Chegou a hora de discutir a questão do serviço público
de televisão (e rádio) numa perspetiva substancial e não apenas formal. Desse
debate, essencial para a democracia, deveremos extrair o significado da
exigência constitucional de serviço público nos nossos dias. O debate não pode
ser substituído pelo mero apelo à intervenção do Tribunal Constitucional.
Por: FernandaPalma, Professora Catedrática de Direito Penal
De resto, tal apelo é, por agora, extemporâneo. A intervenção
do Tribunal Constitucional só se justificará se vier a ser aprovada uma lei que
preveja a concessão do serviço público a privados. Nesse caso, em vez de
promulgar o diploma, o Presidente da República poderá requerer a sua
fiscalização preventiva. Mas também poderá exercer o direito de veto político.
Por certo, o serviço público de televisão só pode ter
como meta contribuir para o aprofundamento de valores constitucionais. Nesta
perspetiva, não poderemos deixar debaixo do tapete as questões que têm sido
esquecidas: tem havido um serviço de televisão que respeite os exigentes
parâmetros do interesse público? Que serviço desejamos para o futuro?
A liberdade de expressão do pensamento, o acesso
democrático à arte e à ciência, a defesa da língua e da cultura portuguesas e
uma informação isenta, que assegure o contraditório entre correntes de opinião,
são valores constitucionais que o serviço público deve assegurar. Os atuais
programas da televisão pública têm defendido esses valores?
O entretenimento, que em si não é incompatível com o
serviço público, pode ter qualquer conteúdo e sobrepor-se aos programas de
dimensão educativa ou cultural, a que só os canais por cabo dedicam espaço
significativo? E o contraditório não terá de ser assegurado quanto aos comentadores
que debitam as suas opiniões perante jornalistas passivos?
A questão que se coloca é se os privados, portugueses
ou estrangeiros, sem responsabilidade política perante ninguém, podem
satisfazer estas exigências. Mesmo que a lei preveja com minúcia as condições
de uma concessão ou de uma privatização, a responsabilidade do governo pela
qualidade do serviço público dilui-se e a voz dos cidadãos deixa de se fazer
ouvir.
Quem, encarando a questão formalmente, não vir
inconstitucionalidade alguma numa concessão a privados esquece que o problema
diz respeito às condições políticas e materiais necessárias para efetivar o
interesse público. O que está em causa é a "democracia do intelecto",
de que falava sabiamente Carl Sagan num grande programa de televisão sobre a
ciência.