência, que damos quando fazemos o cartão do cidadão, mas que é apenas a
residência declarada Eu posso mudar de residência e não dizer nada a ninguém. Não
sou obrigado a comunicar, até posso ter três residências.
- E essa medida avança ou não
avança?
- Agora está nas mãos da ministra Mas posso dizer-lhe que a troika tem uma
visão positiva das reformas em curso na justiça e a ministra tem sido louvada
Nós vamos dizendo que pode ou não ser e eles vão aceitando. Nesta área são mais
dialogantes do que impositivos. Estão mais preocupados com a redução das
pendências processuais e esta reforma vai neste sentido.
- Acredita que funcionará?
- Na acção executiva, sim. Na acção declarativa, vem modificar radicalmente a
relação entre juizes e advogados, advogados e clientes. Há um princípio de
gestão processual que diz que o juiz deve adoptar e impor todas as condutas
para que o processo seja adaptado à natureza do conflito, isto é, tem uma
tramitação própria, que pode ser mais lenta ou mais rápida, em função da
natureza do conflito.
- Isso implica também uma
mudança de mentalidade do próprio juiz...
- Do juiz, do advogado, das partes... O juiz deve limitar-se, na audiência
preliminar, a dizer quais são as questões nucleares, as grandes questões do
processo, deixando de identificar os factos provados e por provar. A cronologia
dos actos é pré-determinada na audiência preliminar e há um aceleramento
processual, até porque passa a ser impossível adiar diligências.
- O que é que isso significa?
- Na audiência preliminar as agendas dos advogados e do juiz são concertadas e
a partir daí entende-se que, salvo justo impedimento, não há mais fundamentos
para adiamentos. Há uma vocação para respeitar o exercício da cidadania e não
para fundamentar o autoritarismo do estado. Bem pelo contrário. O cidadão foi
colocado no epicentro desta reforma
- Diria que é desta que os
advogados vão deixar de poder de lançar mão de praticas dilatórias?
- Os advogados não têm práticas dilatórias. Os advogados cumprem os prazos. Se
não fizerem, perdem. As regras é que têm de ser simplificadas. Mais
transparentes, directas e flexíveis e claramente vão ser.
- A máquina está preparada? Não
tem de ser mais oleada?
- Claramente que sim. O novo mapa judiciário vai nesse sentido e interage com
esta reforma
- Diz que na acção executiva a
pendência recua substancialmente. Como é que isso se consegue?
- Os poderes dos juizes sobre os agentes de execução são fortemente alargados.
Estes não podem prorrogar o processo a seu bel talento, como agora acontece em
muitos casos. Preconiza-se um estatuto deontológico mais forte para o agente de
execução e, eventualmente, a contingentação de processos por agente de
execução. Estes também ganham novos poderes, com penhoras de saldos bancários,
apreensões de bens.
- Está satisfeito com esta
reforma?
- Não estou. Penso que devíamos ir um pouco mais longe. Criaria por exemplo,
uma única forma de processo. Está previsto o ordinário e o sumário, mas um
seria suficiente. Se se atribui ao juiz o poder de gestão processual, e a
faculdade de, ouvidas as partes, adaptar a tramitação à natureza e complexidade
da lide, não vejo necessidade para que haja duas formas de processo. O juiz e
as partes adaptarão o processo à natureza da causa O problema é que há muita
legislação que remete para a forma sumária e que seria preciso adaptar e a
comissão não teve todo o tempo necessário. Por outro lado, há muitos processos
especiais que não têm grande justificação como as convocações de
assembleias-gerais, acções de divórcio, de divisão de coisa comum... é um
manancial de acções que se pode evitar, a partir do momento em que o juiz e as
partes podem negociar qual a melhor tramitação. Mais uma vez, faltou o tempo
necessário.
- Concorda com a ministra
quando ela afirma que esta é a maior reforma de sempre do código de processo civil?
- É rigorosamente verdade, seja em termos científicos, sociais, relacionais ou
políticos – de política judiciária, que na justiça a política partidária não
tem qualquer interesse.
- Ou não deveria ter...Há uma
politização da justiça?
- Às vezes há. Já o disse quando era secretário de Estado e fui bastante
fustigado por alguns responsáveis da Justiça
- Em que sentido é que diz
isso?
- Não me pergunte... Eu tenho aqui alguns processos que podiam mostrar que há
politização da justiça E às vezes há obediências que não deviam existir.
- Obediências de que género?
- Simpatias, às vezes patológicas, que levam a que algumas decisões sejam
proferidas. Há decisões que são tomadas e que são incompreensíveis à luz do bom
senso.
-Isso não se muda com uma
reforma.
- Muda. Posso garantir. Porque os juizes passam a ter novos poderes, mas
exige-se outro tipo de fundamentação. Não poderão escolher os factos que
entendem como provados e não provados e têm de elencar só as questões que vão
decidir. A margem de manobra para os apetites é fortemente encurtada. Mas
também lhe digo que isto é uma minoria. Não generalizemos, porque não é justo.
Há casos pontuais em que se nota, ou politização, ou obediências nas opções
tomadas, mas de poucos juizes.
- O tema da politização da
justiça esteve recentemente em causa, com a nomeação dos juizes para o Tribunal
Constitucional (TC). Como viu esse processo?
- O TC é um tribunal político, mas há uma excessiva partidarização na escolha
dos juizes que devia ser evitada Tanto mais que no TC as partes, para litigar,
têm de ter muito dinheiro. Eu evito até ao limite ir para o TC porque é muito
caro, é um tribunal para ricos. Para muito ricos. As custas rondam sempre os
2500 euros ou mais. E nem toda a gente tem dinheiro para isso. Mesmo quando o
TC decide não decidir, por três linhas pagam-se 2500 euros. É uma injustiça muito
forte e alguma coisa tem de mudar.As custas são urna taxa,em função de um
serviço, se este não é prestado, não deve ser pago ou deve ser pago muito
menos. Não compreendo a taxação dos actos do TC. Aliás, não compreendo muitas
das decisões do TC, que é com extrema facilidade que decide não decidir. Embora
haja belíssimos acórdãos.
- Porque decidem não decidir?
- Ou porque dizem que a matéria já foi decidida ou que não é controvertida ou
que há um elemento formal que não foi observado... aquilo passa por um crivo
que não imagina e como tal só os ricos e só com sorte se passa pelo buraco
daquela agulha Alguma coisa tem de ser feita em homenagem ao TC, cuja autonomia
deve ser mantida
- É a imagem da justiça que sai
comprometida?
- É a imagem da tutela dos direitos constitucionais. Olha-se para o TC e a
pergunta que se faz é: serão aqueles juizes os guardiães da nossa Constituição?
São. Agora, eu, cidadão, tenho confiança naquele TC? E a resposta é que, com
esta partidarização, esvai-se a minha confiança
- Desde que foi criado o TC, os
juizes sempre foram indicados desta forma...
- Podem ser indicados de forma hábil, em função da competência, percurso
doutrinário, autoridade, densidade científica No início, olhava-se para o TC e
via-se que tinha uma actuação de grande segurança e tutela da constituição.
Hoje parece que isso se modificou. Antes não era tão partidarizado. Os
critérios que existem são bons, os seus aplicadores é que têm de ter bom senso.
O que aconteceu pôs em causa o nome do Dr. Conde Rodrigues, o que não podia ter
acontecido. A minha sensibilidade até é que ele tem currículo para ser juiz do
TC, embora não o conheça tão de perto como isso. O Dr. Paulo da Mata é um
brilhante jurista, advogado, professor de direito. Não é este o mecanismo para
escolher os juízes para o TC.
PERFIL
O ADVOGADO QUE QUIS MUDAR PARA SEMPRE 0 PROCESSO
CIVIL
Do currículo consta, sobretudo, uma longa experiência como advogado.
Aquilo que, aliás, "sempre quis fazer", sublinha João Correia. Pelo
caminho, algumas incursões pela política, sempre próximas do PS, como a que o
levou a aceitar o convite para secretário de Estado no segundo Governo de José
Sócrates. Acabou por sair por sua iniciativa, batendo com a porta em conflito
com o ministro, Alberto Martins. Deixou a meio caminho o trabalho de reforma do
processo civil, mas Paula Teixeira da Cruz foi buscá-lo e acabou por ser ele a
liderar novamente o grupo de trabalho a quem foi confiada a missão de mexer
numa das legislações mais complicadas do edifício legal português.
O trabalho está feito e entregue, mas não lhe enche completamente as medidas.
Gostaria de ter ido mais longe, mas o tempo foi demasiado curto para isso.
Ainda assim, não tem dúvidas de que é "a maior reforma de sempre do
processo civil" e que, depois dela, fazer um julgamento no cível será
muito mais rápido e eficiente.
Filomena Lança
Jornal de
Negócios de 04-07-2012