habeas corpus - prisão preventiva - incompetência - juiz natural - prisão ilegal - medidas de coacção
(1) - A providência de habeas corpus constitui um incidente que se destina a assegurar o direito à liberdade constitucionalmente garantido – arts. 27.º, n.º 1, e 31.º, n.º 1, da CRP –, sendo que visa pôr termo às situações de prisão ilegal, efectuada ou determinada por entidade incompetente, motivada por facto pelo qual a lei a não permite ou mantida para além dos prazos fixados na lei ou por decisão judicial – art. 222.º, n.ºs 1 e 2, als. a) a c), do CPP.
(2) - No caso vem alegado que a medida de coação de prisão preventiva em consequência do qual o peticionante se encontra preso foi determinada com violação das regras de competência (em razão do território), violação que constitui nulidade insanável nos termos da al. e) do art. 119.º do CPP, por violação do princípio do Juiz natural.
(3) - Sendo taxativos os fundamentos de habeas corpus previstos na lei, esta providência não pode ser utilizada para sindicação de outros motivos ou fundamentos susceptíveis de pôr em causa a regularidade e a legalidade da prisão, designadamente a sindicação de eventuais anomias processuais situadas a montante ou a jusante da prisão ou a verificação da legalidade da prisão reportada a momentos anteriores, sindicação que só é admissível através do meio normal de impugnação das decisões judiciais, ou seja o recurso ordinário.
(4) - A lei ao aludir no art. 222.º, n.º 2, al. a), do CPP, à ilegalidade da prisão efectuada ou ordenada por entidade incompetente, apenas contempla situações em que a prisão é decretada por outra autoridade que não um juiz, apelidada a prisão de non judice, não abrangendo situações em que a prisão é determinada por juiz incompetente, tanto mais que, de acordo com o n.º 3 do art. 33.º daquele diploma, as medidas de coacção ordenadas por tribunal declarado incompetente conservam eficácia mesmo após a declaração de incompetência
(5) - Como se refere no Ac. do STJ de 10-10-2010, Proc. n.º 3777/07, a «incompetência» a que se refere a al. a) do n.º 2 do art. 222.º do CPP é essencialmente a falta de jurisdição, ou seja, a situação em que a entidade que decidiu a prisão é alguém que não detém poder jurisdicional para intervir e decidir no caso concreto. A intervenção de juiz diferente do competente segundo as regras da repartição funcional de competências não envolve nenhuma diminuição de garantias para o arguido e, por isso, não é fundamento de habeas corpus.
(6) - Carece, igualmente, de fundamento, no âmbito da presente providência, o pedido efectuado pelo requerente de reapreciação das medidas de coacção que lhe foram aplicadas pelo tribunal a seu ver incompetente.
AcSTJ de 11-01-2012, proc. 1928/11.8JAPRT-A.S1-3, Relator:Conselheiro Armindo Monteiro
habeas corpus - prisão ilegal - prisão preventiva - constituição de arguido - interrogatório de arguido - defensor
(1) - A providência de habeas corpus é uma providência urgente e expedita, com uma celeridade incompatível com a prévia exaustão dos recursos ordinários e com a sua própria tramitação, destinada a responder a situações de gravidade extrema, visando reagir, de modo imediato, contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal, ilegalidade essa que se deve configurar como uma violação directa, imediata, patente e grosseira dos seus pressupostos e das condições da sua aplicação.
(2) - Resulta do art. 219.º, n.º 2, do CPP, que mesmo em caso de recurso de decisão que aplicar, mantiver ou substituir medidas de coacção legalmente previstas, inexiste relação de dependência ou de caso julgado entre esse recurso e a providência de habeas corpus, independente dos respectivos fundamentos. Com efeito, a excepcionalidade da providência não se refere à sua subsidiariedade em relação aos meios de impugnação ordinários das decisões judiciais, mas antes e apenas à circunstância de se tratar de providência vocacionada a responder a situações de gravidade estrema, com uma celeridade incompatível com a prévia exaustação dos recursos ordinários e com a sua própria tramitação.
I(2) - O peticionante solicita a sua imediata restituição à liberdade alegando a ilegalidade da sua detenção e subsequente prisão por excesso de prazo de apresentação ao juiz, considerando que a mesma foi decretada sem que previamente tivesse sido constituído arguido, e sem que tivesse sido previamente ouvido, não tendo a respectiva defensora legitimidade para, em nome do arguido, prescindir do que quer que fosse, uma vez que nem sequer conheceu o arguido ou falou com ele.
(4) - Conforme se extrai do art. 194.º, n.º 2, do CPP, a aplicação de medida de coacção não implica necessária ou obrigatoriamente a audição prévia do arguido, ressalvando-se no n.º 3 os casos de «impossibilidade devidamente fundamentada, e que pode ter lugar no acto de primeiro interrogatório judicial, aplicando-se sempre à audição o disto do n.º 4 do art. 141.º».
(5) - Embora o n.º 1 do art. 192.º do CPP refira que a aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial depende de prévia constituição como arguido após referir que «desde o momento em que uma pessoa adquirir a qualidade de arguido é-lhe assegurado o exercício de direitos e de deveres processuais», acrescenta: «sem prejuízo da aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial e de efectivação de diligências probatórias, nos termos da lei». Por outro lado, e relativamente à representação do arguido por defensor, há que ter em conta que o art. 63.º, n.º 1, do CPP, que o defensor exerce os direitos que a lei reconhece ao arguido, salvo os que ela reservar pessoalmente a este.
(6) - Dos elementos constantes dos autos, resulta que a prisão do arguido foi decretada por despacho datado de 16-09-2011 e, na sequência de interrogatório judicial, foi reexaminada em 10-11-2011, e revista pelo despacho de 03-01-2012. Além disso, aquando do despacho de 16-09-2011, em que se decidiu pela aplicação de medida de coacção, sem a sua audição prévia face às razões de saúde atestadas no processo, e sem prejuízo de o mesmo vir a ser ouvido logo que o seu estado o permitisse, o arguido estava representado pela sua defensora.
(7) - Não se verificou situação de abuso de poder ou de erro grosseiro e rapidamente verificável no decretamento da prisão preventiva. Não consta que o arguido impugnasse, em recurso, o despacho que lhe aplicou a prisão preventiva.
(8) - Uma vez que o arguido se encontra em prisão preventiva à ordem dos autos desde 16-09-2011, determinada por decisão judicial, por indícios da prática de crime de homicídio qualificado, o seu prazo máximo de duração de duração só terminará em 16-03-2012, se até lá não for deduzida acusação.
(9) - Desta forma, não ocorre qualquer fundamento previsto no art. 222.º, n.º 2, do CPP para o decretamento da providência de habeas corpus.
AcSTJ de 11-01-2012, proc. 522/11.8GCBNV-A.S1- 3, Relator:Conselheiro Pires da Graça
Cúmulo jurídico - concurso de infracções - conhecimento superveniente - caso julgado - caso julgado rebus sic stantibus - pena suspensa - pena única - imagem global do facto - pluriocasionalidade - prevenção geral - prevenção especial
(1) - Constitui jurisprudência minoritária no STJ o entendimento de que a revogação da suspensão da execução da pena não pode ter lugar em cúmulo, com o fundamento na diversa natureza entre a pena de prisão suspensa, por substitutiva, ou ainda da hipotética violação do caso julgado.
(2) - Como se decidiu no Ac. do STJ de 05-12-74, BMJ 232, 43, quando uma pena suspensa se encontra em cúmulo jurídico, pode essa suspensão não ser mantida, na formação do respectivo cúmulo, sem que isso implique ofensa de caso julgado. Com efeito, o caso julgado que se forma incide sobre a medida da pena, e não sobre a sua execução, sendo, por tal motivo, instável, provisório e sujeito à cláusula rebus sic stantibus (modificando-se o condicionalismo da aplicação da medida substitutiva e concluindo-se que o juiz da condenação).
(3) - No concurso superveniente de infracções tudo se passa como se, por pura ficção, o tribunal apreciasse, contemporaneamente com a sentença, todos os crimes praticado pelo arguido, formando um juízo censórico único, projectando-o retroactivamente (cf. Ac. do STJ, de 02-06-2004, in CJ STJ, II, 221). Estamos, assim, perante penas sujeitas a condição resolutiva, dependente da avaliação, em conjunto, dos factos e da personalidade do agente, consoante o conjunto se repercuta, considerados não numa visão simplesmente atomística, mas em novo reexame pondo a descoberto a conexão entre eles ou a falta desta e bem assim se o conjunto dos factos é reconduzível a uma simples acidentalidade no percurso vital ou se exprimem uma carreira criminosa, radicando em qualidades desvaliosas na pessoa do agente, em termos de exigência de prevenção geral, como especial, sendo de afastar a violação do princípio da proibição da dupla valoração, já que essa valoração é uma valoração de conjunto e não aos factos singulares de cada condenação (cf. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 335).
(4) - As penas englobadas em cúmulo jurídico, que se reportam a factos ocorridos entre 01-08-2005 e 28-11-2005, são as seguintes: 6 anos de prisão pela prática de um crime de roubo qualificado; 1 ano e 3 meses de prisão pela prática de um crime de sequestro; 4 anos de prisão (suspensa na sua execução por igual período) pela prática de um crime de furto qualificado; 16 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada; 5 anos e 4 meses de prisão pela pratica de um crime de homicídio qualificado na forma tentada; 4 anos e 6 meses de prisão pela prática de um crime de roubo qualificado; 4 anos e 6 meses de prisão pela prática de um crime de roubo qualificado; 14 meses de prisão pela prática de um crime de furto simples; 14 meses de prisão pela prática de um crime de furto; 9 meses de prisão pela prática de um crime de furto de uso de veículo; 14 meses de prisão pela prática de um crime de furto de uso de veículo e 16 meses de prisão pela prática de um crime de dano simples.
(5) - Embora a prática delituosa se estenda por um curto período de tempo, sem repercutir uma tendência criminosa, mas uma pluriocasionalidade, é digna da maior reprovabilidade, atingindo plúrimos e importantes bens jurídico-crimianis e definindo a respectiva personalidade do arguido.
(6) - O arguido carece de forte emenda cívica pela via da pena, como forma de conformar de futuro a sua personalidade e regras de sã convivência comunitária e interiorização dos maus efeitos do crime, além de que uma pena pesada é reclamada pela comunidade, onde aquele tipo de criminalidade se regista com frequência, causando alarme e alvoroço. Dentro da moldura penal abstracta aplicável, a pena de 22 anos de prisão é justa e adequada às finalidades de prevenção geral e especial que o caso requer.
AcSTJ de 11-01-2012. proc. 5745/08.4PIPRT.S1-3, Relator:Conselheiro Armindo Monteiro
Cooperação judiciária internacional em matéria penal - extradição - competência do Supremo Tribunal de Justiça - admissibilidade de recurso - princípio da especialidade
(1) - Nos termos do art. 58.º, n.º 1, da Lei 144/99, de 31-08, estipula-se que o MP e o extraditado podem recorrer da decisão final no prazo de dez dias, cabendo o julgamento do recurso à secção criminal do STJ (art. 49.º, n.º 3). Por sua vez, no art. 47.º, n.º 1, do citado diploma, a intervenção do Estado requerente da extradição é a de mero «participante» e «tem em vista possibilitar (…) o contacto directo com o processo (…), bem como a fornecer ao tribunal os elementos que entenda solicitar».
(2) - Assim, a posição do Estado requerente à luz do preceito em causa é a de cooperar e não dificultar o andamento dos autos, restringindo a sua esfera interventiva à de trazer ao tribunal os elementos de que careça dentro desse espírito de colaboração. Tem, pois, uma posição de subalternidade em requerido e ao Estado requerido.
I(2) - A norma do art. 58.º da Lei 144/99, de 31-08, rege, apenas, para o recurso da decisão final ordenando a extradição é omissa quanto à admissibilidade dos recursos interpostos após essa fase processual, mas se a lei é bem expressa em vedar a legitimidade do Estado requerente da decisão que ordena a extradição, por maioria de razão, enquanto elemento lógico interpretativo da lei (art. 9.º do CC), que essa proibição se imponha quanto a decisões da Relação proferidas após aquela fase.
(4) - O processo de extradição comporta uma fase administrativa e uma fase judicial, nos termos dos arts. 47.º e 49.º ss., respectivamente, iniciando-se a última mediante a apresentação do pedido de elementos documentais que o acompanharam ao MP junto do Tribunal da Relação competente. A questão da violação pelo Estado requerente do princípio da especialidade é um incidente da entrega, regulada no art. 60.º da Lei 144/99, de 31-08, e em conexão com a extradição decretada, ainda dentro da fase judicial, tanto assim que a sua resolução é desencadeada ante a entidade judiciária.
(5) - Não pode fundamentar a atribuição de legitimidade ao Estado requerente para recorrer a afectação de direitos nos termos do art. 401.º, n.º 1, do CPP. Efectivamente, o Estado requerente não é detentor de quaisquer direitos fundamentais ou parcela de liberdade individual afectados, decorrentes de tratado internacional, desrespeitados por Portugal, demandando, por isso mesmo, a utilização de correspondentes instrumentos para realização, em forma célere e ajustada, pela via do recurso.
(6) - A interpretação que veda o recurso ao Estado requerente não atropela qualquer direito constitucional, designadamente por ofensa aos arts. 2.º, 7.º, n.º 1, 20.º, n.º 4, e 32.º, da CRP.
(7) - A cooperação internacional regulada em matéria penal releva do princípio da reciprocidade, princípio que extravasa transversalmente todo o processo, impregnado de um sentido de moral geral e ética próprios, com o alcance de permitir-se a aplicação dos efeitos jurídicos em determinadas relações de direito sempre que esses mesmos efeitos são aceites por Estados estrangeiros.
(8) - O princípio da especialidade é um dos princípios estruturantes de todo o processo de cooperação internacional e que não se limita, apenas, à extradição, nos termos da abrangência alargarda a outras formas de cooperação definidas no art. 1 da Lei 144/99, de 31-08. Esse princípio faz parte daquele conjunto de axiomas impostos pela simples coexistência relevante da comunidade internacional no sentido de que a entrega por extradição de u, delinquente obriga o Estado requerente a conter o seu procedimento, a sua perseguição penal, nos precisos limites da acusação específica pelo crime predefinido e não por qualquer outro.
(9) - A especialidade desempenha uma função de garantia sucessiva, ou seja, garantia da extradição efectuada, destinada a assegurar o cumprimento das obrigações que os Estados, com o pedido de extradição, de modo implícito mas inequívoco, se comprometem a observar (o Estado para o qual uma pessoa tenha sido extraditada não pode ser julgada, salvo consentimento do Estado requerido, senão pelo crime pelo qual tenha sido extraditado).
(10) - A violação da clausula da especialidade por parte do Estado que viu a sua pretensão satisfeita integrará um ilícito, como tal censurável ao nível das relações entre os Estados.
(11) - No caso concreto, a extradição foi requerida não com base em convénio bilateral entre os Estados, mas pelo facto de existir uma convenção internacional – a Convenção Internacional para a Repressão de Atentados Terroristas à Bomba – e se mostrarem reunidos os pressupostos enunciados no art. 6.º da Lei 144/99, de 31-08. O pedido de extradição foi instruído, ainda, com base numa declaração de garantia formal de que a pessoa reclamada não será julgada por factos diversos dos que fundamentam o pedido e lhe sejam anteriores ou contemporâneos.
(12) - Assim, se o Estado requerente, após investigação dirigida contra o extraditado, alargou o âmbito da acusação, imputando-lhe novos factos anteriores aos que integram o acto de extradição, ocorreu uma violação do princípio da especialidade. Com efeito, o alcance do princípio da especialidade de forma alguma se pode conformar à luz da sua formulação, extensão e conformação jurídicas com o julgamento por crimes distintos daqueles por que foi autorizada a extradição.
(13) - A nossa lei de cooperação internacional não prevê a hipótese de infracção à regra da especialidade , assumida pelo Estado requerente em compromisso internacional casuisticamente ajustado. Contudo, o Estado Português, como estado soberano, não pode ficar imune ao incumprimento evidente e frontal de uma sua decisão, emanada da sua mais Alta Instância.
(14) - Nestes termos, encontrando-se a extradição concedida sujeita a condição resolutiva, que o Estado requerente incumpriu, declara-se a sua resolução.
AcSTJ de 11-01-2012, proc. 1111/11.7YFLSB-3, Relator:Conselheiro Armindo Monteiro
Santos Cabral (vencido parcialmente, no que respeita à violação do princípio da especialidade, pelas razões que seguem. O presente recurso surge numa sequência que teve na sua géneses a decisão de 27-01-20…, que determinou a extradição do recorrido. Na decisão então proferida, a extradição ficou «condicionada resolutivamente ao cumprimento pelo Estado requisitante das garantias prestadas, condicionamento que conferiria ao Estado requisitado (oficiosamente ou a pedido do interessado), em caso de inobservância, o direito de oportunamente (e pelos canais diplomáticos ou judiciários) exigir a devolução do extraditando.» Este «segmento decisório, incidindo sobre a figura da extradição à qual confere o carácter de natureza condicional, sobre a qual subsistirá sempre a possibilidade de resolução, convoca uma das questões mais delicadas que se podem suscitar em relação ao mesmo instituto, ou seja, determinar a sua natureza definitiva ou condicional. Tal questão suscita outra, fundamental no caso vertente, que é a da configuração da reacção legal do Estado requerido em relação ao incumprimento das garantias oferecidas pelo Estado requerente. (…) O princípio da especialidade é uma afirmação da confiança recíproca dos Estados na sua relação, gerando obrigações a um nível estadual e a sua violação deve entender-se como uma violação da relação convencional ao abrigo do qual a extradição foi decretada, devendo ser denunciada pelo Estado requerido face ao Estado requerente. Tratamos de um direito dum Estado perante outro Estado. Independentemente da reacção do extraditado a nível interno e no âmbito do Estado requerente, invocando a violação do princípio da especialidade, o instituto da extradição implica uma atitude do Estado requerido perante o incumprimento. A forma como tal atitude se configura num pleno exercício de soberania não está previamente determinada nos tratados, ou convenções, não existindo um catálogo formatando a reacção possível, o que retira fundamento a um funcionamento automático de uma condição resolutiva. Efectivamente, a inobservância do princípio da especialidade importa duas ordens de consequências no âmbito das relações internacionais: por um lado a desconfiança sobre um Estado que não assume um comportamento credível e confiável nas suas relações internacionais e, por outro, a desacreditação de um Poder Judicial que utiliza o instituto da extradição de forma dúplice, gerando dúvidas sobre a forma de Administração da Justiça. Na verdade, uma coisa é o incumprimento de uma obrigação contratual a nível interno, com, ou sem apelo a uma condição resolutiva, em função do qual se recorre ao poder coactivo do Estado através dos Tribunais e uma outra, totalmente distinta, é a violação de regras, ou princípios, de relacionamento entre Estados nos quais se jogam atributos fundamentais como a soberania. Entendemos, assim, que a este Supremo Tribunal de Justiça compete constatar, como efectivamente constatou, a correcção da decisão recorrida quando verificou a violação do princípio da especialidade em função do qual foi determinada a extradição. Não existindo, quanto a nós, fundamento jurídico para o despoletar de uma revogação da extradição que não está prevista nas Convenções, deverá o Estado Português pelos meios que entenda adequados, diplomáticos (protesto) ou judiciais (Tribunais internacionais) gerir a situação desencadeada com a violação cometida. (…) Consequentemente, entendo que deveria ser confirmada a decisão recorrida no que concerne à constatação da violação do princípio da especialidade por parte do Estado … . Ao Estado Português competirá, então, decidir sobre a forma adequada de reagir a tal violação.»)
Pereira Madeira (com voto de desempate a favor do relator)
Competência do Supremo Tribunal de Justiça - admissibilidade de recurso - dupla conforme - cúmulo jurídico - concurso de infracções - pena única - medida concreta da pena - imagem global do facto - pluriocasionalidade - prevenção especial - toxicodependência - antecedentes criminais - modo de vida
(1) - Face à actual redacção do art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP; não é admissível recurso para o STJ quanto às penas parcelares aplicadas, quando se esteja perante decisão da Relação confirmativa de condenação proferida na 1.ª instância que tenha aplicado penas de prisão não superiores a 8 anos. Assim, o recurso restringe-se ao conhecimento da pena conjunta (única) de 8 anos e 6 meses de prisão aplicada ao arguido.
(2) - Nos termos do art. 77.º, n.º 1, do CP, a pena do concurso atenderá a uma apreciação global dos factos, tomados como conjunto e não um mero somatório de factos desligados, e da personalidade do agente. Nessa apreciação indagar-se-á se a pluralidade de factos delituosos corresponde a uma tendência da personalidade do agente, ou antes a uma mera pluriocasionalidade, de carácter fortuito, não imputável a essa personalidade, sendo naturalmente circunstância agravante a identificação de uma tendência para a prática reiterada de crimes.
(3) - A moldura da pena do concurso tem como limite mínimo a pena parcelar mais grave e como máximo a soma das diversa penas parcelares (n.º 2 do art. 77.º do CP). No caso dos autos, a moldura da pena conjunta varia entre o mínimo de 8 anos e o máximo de 9 anos [em resultado das penas de 8 anos de prisão e de 1 ano de prisão aplicadas, respectivamente, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes e de um crime de detenção de arma proibida].
(4) - A toxicodependência do recorrente, embora sempre de ponderar e relevar, não pode servir de atenuante de especial relevo se a venda de estupefacientes se torna no seu único modo de vida, designadamente quando já tem antecedentes criminais pelo mesmo tipo de crime.
(5) - A apreciação global dos factos e da personalidade do recorrente é claramente desfavorável, por revelar uma clara dificuldade em comportar-se de acordo com o direito, apesar do apoio familiar de que sempre beneficiou. A prática criminosa, nomeadamente a venda ilícita de estupefacientes, não constitui algo de ocasional ou anómalo na sua vida, antes a vem acompanhando há muito e de forma intensa.
(6) - Neste contexto, tendo a pena conjunta sido fixada no ponto médio dos limites máximo e mínimo da moldura [8 ano e 6 meses de prisão], nenhuma censura merece a decisão recorrida.
AcSTJ de 11-01-2012, proc. 158/08.0SVLSB.L1.S1-3, Relator:Conselheiro Maia Costa
Admissibilidade de recurso - Tribunal da Relação - prazo de interposição de recurso - aplicação da lei - processual penal no tempo - recurso da matéria de facto - convite ao aperfeiçoamento - constitucionalidade
(1) - O acórdão recorrido foi proferido em 17-07-2007, ainda na redacção anterior à reforma do CPP efectuada pela Lei 48/07, de 29-08. Ao tempo, o prazo para recorrer era de 15 dias (art. 411.º, n.º 1, do CPP de então), independentemente de ter por objecto a apreciação da matéria de direito ou a reapreciação da prova gravada em audiência de julgamento. O arguido foi notificado do acórdão em 24-08-2010 e interpôs recurso em 06-10-2010, ou seja, no terceiro dia útil após o termo do prazo de 30 dias, tendo pago a respectiva multa.
(2) - A aplicar-se o CPP no tempo em que foi proferido o acórdão sob escrutínio, já há muito que tinha decorrido o prazo normal de 15 dias que então vigorava. Face ao disposto no art. 5.º do CPP actual, a lei processual é de aplicação imediata, sem prejuízo dos actos praticados na vigência da lei anterior, e não se aplica aos processos iniciados anteriormente se daí resultar agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa, ou quebra de harmonia e unidade dos actos do processo.
(3) - O art. 411.º, n.ºs 1 e 4, do CPP (actual), estabelece, respectivamente, o prazo geral de 20 dias e o prazo especial de 30 dias para recorrer, quando, nesta última hipótese, o recurso tiver por objecto a reapreciação da prova gravada. Daí que, em nosso entender, o arguido deve beneficiar do prazo mais dilatado agora concedido pelo CPP, por ser mais favorável à sua defesa.
(4) - Tendo um sujeito processual interposto recurso em matéria de facto, independentemente de se apurar se foi ou não devidamente exercido, aplica-se imediatamente o disposto no art. 411.º, n.º 3, do CPP, não podendo o tribunal ad quem sindicar a validade legal, formal, do modo de apresentação desse recurso como questão prévia ao seu exercício, para ajuizar da sua (in)tempestividade, pois que de outro modo, seria querer legitimar a causa pelo efeito, o princípio pelo fim, decidir da extemporaneidade do recurso depois de conhecer do mesmo na sua regularidade formal, depois de formular juízo crítico sobre a delimitação processual do seu objecto de harmonia com os pressupostos legais do seu exercício, enfim, determinar a tempestividade do recurso pela perfeição ou conformidade legal do modo de exercer o direito ao recurso.
(5) - Seria, aliás, inconstitucional, por violação dos princípios da segurança jurídica, da confiança e do processo equitativo, e das garantias de defesa consagradas nos arts. 2.º e 32.º, n.º 1, da CRP, interpretar-se as normas dos arts. 411.º, n.º 3, 414.º, n.ºs 2 e 3, e 420.º, n.º 1, do CPP; no sentido de permitir ao tribunal ad quem a apreciação oficiosa da tempestividade do recurso que para ele foi interposto, e decidir pela sua tempestividade quando decorre uma prorrogação legal no prazo para o exercício desse recurso (cf. Ac. TC n.º 103/2006, Proc. n.º 53/2005, in DR, II Série, de 23-03).
(6) - Por outro lado, não é legalmente autorizado afirmar que não pode haver lugar para aperfeiçoar a motivação de recurso quanto à matéria de facto. Na verdade, ainda que o art. 412.º do CPP nos seus n.ºs 3 e 4 imponha determinada disciplina metodológica de procedimento, e que, por isso, haverá que prestar particular cuidado aos requisitos da motivação, «pois o Código denota o intuito de não deixar prosseguir recursos inviáveis ou em que os recorrentes não exponham com clareza o sentido das suas pretensões», não pode, porém, olvidar-se que: «Estas considerações só são inteiramente válidas quando a falta de conclusões ou a falta de concisão ou qualquer outro vício das mesmas não for colmatada depois de o recorrente ser convidado a suprir tais irregularidade. Só então o recurso deve ser rejeitado» (cf. maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, Legislação Complementar, 17.ª edição, 2009, pág. 966, nota 3, e Ac. do TC n.º 337/2000, com força obrigatória geral, Proc. n.º 183/2000, in DR, I-A Série, de 21-07).
(7) - Esta linha definida pelo TC estendeu-se ao recurso em matéria de facto, no sentido de que considerou inconstitucionais, por violação do art. 32.º, n.º 1, da CRP, as normas dos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP, interpretadas no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação do recurso em que o arguido impugna a decisão sobre a matéria de facto das menções contidas na al. a) e, pela forma prevista no n.º 4, nas als. b) e c) daquele n.º 3, tem como efeito o não conhecimento da impugnação da matéria de facto e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja dada a oportunidade de suprir tal deficiência (Ac. do TC n.º 404/2004, Proc. n.º 802/2003, in DR, II Série, de 24-07). De outra banda, também considerou inconstitucional a norma constante do art. 412.º, n.ºs 2, al. b) e 4, do CPP, interpretada no sentido de que a inserção apenas nas conclusões da motivação do recurso das menções aí referidas determina a imediata rejeição deste (Ac. TC n.º 485/2008, in DR, II Série, de 11-11).
(8) - Aliás, a Lei 48/07, de 29-08, veio introduzir na norma do art. 417.º do CPP, o seu n.º 3, do seguinte teor: Se a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 do art. 412., o relator convida o recorrente a completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afectada. O único limite a tal convite é dado pelo n.º 4 do mesmo normativo: «O aperfeiçoamento previsto no número anterior não permite modificar o âmbito do recurso que tiver fixado na motivação».
(9) - No caso em apreço, uma vez que o recorrente pretendeu exercer o recurso em matéria de facto, sobre a reapreciação da prova gravada, o certo é que, independentemente de se saber se o fez de forma processualmente válida, foi tempestiva a interposição do recurso da decisão da 1.ª instância para a Relação, atenta a circunstância de beneficiar do prazo de 30 dias previsto no art. 411.º, n.º 3, do CPP, a data da notificação ao arguido do acórdão recorrido e ao facto de aproveitar a faculdade concedida pelo art. 145.º, n.º 5, do CPC.
AcSTJ de 11-01-2012, proc. 1704/07.2TBBGC.P1.S1-3, Relator:Conselheiro Pires da Graça