FRANCISCO
TEIXEIRA DA MOTA
Os
"recursos dos autarcas" para o Tribunal Constitucional vão
desaparecer. São caros e vão ser inúteis
O
funcionamento da justiça criminal portuguesa vai modificar-se radicalmente com
as leis penais que vão entrar em vigor para a semana.
Em primeiro lugar, a prescrição, tão habitual no nosso panorama
judicial criminal, vai praticamente desaparecer. A partir de agora, os prazos
de prescrição do procedimento criminal suspendem-se a partir da sentença
condenatória em 1.ª instância. Suspensão que pode ir até cinco anos, e em casos
de excepcional complexidade do processo, esse prazo será de 10 anos. Mas há
mais: no caso de recurso para o Tribunal Constitucional, estes prazos são
elevados para o dobro. O que quer dizer que após a sentença da 1.ª instância, o
prazo de prescrição poderá estar suspenso vinte anos, findos os quais a
contagem do tempo de prescrição será retomada.
É caso para dizer que os "recursos dos autarcas" para
o Tribunal Constitucional vão desaparecer. Porque além de caros, passarão a ser
absolutamente inúteis. A medida é claramente positiva, embora os novos prazos
sejam excessivamente longos e quase eliminem o instituto da prescrição.
Verdadeiramente revolucionária em termos de alteração da
filosofia do sistema é o facto de as declarações dos arguidos prestadas nas
fases iniciais do processo passarem a ser consideradas na fase de julgamento,
desde que tenham sido prestadas perante uma autoridade judiciária - juiz ou
ministério público - e na presença de advogado. O que quer dizer que, se o
arguido se recusar a prestar declarações no julgamento, o tribunal poderá
aproveitar aquilo que declarou antes no processo. Não poderá considerar tais
declarações como uma confissão integral e sem reservas, prescindindo da
restante prova, mas o tribunal poderá dar-lhes o valor que entender, o que quer
dizer que vamos ter muito mais condenações do que até aqui.
Esta "alteração cirúrgica" vai ao coração do nosso
sistema penal, já que acaba com o princípio essencial de que a prova a ser
considerada na sentença é a que for produzida em julgamento. Uma alteração que
exige muitos cuidados: espera-se que não haja dúvidas que as declarações
prestadas perante os funcionários do Ministério Público não sejam consideradas
como prestadas perante uma "autoridade judiciária". Espera-se que
antes de prestar essas declarações e como a lei passa a impor, os arguidos
sejam devidamente informados que, se não exercerem o seu direito ao silêncio,
tudo o que declararem pode vir a ser utilizado contra eles, mesmo que faltem ou
não prestem declarações no julgamento. Espera-se também que a Ordem dos
Advogados chame a atenção de todos os advogados para a importância e gravidade
desta alteração legal e para a necessidade de os advogados conferenciarem
sempre com o seus clientes antes de qualquer interrogatório, esclarecendo-os
sobre as consequências das declarações que vão prestar. Até agora, as
declarações prestadas no processo antes do julgamento não tinham qualquer
valor, pelo que se os arguidos nada declarassem em julgamento, apesar de terem confessado
a prática do crime porque estavam acusados em fase anterior, se não houvesse
qualquer outra prova, eram absolvidos.
Outra medida cirúrgica é a que impõe que a maior parte dos
processos-crime em caso de flagrante delito sejam julgados em processo sumário,
com a natural diminuição dos direitos de defesa dos arguidos. Não serão
julgados no prazo de 48 horas, como alguns pretendiam, mas no prazo de cerca de
um mês. Esta medida dificilmente será exequível dado o grau de empanturramento
dos nossos tribunais criminais de 1.ª instância, que não conseguirão escoar
tantos processos. Muito provavelmente, as inevitáveis resistências sistémicas e
a própria realidade acabarão por impor-se à lei...
Graves e lamentáveis são as alterações da lei que, por um lado, acabam
com a possibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de
condenações dos tribunais da Relação que apliquem penas de prisão inferiores a
cinco anos e, por outro, permitem o recurso para o mesmo Supremo de absolvições
dos tribunais da Relação, se na 1.ª instância tiver havido condenação em pena
superior a cinco anos. O Estado é muito cioso do seu poder de punir e só confia
nos seus próprios tribunais quando condenam, mas não quando absolvem...
Por último, os furtos de bens ocorridos em estabelecimentos
comerciais de coisas expostas para venda ao público de valor inferior a €
102,00 e que sejam recuperadas passam a crimes de natureza particular, não
bastando aos comerciantes apresentarem queixa, tendo de constituir advogado no
processo e promover o andamento do mesmo em vez de, como actualmente, andarem
"a reboque" do Ministério Público. São os clássicos processos de
furtos nos supermercados que tanta exposição mediática têm tido e que agora
passam a ser - parcialmente - suportados pelos queixosos.
Estas alterações das leis penais têm aspectos positivos e
negativos, mas seguramente vão mudar a vida de muitos portugueses.
Advogado. Escreve à
sexta-feira ftmota@netcabo.pt