POR ISABEL NERY
«É preciso ter visão helicoptérica.» A expressão caricata muitas vezes no discurso de José Mouraz Lopes e é usada pelos amigos para ajudar a descrever o novo homem forte do sindicalismo judicial. Os que não recorrem à imagem do helicóptero, lembram o aviso das chaves do carro: «Tenho-as sempre no bolso. Se a primeira mostra como procura, constantemente, um olhar mundividente, a segunda é a fórmula irónica escolhida para defender a independência com que gere os diversos cargos aceites desde que se tornou juiz, com apenas 26 anos.
Quando já não se sente desejado ou útil nas funções que desempenha, basta-lhe pegar no chaveiro e zarpar. Foi assim ao deixar o combate à corrupção e à criminalidade económica, em 2006, seguindo os passos de quem o tinha convidado para o lugar, José Santos Cabral, ex-diretor da Polícia Judiciária. Colegas e amigos associam-lhe facilmente adjetivos elogiosos. Honesto, trabalhador, empenhado ou corajoso, são os mais frequentes. Mas sempre que o tema é a autobiografia, o desembargador prefere retratar-se com atos. É fácil fazer- -lhe a vontade. «Um dos primeiros casos que julguei foi o de um rapaz que roubou uma ovelha. Queria dar uma prenda à namorada e não tinha dinheiro. Fiz-lhe um interrogatório e libertei-o. Ele quis dar-me uma nota de 100 escudos. Para beber uma cerveja. Nunca poderia aceitar, mas lembro-me sempre deste caso, porque mostra como se pensa que é feita a justiça: porque apetece aos juizes e não porque seguimos a lei.
DA BEIRA ALTA PARA A RELAÇÃO
O respeito pela norma jurídica tem pautado todo o seu percurso, mesmo quando a pressão atingiu o auge, na altura em que dirigiu a secção anticorrupção da PJ. «Alguns põem a estratégia à frente de tudo. Ele seguia a lei e não o critério da oportunidade. Foi um excelente diretor. As investigações que ainda hoje chamam a atenção da opinião pública, como o caso Bragaparques, o Freeport ou o Portucale, foram iniciadas no tempo dele. É dos poucos magistrados com competencias na área económica e financeira», nota Santos Cabral, atualmente juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça. Deixou a Judiciária há seis anos, mas ainda hoje é lembrada a lealdade do novo presidente da Associação Sindical de Juizes – o único da equipa que escolheu demitir-se com Santos Cabral.
O lugar foi, mas a fama ficou: «É muito exigente, rigoroso. Não pactua com meias-tintas. Enquanto esteve na Judiciária, foi autor de um pequeno guia de recomendações e boas práticas anticorrupção para ser distribuído por todos os funcionários. Atitudes destas são fundamentais», defende António Gama, 54 anos, vice-presidente do Tribunal da Relação do Porto. Nascido em Canas de Senhorim, no distrito de Viseu, onde «o ar puro e os pinheiros» o reconciliam com a vida, cresceu habituado ao elogio do trabalho. O pai, dono de uma empresa de materiais de construção, contava com a ajuda do único filho homem, durante as férias. Não tinha direito a remuneração, mas o pagamento em forma de autorização para usar o carro nas borgas com os amigos foi recompensa que ainda hoje lhe arranca uma gargalhada.
Desse tempo parece ter ficado a disponibilidade que lhe é reconhecida. No intervalo de reflexão entre a PJ e a Relação, escreveu a tese de doutoramento, sobre a fundamentação do sistema penal português. Em pouco mais de um ano. «Sentava-se ao computador às 8 da manhã e levantava-se pela primeira vez quando eu chegava para almoçar. Se tem de fazer, faz. E é capaz de ver um desafio debaixo de uma pedra», elogia a mulher, Manuela Mota Pinto, 48 anos, diretora de Projeto do Plano Estratégico do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra.
Dele dizem que nasceu para ser o que é – juiz -, embora o próprio só tivesse descoberto a vocação já no fim do curso. Mas ninguém o consegue retratar sem falar da família. Quem o vir atender o telefone consegue ler um «I love dad» como papel de parede, uma dedicatória da filha mais nova, de 18 anos. Mas também podia ser do filho, de 19, com quem já se aconselha.
A BOLA E OS FACTOS
Coimbra é a morada da família e Mouraz faz da cidade o ponto de apoio entre o Tribunal da Relação, no Porto, e a Associação Sindical de Juizes, em Lisboa. Quando os miúdos eram pequenos, garante a mulher, trabalhar em casa, só depois de os deitar. «Raramente esteve longe, apesar do que lhe era exigido». Se as funções de direção na PJ o obrigavam a vir a Lisboa, rumava todos os dias a Coimbra para estar com a família. Era juiz há apenas três anos quando se viu obrigado a testar a sua sensibilidade para temas filiais. «Em Aveiro, tive de julgar um caso de maus tratos infantis.
O miúdo não queria falar. Fiquei preocupado, não podia tomar decisões assim. Pensei: ‘Isto tem de se resolver!’ Saí do gabinete, peguei no miúdo e no advogado e fomos todos tomar um café. Ele pediu um bolo, começou a falar de futebol. Éramos os dois do Futebol Clube do Porto, quebrou-se o gelo e a conversa evoluiu da bola para os factos.» De à sala de audiências, a criança respondeu a tudo o que lhe perguntaram.
Na altura, não passava de um jovem magistrado, tal como José Eusébio de Almeida, 49 anos, desembargador no Tribunal da Relação do Porto, com quem estudou na Faculdade de Direito de Coimbra e no Centro de Estudos Judieiários. Passados vinte anos, já não surpreende o amigo, mas continua a despertar admiração entre os pares. «É a pessoa indicada para seguir o caminho do diálogo e do compromisso. Tem uma vontade sistemática de aprender, importante porque a sociedade muda. Podemos estar num momento de viragem da Justiça e ele corresponde sempre à expectativa, elevada, que suscita.
As longas horas a estudar processos são compensadas pelo jazz, com que acompanha sempre o trabalho solitário; o sedentarismo imposto pela papelada é minimizado com jogging, no Choupal. Cultiva o respeito absoluto pela lei – quando a mulher reclama por ter sido multada, a 92 quilómetros por hora, numa zona de 90, ele toma o partido da polícia. E a serenidade com que aceita perspetivas diferentes das suas, «irrita» os que gostam de pôr paixão em tudo. Embora seja a primeira vez que assume um cargo sindical, a fasquia está alta para José Mouraz. Um país em crise. Uma classe acossada. Um sistema em falência. A herança é pesada. E é por isso mesmo, argumentam os apoiantes, que «os juizes precisam do Mouraz».
Visão | quinta-feira, 10 Maio 2012