sexta-feira, 23 de novembro de 2012


O Julgamento, Narrativa Crítica da Justiça
de Álvaro José Brilhante Laborinho Lúcio
Notas de Leitura 2:

E continua socorrendo-se de uma alegoria que parte da célebre frase ainda há juízes em Berlim1, expressão de confiança na independência do poder judiciário frente aos interesses dos poderosos, em especial do poder político, mas que logo inverte, adiantando um outro dos termos de que parte: os desafios que a crise da justiça coloca aos magistrados e a todos nós.
Essa alegoria, com que começa o livro, inverte a história do moleiro de Sans-Souci, no sentido de que para se poder continuar a afirmar que ainda há juízes em Berlim é absolutamente essencial que os próprios juízes se adaptem ao que se lhes pede nos tempos modernos.
Dizendo que os juízes iam a caminho de Berlim para decidirem, mas a certa altura o comboio parou e eles ao olharem para fora verificaram que o comboio já estava parado há muito tempo e que a via estava desactivada, pretendeu-se significar que tem de se manter viva a alegoria de que ainda há juízes vivos em Berlim o que é muito importante para que o direito aplicado nos tribunais se possa opor à arbitrariedade, do poder político, naquele caso representado por Frederico II da Prússia, mas é essencial também que se tenha a consciência de que para se ser juiz em democracia nos tempos modernos é absolutamente essencial que os próprios tribunais se adaptem às contingências do tempo, àquilo que foi a evolução histórica e de que hoje, entre o poder judicial e o poder político, ao contrário de que então acontecia em que a separação de poderes era rígida e nítida e era um valor essencial, tem de se aproximar porventura mais, porque os tempos são muito mais de cooperação e co-responsabilização, e muito menos de separação e autonomia. Isto sem por em causa a independência dos tribunais evidentemente, nem a separação de poderes, mas sim a dimensão burocrática com que essas matérias são tratadas que deve ser claramente substituída por uma dimensão mais democrática.
Daí que, na alegoria, os juízes estejam parados na linha desactivada enquanto, noutro comboio, os “últimos moleiros” chegavam a Berlim.
Mas esta alegoria não pretende negar a credibilidade dos juízes. O que o autor pretendeu dizer – se bem o entendemos – é que a alegoria nos dá uma marca negativa da política, do arbítrio do político que é controlado necessariamente por tribunais independentes que, no fundo, representariam o que hoje chamamos o estado de direito. Era assim e assim tem de continuar, pois em nenhum Estado de direito se pode conceber o modelo de Justiça em que não sejam os tribunais a controlar o modo como o político exerce as suas funções desde que ponham em causa direitos legislados ou direitos do cidadão.
Mas pretendeu – como cremos resultar claramente da obra – afirmar que é essencial a compreensão de que, num mundo muito mais complexo, onde a diversidade ocupa hoje o espaço onde a norma ocupava sozinha a referência de padrão, é essencial a cooperação entre aquilo que é o poder político e o poder judicial.
Daí que alerte para o perigo da diabolização de um daqueles poderes que apenas encontra a sua própria fidelização aos valores na afirmação da referência ética e moral do outro.
E que, neste mundo aberto a novas reflexões, nos venha dizer que, se com Radbruch se partia da justiça para o direito, do direito para a Lei e da Lei para o sistema e para os cidadãos, hoje temos de partir dos direitos legítimos dos cidadãos para o sistema, daí para a lei e daí para uma ideia de justiça. Doutra forma nunca mais se conseguirá criar uma verdadeira comunicação entre os vários elos que estão envolvidos neste processo global, no processo político de regime democrático, de estado de direito e da importância a conferir aos tribunais, num regime dessa natureza.
Enfatizando as acrescidas exigências dos tempos modernos aos tribunais, sustenta que se o século XIX terá sido o tempo dos parlamentos, o século XX terá sido o tempo dos governos, dos executivos, o século XXI vai ser o tempo dos tribunais.
Sem que isso signifique – na sua leitura – a adesão a um activismo judiciário como alguma coisa que se afirma contra o político e contra o poder político, mas sim que os tribunais podem vir a ter um poder importante se se caminhar para a afirmação de uma função reguladora do Estado, e de uma função reguladora de um mundo de tal forma complexo e de tal forma marcado por conflitos de poderes que estão exteriores já à própria organização do Estado, que o próprio poder político precisará de tribunais fortes para que eles garantam a eficácia da sua regulação.
Esse poder conferido aos tribunais não seria um poder originário em que os tribunais passavam a ter em mãos um poder político, mas um poder que, sendo originariamente político, precisa da decisão dos tribunais para garantir a eficácia do exercício do seu próprio poder, nomeadamente do seu poder regulador2 3.
Fala igualmente da mudança exterior ao mundo judiciário, que tem mantido por dentro a ideia de que o mesmo se ergue e desenvolve desligado da realidade exterior, inicialmente levando a que o magistrado encaixasse, antes do 25 de Abril, numa determinada forma de aplicar o direito e de defender a independência dos tribunais como se criasse uma cidadela dentro da qual podia no fundo esgrimir a sua independência e em que a independência dos tribunais não era outra coisa senão a aplicação da lei4.
E propõe outro modelo, não de procura no juiz de uma figura estereotipada de pessoa, mas da exigência de uma profunda qualidade no exercício da função e na criação de mecanismos de avaliação e de controlo dessa mesma qualidade; na transferência da confiança depositada na pessoa do juiz, para a confiança nas instituições que garantem que a acção do juiz é uma acção correspondente àquilo que a lei lhe pede e que a sociedade em geral exige como representante de um povo em nome de quem julga.
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1 No conto “O moleiro de Sans-Souci“, François Andrieux (1759-1833) narra a história de um pequeno moleiro que, ameaçado de ter a sua propriedade tomada pelo rei Frederico II, da Prússia, para permitir a construção de jardins que melhorassem a vista do palácio real, responde ao soberano: “Tomar o meu moinho? Sim, se não tivéssemos juízes em Berlim“, exprimindo a ideia de que o poder dos governantes não é absoluto mas sim limitado pelos direitos dos cidadãos, cabendo aos juízes reconhecer e impor tais limites.
2 O Autor refere-se à regulação dos mercados e a um conjunto de actividades hoje da sociedade civil que chamaram a si muitos dos poderes alguns mesmo poderes públicos, marcando esta complexidade e esta diversidade dos tempos modernos mas que exigem evidentemente regulação e que exigem instâncias credíveis que sejam capazes de serem garantes da eficácia dessa regulação e essas são necessariamente os tribunais.
3 Por outro lado, da chamada anterior à intervenção dos tribunais nas situações excepcionais de violação da lei, ter-se-á passado para uma maior violação da lei com a ocorrência de muitas situações que sendo tradicionalmente relevantes para o tribunal, hoje se configuram mais como situações sociais, isto é uma série de violações ou não acatamento da lei que ganharam uma dimensão tal que aí a intervenção releva mais da necessidade de resolver o problema social que está subjacente do que aplicar a lei. E quando os tribunais são chamados a intervir eles não tem instrumentos para poder resolver aquelas situações enquanto problemas sociais.
4 Portanto a aplicação da lei fria formal, abstracta e aplicada por pessoas que tinham um estatuto moral um estatuto ético que era de uma maneira geral inexpugnável.

O Julgamento, Narrativa Crítica da Justiça
de Álvaro José Brilhante Laborinho Lúcio
Notas de Leitura 1:
1.
Tive ocasião de colaborar na apresentação do livro e do seu autor no dia 15 de Novembro de 2012, na Livraria Lelo do Porto e é o essencial dessa apresentação que aqui vos trago, em diversas partes.
O Autor, amigo e colega de décadas, dispensa apresentação que ou é desnecessária, e é-o, ou, apesar dos esforços honrados do apresentador, será seguramente pobre, perante os seus méritos e a sua personalidade moral e intelectual.
Licenciado em Direito e Mestre em Ciências Jurídico-Civilisticas, é juiz conselheiro jubilado do Supremo Tribunal de Justiça, membro eleito da Academia Internacional da Cultura Portuguesa, vice-presidente do Conselho Geral da Universidade do Minho, presidente da Assembleia-Geral da Associação Portuguesa para o Direito dos Menores e da Família e da Mesa do Congresso da Associação dos Juristas de Língua Portuguesa e Professor Coordenador Honorário.
Integra o Conselho Geral da Fundação do Gil, é membro do Conselho de Curadores da Fundação Liga.
Foi sucessivamente delegado do procurador da República, juiz de direito, procurador da República, inspector do Ministério Público, procurador-geral adjunto, director da Escola de Polícia Judiciária, director do Centro de Estudos Judiciários, secretário de Estado da Administração Judiciária, ministro da Justiça, deputado à Assembleia da República, presidente da Assembleia Municipal da Nazaré, ministro da República para a Região Autónoma dos Açores e, por designação do Presidente da República, vogal do Conselho Superior da Magistratura.
Foi Fundador da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, da Associação Portuguesa de Direito Europeu e da Associação de Criminólogos de Língua Francesa.
Tem publicadas várias obras e artigos em matéria de formação de magistrados, organização judiciária, aplicação do direito, psicologia forense, direito e processo penal, direito judiciário, cidadania e direito, cidadania e educação, sistemas de justiça, direito tutelar educativo e direitos das crianças.
Tem proferido inúmeras palestras sobre temas ligados à justiça, educação, cidadania, direito de crianças e jovens e direito em geral.
Foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem de D. Raimundo de Peñaforte e com a Grã-Cruz da Ordem de Cristo.
Isto dito, ficaria por referir a estatura intelectual do Autor, a sua formação profunda e multifacetada, a sua capacidade para interpelar os outros, mas também para dar a sua visão sustentada, na procura sempre de um diálogo também de cidadania, matéria que sempre mereceu a sua especial atenção, por si e relacionada com a justiça.
Como ficaria por sublinhar a sua formação humana, o seu grande respeito pela diferença e pelo outro, a sua lealdade, afectividade e solidariedade.
2.
O Julgamento, de que nos ocupamos hoje, assume a forma de um longo depoimento constante de um “auto de inquirição” assim apresentado logo ao abrir, no manifesto “Anti-Dantes”:
«Este é o produto – diz − de uma memória propositadamente não elaborada, sem trabalho de reconstituição, escorrendo em palavras a partir de uma mistura de lembranças e de esquecimentos, desprendida do rigor das provas, alheada dos documentos, dispensada de graves desígnios de certeza como fundamento de uma razão que se quer ver reconhecida
«E uma memória… apenas memória!
Como acontecia com as testemunhas que eu ouvi!
Sem preocupações científicas, falando para gente comum, este livro de restos procura a justiça seguindo o trilho deixado pelas pegadas de muitos. Pelas minhas próprias pegadas. Nele encontro histórias. Revejo factos. Surpreendo pessoas. Releio ensaios. Confesso fracassos. Esqueço erros. Louvo e censuro. Num constante recomeço. Tudo na ilusão, apenas, da justiça.»
Reconhecendo a necessidade de ir além do presente e encetar um percurso, de tempo longo, entre passado e futuro o Autor fá-lo com “uma narrativa crítica da justiça”, que completa o título de “o julgamento” que o Autor pretende que seja o que vir a ser feito, sem que se negue a fazer o seu próprio julgamento, pois que, como confessa, de uma narrativa comprometida se trata. Apenas «uma» narrativa, mas construída na convicção da sua utilidade como mais um contributo «para a edificação de uma atitude e de um pensamento comuns, que se não esgotem mais na contemplação da crise do que na aventura responsável da redescoberta da justiça».
Senhor de um discurso sedutor no seu poder e envolvência, mas sempre ao serviço da substância do seu pensamento, consegue conciliar aqui, não uma, mas várias narrativas, com códigos narrativos diversos que, sem se confundirem, se entrelaçam num todo onde o impressionismo se casa com o expressionismo, a memória afectiva com a racionalidade, a simplicidade com a profundidade analítica, a filosofia com o pragmatismo.
Com efeito, se promete uma narrativa crítica, oferece ao invés, várias narrativas distintas, ligadas no entanto na sua contemporaneidade: a sua história de vida funcional, a análise da evolução da sociedade, instituições e comportamentos e a sua visão da justiça.

A (difícil) defesa dos interesses das populações

FRANCISCO TEIXEIRA DA MOTA 
23/11/2012 - 00:00

A liberdade de expressão não é, seguramente, um direito muito valorizado nos nossos tribunais. Pode mesmo dizer-se que é uma liberdade mal-amada por uma parte substancial da magistratura portuguesa.
As razões para esta realidade serão muito variadas e não correspondem à clássica divisão ideológica entre esquerda e direita. Talvez seja mais apropriado falar de uma lógica conservadora, defensora do respeito pela autoridade e pouco atenta à liberdade individual face aos diversos poderes existentes na vida em sociedade e de uma lógica mais liberal, aberta à crítica e ao conflito e que valoriza o confronto público de ideias e opiniões mesmo que contaminado por erros.
No dia 28 de Julho de 2004, deu entrada no Ministério da Saúde uma carta assinada por José Moreira Bargão e Jacinto Domingos Correia em que estes afirmavam que um auxiliar de apoio e vigilância numa extensão de saúde do Centro de Saúde de Idanha-a-Nova só trabalhava um dia e meio por semana mas recebia o salário mensal como se trabalhasse cinco dias por semana. Mais referiam que se constatava que "o referido funcionário dominado pelos vícios e hábitos instalados, traduzidos na cultura de favor e dependência das pessoas simples e pouco esclarecidas", utilizava "práticas pouco consentâneas com a ética profissional, no seu relacionamento com os utentes" e "métodos de influência" dos quais tirava partido das formas que mais lhe convinha. Pediam os subscritores que fosse posto termo "a tão degradante e chocante situação de privilégio".
Na sequência do recebimento desta carta, foi aberto um processo de averiguações, seguido de processo disciplinar quanto ao não cumprimento dos horários por parte do referido auxiliar bem como outras irregularidade e ilegalidades; no final, o processo disciplinar veio a ser arquivado, sem prejuízo de se terem constatado irregularidades como a não cobrança da taxa moderadora em alguns casos.
Certo é que o funcionário visado se considerou ofendido com o teor da carta e se queixou em tribunal contra os subscritores da mesma, conseguindo que fossem condenados pelo crime de difamação nas penas de 1800 euros e 960 euros de multa cada um, bem como a indemnizá-lo na quantia de 1600 euros.
O tribunal considerou que com a carta em causa os subscritores da mesma "pretendiam defender os interesses" da população servida pela extensão de saúde e que "a consideração pessoal e profissional" do queixoso não diminuíra face ao conhecimento público do teor da carta já que, mais tarde, um jornal regional a publicara; no entanto, o tribunal considerou também que existiam conflitos de carácter político entre os autores da carta e o funcionário em causa e que, ao escreverem a carta, os seus autores tinham previsto "a possibilidade de atentar contra o bom-nome e honra" do funcionário e, "ainda assim, não se tinham abstido de o fazer", tendo-lhe causado "tristeza, angústia, revolta e perturbação". A sentença de 3 de Abril de 2008 do Tribunal Judicial da Comarca de Idanha-a-Nova é paradigmática de um tipo de atitude judicial quando está em causa a liberdade de expressão: não há qualquer referência à mesma ao longo das suas 24 páginas. Difícil mas não impossível...
Recorreram os arguidos para o Tribunal da Relação de Coimbra invocando que ao escreverem a carta estavam "a exercer um direito/dever de cidadania, no âmbito da liberdade de expressão consagrada constitucionalmente", mas o tribunal de 2.ª instância confirmou a condenação, sem qualquer hesitação.
Felizmente para o nosso bem-estar cultural e legal, existe o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), que funciona como uma espécie de tribunal constitucional, defendendo a nossa liberdade de expressão face ao "funcionalismo jurídico" de muitas das decisões judiciais portuguesas sobre esta matéria. E aí, José Moreira Bargão e Jacinto Domingos Correia conseguiram fazer valer a sua razão.
Para o TEDH, a sua condenação criminal em nome da defesa do bom-nome do funcionário constituíra uma injustificada ingerência na liberdade de expressão dos mesmos que não correspondia a nenhuma "necessidade social imperiosa", pelo que declarou que tal condenação violava a Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Para o TEDH e contrariamente ao entendimento dos tribunais nacionais, os factos apurados no processo de averiguações e no processo disciplinar constituíam uma base factual suficiente para justificar o teor da carta, na qual os seus subscritores, ao denunciarem os factos que consideravam irregulares ou ilegais, tinham também transmitido a sua opinião sobre a actuação do funcionário. E para o TEDH, ao fazê-lo não tinham ultrapassado os limites da crítica admissível, até porque estava em causa o comportamento de um funcionário do Estado. Será, por vezes, desagradável, mas é isto mesmo a liberdade de expressão...